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Flertando com o desastre: O valor das palavras.

| Somir | | 16 comentários em Flertando com o desastre: O valor das palavras.

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O “amor” de hoje já é sinônimo de achar legal… bacana. As pessoas dizem e escrevem que AMAM qualquer coisa… ou pessoa. A palavra não tem mais um décimo do peso que já teve há algumas décadas. E não me confundam com um romântico: não é nem tanto a banalização do sentimento (que pra muita gente é banal mesmo), é a banalização da gravidade de uma palavra.

Estamos perdendo o significado, e principalmente o PESO das palavras. Estamos como um todo, em diversas línguas… há algumas gerações. Embora eu não seja contra a constante modernização e atualização do léxico nas sociedades atuais, tem muito de preguiça e nivelação por baixo no tanto de palavras que estão sendo destruídas pela “geração web”; não é só a redução no número de palavras, é PRINCIPALMENTE a redução dos significados delas.

O cérebro humano funciona na base das associações. Pega uma ideia, analisa suas relações com memórias e/ou estímulos externos e entrega uma conclusão. De uma certa forma, nosso processador é tão potente quanto o número de associações que consegue fazer… Quando uma pessoa se acostuma a misturar o significado de várias palavras numa conclusão meia-boca só, evidente que ela está perdendo capacidade de raciocínio e compreensão das informações com as quais tem que lidar.

As línguas modernas contam com um monte de palavras, concedo que algumas até redundantes, mas que em sua maioria tentam significar algo único. Variações sutis dos mesmos símbolos, sentimentos e filosofias. Voltando ao exemplo do começo do texto: Amar, adorar, gostar e curtir (já era palavra funcional antes do Facebook, crianças) são verbos que deveriam funcionar como formas diferentes de se exprimir a intensidade de um sentimento positivo sobre algo ou alguém.

Mas vai conversar ou ler um cidadão médio atualmente… Essas palavras aparecem de forma quase que aleatória nas frases, sem a menor preocupação com uma escala de grandiosidade. Tudo se mistura numa sopa de letras onde a ideia média é ter atitude positiva sobre o que se menciona. E esse é um significado muito do sem graça perto das possibilidades que as palavras proporcionam.

Existe um verno ótimo para dizer que se gosta de algo: Gostar. Ela dá toda a presunção de positividade sem exagero que é justamente o que a maioria das pessoas procura ao se expressas nessas situações. As outras que acabam enroladas dentro dessa mesma definição preguiçosa podem dizer MUITO mais do que positividade sem exagero. Adorar, por exemplo, é uma palavra pesada… adoração é algo que denota fascinação, uma quase subserviência que costuma fugir do campo racional.

Não é crime dizer que adora sorvete, e as pessoas vão te entender. Mas puta que pariu, pra que pegar uma palavra dessas para transformar em sinônimo automático de gostar? Se surgir a ocasião de mencionar uma fascinação quase que sobrenatural sobre algo, vai ter que passar meia hora explicando a ideia porque a palavra certa foi roubada por um bando de preguiçosos que nem para pegar um dicionário servem.

Amar então… Todo mundo se ama! É impressionante… A pessoa ama seus pais, ama seus melhores amigos… e ama a batata-frita do restaurante da esquina. Ama os quase desconhecidos que viu por meia hora numa balada… É tanto amor que ele não vale mais porcaria nenhuma quando a ideia por trás dele é maior do que um sinônimo de gostar.

Novamente: Não é crime, as pessoas entendem. Só que esse argumento acomodado de dizer que todo mundo entende também pode ser usado com gestos e grunhidos no contexto certo. Se é festa de deixar o outro presumir tudo o que você pensa, dá para evitar qualquer tipo de comunicação e torcer para dar certo.

E com a mesma facilidade que as palavras de cunho positivo viraram uma mistureba preguiçosa, as negativas também vão pelo mesmo caminho. Se fosse para levar a sério no sentido estrito das palavras todas as brigas de internet, daria para temer por uma grande guerra civil prestes a estourar. Desgostar virou sinônimo de odiar! A palavra que expressa uma das sensações mais poderosas e primais do ser humano descreve músicas de ídolos adolescentes! Ódio não é pouca coisa.

Se você lê ou ouve uma palavra “pesada” dessas, sua mente deveria fazer uma tonelada de associações e modificar a sua impressão sobre todo o resto da frase ou ideia a qual você está sendo exposto. Se tudo o que ela faz é procurar pelo sinônimo na expressão “não gosta”, você PODE estar perdendo o fio da meada nessa troca de ideias. A merda é que muita gente já não liga mais para isso e provavelmente ela só quer dizer “não gosto” mesmo… Mas e se for ódio de verdade? E se a pessoa do outro lado está te dizendo algo tão visceral quanto a palavra deveria expressar? Ela vai precisar cometer algum ato violento para você finalmente perceber? Não é só preocupação fresca com erudição, é todo mundo perdendo lentamente a noção do que está falando ou escutando. E isso pode ter consequências sérias.

E sim, eu sei que alguns de vocês vão argumentar (ou pelo menos pensar) sobre a praticidade de deixar tanta coisa na base da presunção, ainda mais em tempos de torpedos e opiniões de 140 caracteres ou menos. Mas muito se engana quem acha que enfraquecer palavras aumenta a capacidade de se comunicar… Uma palavra no contexto certo economiza parágrafos. É para isso que elas servem mesmo: Para reduzir ideias complexas em símbolos curtos e de fácil compreensão e reprodução. Enfraqueça seu vocabulário e você vai acabar dizendo MENOS com MAIS palavras.

Evolução seria conferir significados ainda maiores nas mesmas palavras que usamos diariamente, e não essa burrice de pegar várias delas e conferir a mesma porcaria de significado. Além disso, é nesse ambiente de preguiça com o que se fala que os nossos tão queridos palavrões estão ficando cada vez mais sem graça. Tem muita gente que quando não consegue passar intensidade com as palavras que conhece, apela para os palavrões. Os palavrões deveriam ser expressões para imprimir dramaticidade nas frases, e não meros substitutos de palavras desconhecidas. “Porra” e “merda” viraram sinônimo de “coisa”, “caralho” acabou como mero ponto de exclamação… “filho da puta” é alguém que (eventualmente) faz algo que você não gosta.

Que merda! Além de deixar os palavrões com uma “consistência pastosa”, beges e sem graça, ainda estão empurrando a falsa presunção de que são sempre refugo de gente sem muito a falar. Irrita quando vejo babacas caírem de paraquedas aqui no desfavor para desvalorizar os argumentos de nossos textos (principalmente no caso da Sally, aparentemente mulher pode menos ainda) só porque leram alguns palavrões… No contexto certo, eles são um elemento de narrativa do caralho! É culpar quem usa direito por causa dos que usam errado só para complementar vocabulário anêmico.

O perigo é o tempo passar e gente que ainda respeita o significado e o “peso” das palavras começar a ser cada vez menos compreendida. Eu que quase NUNCA falo que amo algo ou alguém passo por emocionalmente distante. O que é verdade por outros motivos, mas é uma presunção tosca só por causa de usar as palavras direito. A palavra tem peso e merece respeito.

Não estou imune às minhas críticas, é difícil mesmo se policiar e tentar colocar a intensidade exata em cada palavra, mas a mera preocupação com isso já é um excelente caminho para se comunicar melhor. Palavras e seus significados exercem um fascínio (com o peso que a palavra merece) em mim que acabou virando profissão e hobbie. Mesmo o interesse nas palavras não te blinda de falhas desse tipo. Longe de mim exigir dedicação incansável, mas evitar estragar mais e mais palavras é algo que ajuda não só a sua capacidade argumentativa como diminui a intensidade desse problema como um todo na sociedade.

Se todos puderem colocar no mesmo saco palavras que deveriam ser muito diferentes impunemente, quem perde é a ideia. Fica tudo muito igual, fica muito difícil exprimir conceitos mais complexos… E aí a preguiça bate. O problema não é só você passar ideias genéricas demais para as outras pessoas, o problema principal é que menos e menos pessoas vão ter a base necessárias para fazer as tão importantes associações das quais nossos cérebros dependem.

Cada palavra tem seu significado. Nem mesmo os sinônimos são tão parecidos entre si se você realmente parar para pensar neles. Nem sempre o antônimo é o exato oposto do que você está pensando. Quem conhece mais palavras e mais significados tem mais a dizer, e isso não tem nada a ver com o tamanho de cada discurso ou texto.

Quando se reduz as palavras, reduz-se os significados! E isso é um perigo. Gerações vão chegando nesse mundo onde não só palavras que descrevem tecnologias antigas estão morrendo, mas onde a diferença entre as palavras que exprimem conceitos abstratos e até mesmo sentimentos estão se aglutinando num limitado vocabulário baseado na preguiça.

Acredito que já disse tudo o que queria dizer por agora. E essa é uma sensação muito boa…

Para dizer que amou o texto, para dizer que odiou o texto, ou mesmo para dizer que achou razoavelmente interessante embora não tenha te surpreendido muito: somir@desfavor.com


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