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Desfavor Explica: Falácias. (Parte 3)

| Somir | | 82 comentários em Desfavor Explica: Falácias. (Parte 3)

Com a parte 3, terminamos essa série sobre argumentos sem sustentação lógica. Talvez eu volte a escrever sobre o assunto, mas por enquanto cobrimos grande parte das mais comuns e repetitivas nesse mundo da retórica furada. Vamos logo às escolhidas!

MEIO TERMO

É comum se dizer que a verdade costuma estar exatamente entre dois pontos de vista discordantes. Que o meio termo é a posição mais racional… Mas nem sempre é assim que a banda toca numa discussão. Procurar um meio termo a qualquer custo pode gerar uma falácia. Apesar de não ser tão virulenta quanto as outras que escolhi para esta série de colunas, seu reconhecimento é muito importante. E por um bom motivo: Normalmente são as pessoas mais bem equipadas para uma discussão que acabam caindo nessa armadilha lógica.

Gente histérica e/ou mal intencionada numa troca de ideias raramente vai pecar pelo excesso de cuidado com o equilíbrio do argumento, mas quem está tentando dirimir um confronto e defender a racionalidade fatalmente vai passar perigosamente perto da falácia meio termo. Na sanha de criar um “terceiro ponto de vista” para avançar a discussão, pode-se criar um monstro ilógico chato de derrubar.

Exemplo: “Somir defende o envio imediato de todas as pessoas que se dizem paranormais para campos de concentração. Zé Ruela rebate dizendo que isso seria um crime contra os direitos humanos, e que muita gente se diz paranormal o faz com boas intenções e não faz mal a ninguém. Zé Bovino, percebendo o impasse, sugere que apenas os ditos paranormais que exploram financeiramente pessoas desesperadas sejam enviados para campos de trabalho forçado…”

Independentemente da sua posição sobre campos de concentração, há de se convir que tem um pouco para os dois lados no argumento de Zé Bovino. Mas é um meio termo? Mesmo se Zé Ruela aceitar a ideia, ainda seria uma violação dos direitos humanos. Mesmo se Somir aceitar, ainda sim não puniria o misticismo em geral… Estelionato já é crime. Os dois pontos originais não fazem mais parte do argumento.

Se ainda sim ficou confuso (essa é complicada mesmo), pense numa mulher se dizendo “ligeiramente grávida”. Gravidez não é um conceito parcial, ou a mulher está, ou não está.

Procurar meio termo onde ele não é possível gera uma ideia ilógica (dentro da discussão), mas muito capaz de agradar as duas partes. Esse é o perigo… E como é de costume que quem cometa essa falácia queira fazer algo positivo, cuidado ao reagir negativamente. O segredo é pegar o “ponto que não pode variar” e ficar nele até essa falácia morrer de morte natural.

NON-SEQUITUR

Non-Sequitur vem do latim “Não Segue”. É uma das, senão a falácia mais usada de forma não intencional por aí. Como o próprio nome diz, a “non-sequitur” ocorre quando a conclusão das premissas não tem porra nenhuma a ver com elas. Num exemplo divertido: “Peixes nadam, aves voam… portanto, macacos andam de bicicleta”.

Sim, isso foi um exagero incrível, mas é excelente para demonstrar a fisiologia de uma falácia tão comum. Você tem premissas lógicas razoáveis, mas conclui algo nada a ver delas. Evidente que não vai ser tão fácil assim reconhecer uma no dia a dia, mas vamos tentar usar mais um exemplo, bem mais sutil:

Exemplo: “Maria Ruela diz que homens tem mais testosterona, e que testosterona aumenta o desejo sexual. Portanto, ela defende que os homens são todos canalhas.

Por mais que eu saiba que 99% das leitoras vão concordar cegamente com essa afirmação, ela é ilógica (talvez por isso…). As premissas, por mais razoáveis que sejam, não sustentam a conclusão. Desejo sexual aumenta a propensão de canalhice? Definiu canalhice? Eliminou causas adicionais? Considerou exceções? Pode até ser uma opinião bacana de soltar numa conversa de “tapinhas nas costas”, onde se sabe que vão concordar com você, mas é uma desgraça para convencer dissidentes. Muitas discussões desabam prematuramente por causa de non-sequitur. Quem solta a falácia acredita estar correto por motivos alheios ao que argumentou, quem rebate tem a sua frente um argumento furado. Conversa de maluco!

Quando a conclusão confirma nossas opiniões, o risco de deixar passar reto uma falácia tão óbvia quanto o non-sequitur aumenta consideravelmente. Essa falácia também costuma aparecer de forma inversa, quando alguém tenta justificar um ponto de vista confrontado. A pessoa acha que está explicando sua ideia, mas na verdade está apenas colocando premissas perdidas no meio de uma discussão.

Non-sequitur é mais comum do que se imagina. Cuidado. Para desarmar, FUJA da conclusão como o diabo foge da cruz e fique só nas premissas. O segredo aqui é descobrir o caminho não mencionado que a outra pessoa fez para chegar até aquela conclusão. Que ela é ilógica está claro PARA VOCÊ.

PRETO E BRANCO

OU você concorda com uma coisa, OU você concorda com o completo inverso dela. É o erro lógico complementar da falácia “meio termo”. É uma das falácias mais abertamente montadas como armadilha, porque provavelmente vai te complicar se você concordar ou discordar.

Perdoem-me o machismo, mas é um clássico feminino: “Se você não me ama do jeito que eu quero, você não me ama”. Sim, o exemplo está bebendo um pouco da fonte da falácia emocional, mas o foco aqui é polarizar as respostas possíveis. Ou é uma coisa, ou é outra. O cidadão aqui fica sem escapatórias, já que qualquer resposta que não confirme uma expectativa de reação obrigatoriamente cai no lado oposto.

Mas nem só de chantagem emocional barata vive essa falácia, na verdade, ela é muito comum na maioria dos assuntos “universalmente polêmicos” como religião, política, sexo, futebol… Se você é ateu, você não segue os preceitos morais religiosos; se você não vota no PT, defende as elites contra os pobres; se você não acha uma mulher bonita, você é viado…

Também parece escorregador, mas atenção à polarização: OU é uma coisa, OU é outra. Essa falácia é colocada de forma clara por quem está aplicando-a. Não se presume nada, apenas te faz escolher. Seguindo os exemplos do parágrafo anterior:

“Você é religioso ou não segue nenhum código de moral?”, “Você vota no PT ou quer mesmo é explorar os pobres?”, “Você acha essa mulher bonita ou gosta mesmo é de macho?”. Se sua resposta é nem uma coisa, nem outra, você está lidando com uma falácia preto e branco.

Fácil de explicar, fácil de perceber, fácil de fazer… Mas e para se livrar disso? Ninguém disse que seria tudo fácil. Para escapar dessa armadilha, você tem que explicar seu ponto sem responder a pergunta. E é aí que a coisa engrossa: Porque a pessoa vai continuar te perguntando a mesma coisa… Dê qualquer munição e a pessoa te encaixa numa das categorias que acabou de inventar.

E no caso (comum) de ser alguém incapaz de seguir uma discussão racional, ela vai usar sua negativa de responder para auto-proclamar vitoriosa. E se o público também não for muito… brilhante, vai parecer que você perdeu mesmo.

Minha dica: Não negocie com terroristas. Gente que argumenta com essa falácia não merece o prazer de avançar uma discussão. Seja firme, não entre no jogo dela.

RED HERRING

Red Herring é uma falácia baseada em distrair o adversário no meio de uma discussão. O nome dessa falácia se refere a um tipo de peixe preparado de forma especial, cujo processo o deixa com um cheiro forte e aspecto avermelhado. Mas ênfase no cheiro forte… O cheiro que mascara outros cheiros ao seu redor. Em português, o nome mais comum para essa falácia é “Olha o avião!”. Vamos usar um exemplo bem didático:

MARIA RUELA: Onde você estava a noite passada?
ZÉ RUELA: Olha o avião!
MARIA RUELA: Onde?
ZÉ RUELA: Perdeu…
MARIA RUELA: Sobre a noite passada…
ZÉ RUELA: Boeing!
MARIA RUELA: O quê?
ZÉ RUELA: Acho que era um Boeing.
MARIA RUELA: Como você sabe que era um Boeing?
ZÉ RUELA: O formato das asas… Você sabia que eu já fui piloto?
MARIA RUELA: Sério?
ZÉ RUELA: Sério. *sorriso falacioso*

O exemplo foi cretino, mas é muito importante que não confundamos Red Herring com Espantalho. Apesar dos dois desviarem o foco da discussão, criando outro argumento, no Red Herring não há a menor necessidade de se desvirtuar algo que a outra pessoa já está dizendo. Imagine um pai distraindo a atenção do filho pequeno com a promessa de sorvete logo após uma incômoda pergunta sobre sexo, ou qualquer desenho do Pernalonga!

Mas é claro que não precisa ser non-sense, Red Herring pode ser escrotamente parecido com uma discussão lógica, desde que se misture discretamente com a argumentação original. Não sou de fazer isso, mas vou transcrever um exemplo perfeito encontrado no ceticismo.net:

“Você pode até dizer que a pena de morte é ineficiente no combate à criminalidade, mas e as vítimas? Como você acha que os pais se sentirão quando virem o assassino de seu filho vivendo às custas dos impostos que eles pagam? É justo que paguem pela comida do assassino de seu filho?”

Se a pessoa ouvindo ou lendo isso entra na discussão sobre as vítimas, o argumento original deixa de ser tocado. No lugar dele, um provável tema mais seguro para quem está usando essa falácia. Existem duas boas formas de lidar com essa falácia:

  1. Ficar no assunto original, ignorando o desvio ou dando um corte seco com uma resposta curta;
  2. Separar a discussão em tópicos. Assim cada um deles é resolvido à parte. Em texto é bem mais simples, mas dá para fazer “ao vivo” também. Basta deixar claro que reconheceu o novo tema e que vai tratar dele assim que terminar a discussão já iniciada. A outra pessoa fica amarrada, porque você pode “cantar vitória” sobre o ponto do qual ela fugiu se ela insistir em ir para o desvio. É meio babaca essa coisa de se pronunciar vencedor, mas tem uma margem de acerto enorme nesses casos.

TU QUOQUE

Ou, “Você também”. Dizer que uma pessoa também faz uma coisa que está criticando não significa necessariamente que a crítica não tem fundamento. No máximo, explicita hipocrisia. Esta falácia vai aparecer muitas vezes no meio de qualquer discussão com uma carga emocional mais pesada.

Tu Quoque é clássico de DRs (Discussões de Relacionamento). Comum que os dois membros do casal troquem acusações sobre o mesmo comportamento, mas que no final das contas não cheguem a conclusão nenhuma. Oras, falácia existe para isso mesmo.

O tema de uma discussão dificilmente é sobre QUEM está fazendo, é sobre O QUE ela está fazendo e suas implicações. A não ser que você seja um detetive, suas argumentações dificilmente passarão pela necessidade de descobrir se alguém faz ou deixa de fazer algo.

Mesmo a pessoa mais hipócrita do mundo pode estar certa. O argumento é soberano, como já tratamos na falácia Ad-Hominem. Dizer “você também” pode até ser agradável numa briga, mas não resolve porra nenhuma. Tu Quoque costuma vir de quem está na defensiva, e se livrar disso tem uma carga extra de cuidado para não deixar a possibilidade de conciliação ainda mais distante… Funciona admitir o erro (se for o caso) e usar a auto-crítica para sentar a pata (mesmo que com carinho) em quem está usando a falácia. Você critica a pessoa se criticando… É perfeito para desarmar situações críticas.

E se você NÃO for culpado do mesmo crime, a outra pessoa está mentindo ou enganada mesmo. Resolva como resolveria normalmente. Às vezes nem vale a pena desmentir…

FALÁCIA DAS FALÁCIAS

E para acabar esse giro pelas falácias, uma das mais divertidas: A falácia das falácias. A ideia é simples: Apontar uma falácia NÃO é um argumento. Você ainda precisa desenvolver sua ideia. Gente que responde numa discussão só apontando as falácias não está exercendo sua retórica e não vai chegar a lugar algum.

Exemplo: “Zé Reaça diz que Somir não pode defender a descriminalização do aborto porque é ateu. Somir responde apontando Ad-Hominem e Non-Sequitur na argumentação de Zé Reaça… Zé Reaça reage explicando por que não são falácias…”

E o argumento? Pra onde foi? Apontar falácia pode ajudar em alguns casos, mas até onde eu já experimentei, responder desarmando-a sem avisar que a percebeu é muito mais produtivo para o assunto. Apontar falácias por apontar é preguiça, desinteresse ou distração.

E por enquanto é só. Se faltou alguma que você acha importante, OLHA O AVIÃO!

Para dizer que agora começou a entender por que todas suas DRs não dão em nada, para reclamar que a “falácia das falácias” cortou seu barato, ou mesmo para perguntar onde diabos está esse avião: somir@desfavor.com


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