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Flertando com o desastre: Sucesso sem mérito.

| Sally | | 141 comentários em Flertando com o desastre: Sucesso sem mérito.

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Sucesso sem mérito profissional já foi algo aberrante, digno de vergonha e socialmente reprovado. Mas alguma mudança perversa ocorreu na sociedade e hoje o sucesso sem mérito profissional vem sendo não apenas aceito, como ainda procurado de forma declarada.

Antes de desenvolver o tema, vamos trabalhar com conceitos. Sucesso sem mérito profissional ocorre quando uma pessoa é bem sucedida em sua profissão por motivos outros que não sua competência, seu preparo, sua habilidade em exercer aquela atividade da melhor forma possível. O sucesso vem de outras fontes alheias à capacidade profissional, como contatos, parentesco, sexo, chantagem, troca de favores, mentiras e tantas, tantas outras que todos nós conhecemos muito bem.

Um desafio: duvido que alguém aqui nunca tenha se deparado com um péssimo profissional que ocupa um cargo muito acima de sua capacidade, por circunstâncias que nada tem a ver com sua competência profissional. Aquele Zé Ruela desatualizado e incompetente que está na empresa faz vinte anos e não é mandando embora por um misto de pena e encargos trabalhistas, a mocinha tapada que sobre rápido por estra fazendo sexo com o chefe, o filho de papai que nunca leu um livro mas chega à vice-presidêcia de uma empresa, enfim, qualquer caso onde o cargo, posto ou função ocupados não encontre como principal pilar de sustentação a competência profissional.

É comum, vocês me dirão. Talvez para os mais jovens. A mim, ainda choca. Não faz muito tempo, talvez dez, vinte anos, onde ter seu pilar de sustentação em outro fator que não as habilidades profissionais era muito mal visto, muito mal falado e inclusive depunha contra uma empresa. Era feio fazer esse tipo de coisa, era feita muito bem acobertada, porque era considerada uma vergonha. Era exceção e até mesmo quem se favorecia da circunstância tentava esconder o que estava acontecendo. Constatar que funcionários de uma empresa estava lá por razões alheias à sua competência profissional era demérito para a empresa e gerava uma presunção negativa da sua prestação de serviços ou de seus produtos. Sim, essa época existiu.

Graças aos avanços tecnológicos que estupram nosso cotidiano, as mudanças sociais estão se dando de forma muito mais rápida do que era costume. Em dez, vinte anos a coisa mudou de forma tão veloz que passamos pelo estágio onde já não era mais vegonha basear a escolha em motivos alheios à capacidade profissional e, no meu sentir, estamos entrando em uma fase muito pior, onde isso começa até a ser um certo motivo de orgulho. O cara é espertão, não sabe nada sobre o assunto mas conseguiu um alto cargo! Vejam como ele é foda, vejam como ele é malandro! Sim, vai ter quem admire.

Falemos da minha área, direito, só para citar um exemplo. Escritórios grandes, como regra, contratam sem pudor pessoas com “pedigree jurídico” (familiares de juízes, desembargadores, grandes empresários ou qualquer potencial cliente lucrativo para o escritório). Claro, sempre tem uma meia dúzia de bois de piranha que são mantidos para efetivamente fazer o trabalho duro. Mas os QIs (Quem Indica) são maioria, e cada vez mais vejo escritórios se orgulhando de suas “aquisições” como quem se orgulha de um plantel. A pessoa pode ser burra e preguiçosa, que isso não importa, por razões alheias a seu trabalho ela “agrega valor” à empresa. Troca de favores, benefícios indiretos ou até mesmo status. Busca-se quase tudo em um funcionário novo, menos seu mérito profissional. No dia em que eu fizer uma entrevista profissional e alguém me mandar fazer uma petição para avaliar meu trabalho periga até de eu desmaiar de susto.

Com isso surge uma dicotomia cruel: quem não É (ou não parece que é), quem se resume “apenas” a seus méritos profissionais, se vê obrigado a estudar dez vezes mais para conseguir um lugar ao sol e provavelmente ganhar dez vezes menos. E normalmente quem colhe os louros são justamente aqueles que menos fazem e menos sabem. Excelentes profissionais estão sempre um ou dois degraus abaixo de onde deveriam estar: um assistente que estaria mais do que apto para ser Gerente ou Coordenador, mas que é mantido ali comodamente enquanto o Gerente ou o Coordenador se apropriam do seu trabalho. Esta forma viciosa de funcionar está se alastrando, a ponto das pessoas nem terem mais vergonha dessa distorção hierárquica.

Graças à enorme massa de reserva e altos índices de desemprego, quem se encontra em uma situação dessas, se matando de trabalhar em uma posição bem abaixo da que corresponderia à sua competência profissional, fica de mãos atadas. Caso não aceite, outros aceitarão, por pior que seja o salário. Caso tente de alguma forma mostrar seu valor e galgar um cargo melhor, será sumariamente executado pelos incompetentes que estão acima, que se sentirão ameaçados por alguém bom que quer seu cargo e tirarão proveito do poder que tem para cortar essa ameaça, colocando outro mais manso no lugar. Resultado imediato: excelentes profissionais desperdiçados em sub-cargos, mal pagos, desiludidos com a profissão e com a conta no vermelho no final do mês.

E a longo prazo, qual será o resultado disso? O prognóstico não é nada bom. Porque se um burocrata faz merda, o máximo que acontece é atrasar alguma coisa. Mas se profissões das quais depende a vida humana fazem merda, o resultado é trágico e afeta a todos nós. Um maquinista de trem que por diversão anda no dobro da velocidade permitida e por distração ou por falar ao celular esquece de frear, uma enfermeira que injeta café com leite na veia do paciente, um médico que amputa a perna direita quando na verdade deveria amputar a perna esquerda. Estamos começando a ganhar algumas “amostras grátis” do que se tem quando se prestigia como prioridade outros requisitos que não a competência profissional.

Curiosamente, na era da ampla disponibilidade de informação, do acesso ao conhecimento, o ser humano está perdendo o interesse por ele. Estudar já não é mais aquela garantia de um futuro melhor. Estudar é secundário, mas não deveria ser, pois para a maior parte das profissões, estudar ainda é fundamental para ser um bom profissional, mesmo que o mercado não o reconheça. Ninguém mais que ser um bom profissional, as pessoas querem ser bem sucedidas e ponto. E se para isso for necessário abrir mão de qualificação técnica, que assim seja. É a triste realidade, que vai se mostrar ainda mais triste a longo prazo, com uma possível “crise das profissões”, onde será muito difícil encontrar profissionais de notório saber. Ótimos marketeiros, relações públicas e atores, mas com faculdade de medicina ou direito. Não serve. Pode demorar para que a sociedade constate isso, mas eu me permito a arrogância de adiantar: não serve.

Tente mandar um jovem estudar muito para ser alguém na vida. Grandes chances que ele te corrija, dizendo que para ter sucesso hoje em dia tem que ter contatos, networking, bons relacionamentos, puxar o saco de todo mundo, agradar as pessoas e estar cercado das “pessoas certas”. Daí você vai olhar com cara de panaca, porque o jovem está certo. A nova geração já percebeu que já faz algum tempo não é mais o estudo que abre portas e justamente por isso, em matéria de estudo, fazem apenas o necessário, apenas o suficiente, deixando para focar sua energia nos outros aspectos: aparência, contatos, social, etc. Tem como recriminá-los? Só se você quiser criar um frustrado, que se mate de estudar, que tenha um notório conhecimento, que posteriormente não vai ter o reconhecimento que merecia.

Cobertos de razão, os jovens, do alto de sua ambição, procuram investir naquilo que abre portas nos dias de hoje e estão deixando de lado o investimento na competência profissional. Por mais de uma vez já vi advogados iniciantes em congressos, palestras e similares que estavam apenas de corpo presente, jogando joguinho de celular ou conversando do lado de fora do auditório. Quando indagados sobre aquela postura, já que estariam pagando para estar ali, a resposta vem na ponta da língua “O que eu preciso daqui é o título”. O que conta é ter um curso em sei lá o que, uma pós em não sei o que lá, e não o que a pessoa efetivamente aprendeu e melhorou como profissional.

Pessoas mais preocupadas em parecer ser competentes do que em ser competentes estão dominando o mercado de trabalho. E nessa, quem sai em vantagem são os psicopatas, que conseguem se destacar no mundo corporativo graças à sua habilidade inata de pisar nos outros sem sentir qualquer remorso. Estamos promovendo, estamos dando cargos de chefia para psicopatas e para pessoas que não tem a devida competência profissional necessária, ao mesmo tempo que estamos renegando quem tem muito estudo e dedicação mas não tem o grau de “filhadaputagem” considerado como qualidade para altos postos. O escroto é o forte, é o líder, é o mais bem preparado, ao menos olhos do mundo corporativo.

Hoje, é possível dizer que o mercado seleciona os profissionais, via de regra, utilizando outros critérios que não a competência profissional. Ela passou a ser secundária e, em alguns casos, dispensável. O próprio conceito de competência profissional vem sendo reescrito. Na verdade, acaba sendo bom para os chefões. Pensem comigo: se quem detém notório saber técnico ocupar cargos de poder, serão pessoas insubstituíveis ou de difícil substituição. Poderão cobrar caro, escolher onde querem trabalhar e fazer com que empregadores se sujeitem à sua vontade. Algumas poucas profissões que ainda dependem majoritariamente de competência técnica permitem esse luxo, como por exemplo aquelas ligadas a informática. Mas infelizmente a regra não é essa.

A regra é que ocupem cargos altos aqueles que não detêm as melhores das qualificações técnicas, que justamente por isso, se tornam facilmente substituíveis, dependendo da direção para onde venta o vento. Quem hoje é muito prestigiado amanhã pode ser descartado como uma fralda suja. Cada vez mais é essa a lógica que rege o mercado. Tempo de casa não significa cada vez mais segurança de estabilidade e sim cada vez mais risco de demissão. Um mercado cruel, volátil, que maltrata os técnicos e faz dança das cadeiras com os bem relacionados. A única solução para uma vida confortável nos dias de hoje é ser herdeiro, e olha, dependendo do caso, nem assim.

Essa ânsia por contatos, por aliados para se firmar no mercado de trabalho, fez nascer uma geração hipócrita, dissimulada, falsa. Aprende-se desde os tempos de estagiário que tudo nessa vida são contatos e aos poucos, o profissional vai sendo moldado para socializar compulsivamente com tudo e todos, isso quando também não bajula. Perdem a capacidade de discordar, criticar, de bater de frente. Viram fantoches sorridentes que pisam em mil ovos antes de discordar de alguém. O resultado? Perde-se a troca no lugar de trabalho e por consequência, reduz-se o nível de inovação. As boas ideias nascem do brainstorm, da negativa, da discussão, do embate. Quando todos “se concordam” e estão mais preocupados em fazer contatos e agradar, quem morre são as boas ideias.

Talvez isso explique muito da genuína e tosca criatividade do Desfavor. O descompromisso em agradar, a falta de preocupação com resultado final, com números ou com aceitação social. Autenticidade é artigo de luxo no mercado moderno. Tanto é que se o Desfavor fosse uma empresa, certamente faliria no seu primeiro ano. Não serve para o mercado de trabalho e, justamente por isso, acrescenta. Uma pena que as coisas estejam tomando esse rumo. Tudo se resume a política. Quando se derem conta que, no final, isso prejudica a todos nós, provavelmente já seja tarde.

E quando for tarde, eu quero ver conseguir pegar uma geração que não se dedicou ao estudo e conseguir criar outra que se dedique. Como? Com professores que já não se dedicam tanto ao conhecimento vai ficar difícil elevar o nível. Mesmo hoje, pergunte a qualquer professor veterano, os alunos rendem muito menos do que há uma década. Vai ser muito difícil reverter essa cultura da futilidade e das aparências no mercado de trabalho, mesmo que se queira. Quem já viu um puta médico com notório saber estilo House, viu. Quem não viu, não vai ver mais. O nível de tudo está caindo: do estímulo em casa, do ensino, da cobrança técnica. Dificilmente isso será revertido. Só espero viver para ver uma coisa: a revalorização de quem se dedicou ao estudo e é tecnicamente superior no que faz.

Se você está nessa situação de ser tecnicamente muito mais competente do que seus superiores e ainda assim não conseguir reconhecimento nem o cargo que merece, não se desespere. Meio mundo está assim. Infelizmente a dinâmica do mercado agora é essa. Não se sinta mal ou fracassado, no final das contas quem vai perder com isso é a sociedade como um todo. E se você é empregador, faça um bom investimento: contrate e cultive ao menos metade dos seus funcionários com altíssima capacidade técnica, coisa que não se confunde com diplomas, cursos e títulos. Em breve esses profissionais entrarão em extinção e quem ainda os tiver terá um diferencial no mercado. Se uma única pessoa ler este texto e mudar de ideia, prestigiando, promovendo, remunerando melhor um funcionário estudioso já terá valido a pena.

Para dizer que você faz parte do grupo que se dedica apenas ao necessário e não quer que isso mude, para dizer que se identificou com o texto mas ele te causou mais revolta do que conforto ou ainda para não entender nada e fazer um off topic qualquer: sally@desfavor.com


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