
O reflexo.
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Eu lembro de ter bebido bem além da conta, voltava pra casa mais por memória muscular do que qualquer senso de direção. As ruas já estavam bem vazias naquela madrugada fria, mas não que eu estivesse preocupado com algo além de continuar andando numa linha reta. Tenho certeza que nem lembraria daquela noite não fosse o que eu vi dobrando uma esquina e correndo em minha direção em alta velocidade: eu mesmo.
Mesmo de longe dava para notar. Mesmas roupas, inclusive. Acho que não tem pessoa mais reconhecível que você mesmo. Mas com aquela sensação estranha de que algo está fora do lugar… a gente sempre se vê em espelhos, então demora um tempo para seus olhos te verem ao vivo sem ser num reflexo. E foi só por isso que eu vacilei, ele… eu… vinha correndo com a cara fechada, numa postura claramente intimidadora. Depois de alguns segundos, nem mesmo o álcool conseguiu me segurar: corri para longe de mim.
Instintivo. Nessas horas você acha que vai ficar paralisado com a loucura da cena, mas o corpo não quer nem saber, injeta adrenalina nas suas veias e pernas para que te quero! Engraçado que eu não berrei ou pedi por socorro, eu só sabia que tinha que ficar longe dele… de mim. Corri, corri por dezenas de quarteirões, sempre olhando para trás para saber se estava ganhando alguma distância. Pelo visto ele corria tanto quanto eu e se cansava no mesmo passo. A única diferença mesmo era a minha vantagem inicial.
Naquele momento, eu nem conseguia pensar no que estava acontecendo. Depois de alguns minutos, nós dois fomos desacelerando. Bem feito por essa vida de sedentarismo. Ambos esbaforidos, chegamos num ponto onde devia ser até engraçado para quem estivesse vendo: os dois se arrastando pela rua, colocando a mão no peito de tempos em tempos, numa perseguição ridícula que não pendia para lado algum. Aí, acontece: ele tropeça num buraco da rua que eu quase não consegui desviar.
Confesso que ao vê-lo estatelar-se no chão, eu quase senti a vontade de acudir. Só não sei se foi um surto de altruísmo ou egoísmo. Ele torceu a perna. Passou rápido, contanto. Quando ele se levantou, mancando, vi a oportunidade de ir para uma rua mais movimentada. Assim que saiu da minha vista, não voltou mais no dia. Logo encontrei mais algumas pessoas, provavelmente saindo de casa para trabalhar. Pensei em avisar a polícia, mas… ao dar de cara com um posto policial, comecei a finalmente entender o que eu teria que explicar: que eu vi um… clone… meu depois de uma noite de bebedeira e ele me perseguiu de forma agressiva.
Não valia a pena sequer dar continuidade a essa história. Eu tive certeza que tive uma alucinação e que era hora de ir pra casa. Estava com o dia livre no trabalho, então cheguei e fui logo dormir, corpo dolorido de tamanho esforço. Fui acordar só de noite, perdi a conta das horas na cama. Dizem que exercício físico ajuda com ressaca, mentira. Cabeça e corpo comungavam na dor, sentia como se tivesse sido atropelado por um caminhão de bombeiros com a sirene ligada.
Como eu já disse, naquele dia não aconteceu nada demais. Cozinhei um jantar na melhor das minhas habilidades, desliguei o celular e fiquei vendo um filme na TV. Acabei dormindo pouco depois, mesmo depois do porre de sono que acabara de ter. E não fiz feio de novo: fui acordar só com o sol quente batendo no meu rosto. Atrasadíssimo para o trabalho. Teria que gastar um pouco da simpatia do meu chefe para me livrar dessa. Liguei o celular esperando ver chamadas perdidas e mensagens, mas para minha surpresa, ninguém me procurou.
Gastei meu tempo para me aprontar, comi alguma coisa e saí. Já era quase hora do almoço! Talvez conseguisse compensar um pouco trabalhando enquanto todos estavam fora. Talvez nem tivessem notado meu atraso e eu pudesse simplesmente dizer que estava distraído na minha sala a manhã toda. Chegando na empresa, meu plano parecia que ia dar certo: fica tudo vazio por lá nessa hora, só o segurança testemunhou minha chegada, e não perdeu a piada, me perguntando se eu já tinha voltado do almoço. Eu sorri aceitando minha derrota, mas como você já deve ter percebido, o segurança não fez piada alguma.
Entrei na minha sala, liguei o computador… e, sim, meu trabalho da manhã já estava feito. Fiquei vários minutos olhando para a tela, tentando reconciliar minha visão da realidade com o que estava imaginando. Não demorou muito até a porta da sala se abrir. Eu. Trocamos olhares e eu perguntei quem ele era… pergunta estúpida. E sem resposta. Sem pestanejar, eu me vi sendo atacado furiosamente por aquela cópia. Novamente, com as mesmas roupas que eu estava usando. Novamente, eu não gritei ou pedi por socorro. Brigamos por alguns minutos, destruindo minha sala.
Só não sabia que éramos tão ruins de briga. A maioria dos golpes não acertava nada além de ar. Até que eu dei sorte e o vi desmaiado depois de um soco certeiro no queixo, que eu nem sabia que era meu ponto fraco. Ele bateu a cabeça na queda, dava pra ver o sangue. Corri até a entrada, esperando encontrar o segurança. Ele estava do lado de fora, fumando um cigarro. Quando o interpelei, seus olhos saltaram ao mesmo tempo que procurou por sua arma. Eu só disse que ele precisava ver algo e corri para dentro novamente. Ele me seguiu, pedindo-me para parar.
É até clichê, mas… adivinha se meu outro eu estava caído onde o deixei? Vi até o rastro de sangue dele se arrastando para fora dali. Mas, se eu estava na frente da empresa até aquele momento, do prédio ele não tinha saído. Quando fiz menção de procurar em outras salas, o segurança olhou para dentro da minha e imediatamente me agarrou e imobilizou. Com certeza era mais fácil brigar comigo mesmo do que com aquele homem. Fui presa fácil. Tentei argumentar que tinha mais alguém ali com quem eu tinha brigado, mas ele usava um misto de autoridade e condescendência no discurso, sugerindo que o melhor para mim era ficar quieto ali e esperar até a polícia chegar.
E aí, vocês chegaram. Eu tentei e tentei argumentar, mas ninguém me ouviu. Os outros funcionários iam voltando do almoço, presenciando aquela cena: eu algemado e sendo levado para fora. Falsos. Cochichavam entre si, mas nenhum tentou me defender. Era apenas uma atração de circo. Aliás, é isso que você pensa, né? Maluco. Mas eu posso te provar que isso é a mais pura verdade. Tem câmeras de segurança na entrada. Vocês vão me ver entrando duas vezes, sem sair entre elas. Já viu isso, né? Se não tivesse visto, teria feito como todos os outros e nem dado atenção para a minha história. Mas sabe o que eu não entendo? Como eu estou preso a tanto tempo por quebrar móveis?
…
Não é por isso?
…
Eu não matei ninguém.
…
Eu não entrei mancando nessa sala! E esse galo na minha cabeça deve ter sido da briga! Não! Me solta! Eu não confessei nada!
Para dizer que isso está mais confuso que o habitual, para dizer que vai fingir que faz sentido para não me deixar mal, ou mesmo para dizer que aposta que foi o mordomo: somir@desfavor.com
Bebida mal tomada…
Pelo menos Tyler sabia lutar
Tyler Durden era mais esperto.
Regras (1 e 2) !
Mas ele era real?