
Personalidade social.
| Somir | Flertando com o desastre | 6 comentários em Personalidade social.
Seguindo com a semana Más Influências, eu quero falar sobre o curioso e perigoso fenômeno de gente que acaba ficando muito antissocial mesmo se comunicando o tempo todo e não dando sinais para as pessoas mais próximas. Como reconhecer alguém se perdendo em comunidades online tóxicas se fora delas a pessoa parece “normal”?
Tempo de leitura: 10 minutos.
Resumo da B.A.: o que adianta falar de solidão se ignora a solidão da pessoa trans? Transfobia explícita!
Normalmente os nossos instintos são bons para saber reconhecer quando estamos funcionando como seres sociais. Nosso macaco interior fica feliz quando está interagindo de uma forma bacana com outras pessoas e fica triste quando não está. Mas no meio do caminho tinha a internet… e o instinto ficou meio confuso. É preciso pensar um pouco mais na hora de analisar se alguém está num caminho perigoso de isolamento e radicalização.
O que eu vou escrever aqui não é teoria acadêmica de Psicologia, pode até bater com alguns pontos, mas é muito mais baseado em experiência pessoal. Eu percebi que a internet é muito poderosa para criar separações entre personalidades do que já fazemos normalmente. Explico: existe uma tendência de você mostrar partes diferentes de quem é de acordo com o ambiente que está.
O jeito que você é com uma turma de amigos é diferente do jeito que você é com sua família mais próxima, com namorados e namoradas, colegas de trabalho… existem contextos. Não tem nada a ver com falsidade, não necessariamente, é que temos funções diferentes em cada grupo. Algumas partes do que você é são mais exigidas com algumas pessoas, outras menos. E a gente tende a se acostumar, mesmo que não tenha nada de calculado nisso. Só acontece.
Acostuma-se tanto que até esquece que as outras pessoas também são assim. Se você vê alguém fora do “seu” contexto, pode achar estranho. Aqueles seus amigos e amigas que têm 12 anos de idade mental ao seu lado são os pais caretas diante dos filhos. Pelo menos deveriam. Em tese é sempre a mesma pessoa, mas mostram facetas diferentes de acordo com o contexto.
Com a internet, apareceu mais uma ou muitas facetas diferentes que podem ser expressas: é uma piada comum que existe personalidade de LinkedIn e personalidade de Instagram. Tem seu fundo de verdade. As comunidades online podem fazer a mesma coisa que as comunidades de contato físico.
Tudo isso para dizer que o jovem calminho e educado de casa pode ter sim outras caras na internet. Mas não deixam de ser pessoas como todas as outras pessoas: as máscaras mudam, mas quem está por trás não. O exemplo da série Adolescência que inspirou essa semana temática é importante porque fala sobre como os pais não tinham noção do que estava acontecendo por trás da personalidade que viam em casa.
É a mesma pessoa, mas ela explora lados diferentes do que pode ser quando está em comunidades diferentes. Eu nem vou tentar entrar no lado de que todo mundo tem o potencial para ser ruim porque como o público-alvo desses textos é quem tem que lidar com o jovem, não é um lugar bacana da mente imaginar filhos ou crianças próximas com potencial para serem seres humanos terríveis.
Vamos pensar por um ângulo menos doloroso: existem alguns padrões perceptíveis nessas várias personalidades que temos. Em linhas gerais, quase todo mundo é bem consistente em como se mostra para pequenos grupos de pessoas muito conhecidas e como se mostra para grandes grupos de desconhecidos. Mudam os detalhes, mas não a essência.
Por isso, podemos pensar em separar a personalidade íntima e a personalidade social da pessoa. Olhar para a íntima, aquela que se mostra para os pais, por exemplo, não explica como funciona a social, e vice-versa. A sua questão como pai e mãe sobre a personalidade íntima tem muito mais a ver com os textos que a Sally escreveu. Atenção, autoconhecimento, exemplos.
A personalidade social tem mais a ver com o que eu estou escrevendo: o jovem (e até mesmo o adulto) que está ficando neurótico e radicalizado por ideias como redpill e mentalidade incel vai dar sinais mais fortes na personalidade social. Justamente um dos pontos cegos de quem está vendo a pessoa só em casa, na sua personalidade íntima.
É natural buscar socialização. Quando você percebe que uma pessoa está fugindo dessas oportunidades, é para chamar sua atenção. Existem pessoas que gostam mais de introspecção e atividades solitárias, mas isso é diferente de fugir de socialização. A internet permite o que eu chamo de socialização fantasma: a ilusão de que está com algum grupo de pessoas por estar apenas visualizando o que elas fazem.
Mesmo a pessoa viciada em redes sociais pode estar do lado “seguro” da parte social, se ela estiver buscando ativamente contato e conexão com outras pessoas. Não é bom jeito de tocar a vida, mas não é o mesmo buraco de quem começa a se perder em socialização fantasma.
A pessoa pode estar apenas observando outros se comunicarem na internet e no máximo reagindo sem se expor, mesmo que passe o dia todo numa rede social. O moleque que está o dia todo no Discord pode não estar socializando de verdade. Pode estar apenas consumindo conteúdo, mantido como um zumbi diante da tela. É meio como a geração que cresceu vendo TV, mas existem um bilhão de canais.
Como é bem complicado ficar em cima do jovem na internet para ver se ele está se comunicando de verdade, isso é, com troca de informação, é importante notar os sinais fora da tela. Quem se acostuma com socialização fantasma não age mais de forma a gerar laços com outras pessoas. Porque é muito confortável ser apenas um expectador, sem se arriscar com a expectativa ou rejeição do outro.
Essas são as pessoas que acabam perdendo a cabeça em comunidades online baseadas em “inimigos comuns”, porque a comunidade que fica demonizando as outras pessoas vai gerando mais e mais rejeição prévia na cabeça de quem está apenas observando. O jovem começa a ter medo de relações que não tenham esse grau de controle da tela.
Esse medo você consegue quantificar observando uma pessoa. Isso é, se você souber que deve procurar por isso. Existe uma tendência do jovem buscar seus grupos e querer passar tempo com eles. E o jeito que ele passa esse tempo vai te indicar o que está acontecendo: é relacionamento com troca ou não?
Mesmo o moleque terminalmente online ainda pode estar socializando com troca. Passar o final de semana num jogo online falando com os amigos é um alívio, porque é socialização que vai e volta, que tem feedback. Aquela pessoa que não desgruda o olho do celular, mas está falando com 20 pessoas diferentes, é viciada em celular, mas não em socialização fantasma.
E se o jovem tem alguma atividade sem hora marcada e sem obrigação com outros seres humanos, que ele procura ativamente, já está basicamente imune à radicalização do tipo incel. Mesmo aquele adolescente que fica fazendo pose de malvadão e usa roupa escura, se ele estiver indo para algum lugar para ficar de bobeira com amigos reais, já saiu da categoria de risco de incel e similares. Pode dar todo tipo de problema diferente, mas são aqueles clássicos de vida real.
Socialização fantasma é o primeiro sinal. Aliás, é o primeiro sinal de quase todos os problemas mentais de viciados em internet, inclusive de adultos. É que normalmente adultos tem outras formas de socializar, então podem ser zumbis mais impunemente na internet. Mas o jovem? Ele tem menos opções, ele tem menos liberdade, menos dinheiro, menos conhecidos… a internet pesa mais para quem tem um padrão de vida que o deixa mais preso em casa hoje em dia.
Pelo o que já aconteceu comigo em algumas fases da adolescência (tendência a isolamento é especialidade da casa) e pelos relatos que vejo de muitos com todas as características de incel, o primeiro passo é essa desconexão da forma habitual de interagir com o outro, essa passividade da socialização fantasma que apenas observa e reage. É ficar horas e horas apenas consumindo conteúdo que não implique resposta do outro lado.
Muita gente assim acaba viciada em streamers, porque é uma relação desigual, onde você pode só observar e ter a impressão de estar com alguém. Pornografia “moderna” também tem essas características, com produtores de conteúdo adulto fingindo proximidade com os consumidores. Se o seu jovem está o dia inteiro na frente de uma tela e não parece reagir a nada, não fala, não ri, não quer mostrar nada para os outros… começou um processo de fechamento social.
E se você perdeu essa fase, ainda vai poder perceber que ele não tem nenhuma vontade de iniciar contatos sociais. Não tem interesses que exijam contato humano, não tem nem vontade de sumir sem hora para voltar. Repito: é diferente de ser caseiro ou mais introspectivo. Quem gosta de ficar em casa ainda tem o instinto de socialização, só é menos conectado com estar na rua. Não conhecer amigos(as)(es) do filho(a)(e) é sinal vermelho, vermelhíssimo. Podem ser uns imbecis, uns bichos estranhos, mas que pelo menos sejam reais e respondam. Se a personalidade social da pessoa atrofiar, a íntima não dá tantos sinais assim.
A personalidade íntima da pessoa pode ser super tranquila, mas se a personalidade social dela estiver nesse processo de fechamento, ela vai se tornando alvo mais fácil para se unir com outros por ódio (medo) de mulher, por exemplo. É bem a lógica de culto: para a pessoa ficar fanática de verdade, o culto precisa cortar da vida da pessoa família e amigos, porque eles vão chamar atenção para os problemas.
O culto incel ou redpill não é organizado, mas pega seus membros no mesmo ponto de isolamento. A forma com a qual esses grupos mais radicais e escrotos agem entre si ainda é baseada em socialização fantasma. Vão justificando uns para os outros por que se afastaram da sociedade e formando laços igualmente fantasmas entre eles. Porque socializar com quem te diz que você está certo ao não socializar é meio como discutir democracia com defensores da ditadura…
Só reforça as ideias distorcidas geradas pela solidão, só aumenta o valor dessa socialização de mentirinha sem troca. E o diabo mora na vida social vazia. É quando as pessoas ficam mais neuróticas, assustadas, preconceituosas… se você só enxerga monstros no mundo, vai ficar escondido e sempre com uma pedra na mão.
A personalidade íntima da pessoa pode ficar superficialmente parecida durante esse processo todo. Por isso que existem mesmo esses casos de jovens que se radicalizam, mas pais e pessoas próximas não percebem. É para prestar atenção se a criança e o adolescente estão formando laços reais com outras pessoas, e se não estiverem, dar seu jeito de empurrar o bicho para fora do ninho. Como fazer isso eu não sei, não tenho filhos. Se você tiver certeza que sabe muito mais o que fazer.
Eu só sei que muito por causa de terceiros, eu fui empurrado gentilmente na direção de relações de troca com outras pessoas diversas vezes na vida. Terminei caseiro e introspectivo como é meu jeito mesmo, mas sem raiva e sem propensão à radicalização. Não é papo de boomer reclamar que o jovem está o dia inteiro na frente da tela se o jovem estiver matando sua personalidade social e só reagindo bovinamente a conteúdo de influencer e streamer.
Não é isso que faz alguém virar incel (tem outros caminhos ruins), mas esse corte de relações com outros que não sejam pessoas obrigatórias (como pais e colegas de escola) é o passo comum que toda essa gente doente da cabeça dá em algum momento.
Eu não sei como você vai fazer, mas sei que você precisa fazer se perceber os sinais. Seja chato(a), mas faz esse bostinha sair de casa ou no mínimo ter uma turma de amigos e amigas que responda quando eles falam. O bostinha aqui é prova de que isso ajuda bastante.
Ela geralmente fala tanta merda apenas “por lolz” que não acredito que vou citar, mas:
https://www.youtube.com/watch?v=rQv8VuLpKN4
Uma “produtora de conteúdo”, e só um vídeo de exemplo, de algo que influência MUITO nessa “evangelização”: a solitude masculina.
Peguei um dos exemplos mais rasos ao falar do assunto só pra deixar claro que não é algo oculto a ponto de poucos saberem e nem algo que deve ser subestimado.
E não, não acho que tenha tocado no assunto. Mal falou sobre esse problema.
É literalmente só chegar.
É literalmente só chegar.
Proibir celular até 18 anos, proibir redes sociais, e só deixar usar computador monitorado seria uma solução?
Celular e redes sociais são pacotes básicos de socialização hoje em dia. Teria o efeito contrário e criaria uma pessoa no mínimo estranha.
Por isso que tem essa sutileza de perceber se a socialização que acontece é real (com resposta do outro) ou fantasma (sem resposta do outro).
Cantarolando:
“(…) And in the naked light, I saw
Ten thousand people, maybe more
People talking without speaking
People hearing without listening
People writing songs that voices never shared
And no one dared
Disturb the sound of silence
“Fools” said I, “You do not know
Silence like a cancer grows
Hear my words that I might teach you
Take my arms that I might reach you”
But my words, like silent raindrops fell
And echoed in the wells of silence…