Skip to main content

Desfavor da semana: Relações Públicas.

| Desfavor | | 87 comentários em Desfavor da semana: Relações Públicas.

“Elize Matsunaga, 30, afirmou em depoimento nesta quarta-feira que matou o marido, Marcos Kitano Matsunaga, 42, após uma discussão conjugal por conta de uma infidelidade que teria sido descoberta por ela. Ele era diretor-executivo da Yoki e foi encontrado esquartejado no fim do mês passado.” FONTE

Mata, mas não esquarteja! O caso que monopolizou as páginas policiais da imprensa tupiniquim tem todos os ingredientes de desfavor da semana.

SOMIR

Devo, não nego. Pago quando puder.

SALLY

Casais se matando não são propriamente novidade. Todos os dias em barracos de favelas e bairros pobres tem gente se matando. Mas não dá notícia, porque as pessoas pobres são vistas como bicho e não como ser humano, o que faz com que não despertem empatia e compaixão. Alias, nada nessa historia tem a ver com empatia e compaixão. A atenção que este caso está recebendo é fruto de falta do que fazer e sadismo camuflado por curiosidade.

A história contada pela defesa é bem comum: mulher destratada pelo marido de diversas formas chega a seu limite e quando descobre (mais) uma traição seguida por uma série de ofensas, agressões físicas, verbais, ameaças e humilhações, perde a cabeça e descarrega uma arma no marido. Se a história parasse por aí, viraria assunto por no máximo uma semana e muita gende daria razão a ela. Mas não, teve um detalhe delicioso: a moça cortou o marido em pedaços e os colocou em uma mala.

Pronto. Virou assunto. Um belo filtro para detectar sádicos desocupados que acompanham detalhes sórdidos da história em vez de estudar, ler um livro, cuidar dos filhos ou da sua casa. Pessoas que perdem horas do seu dia acompanhando um crime, satisfazendo seu sadismo, especulando, achando, opinando e provavelmente classificando esta mulher em algum tipo de doença. Ridículo. Ridículo e hipócrita, porque muita gente no lugar dela teria feito o mesmo. Relacionamento maduro não é o forte de brasileiros.

A história em si é um aglomerado de desfavores. Para começo de conversa, tudo que se tem é uma confissão em delegacia. Eu mesma confessaria ter matado meu marido (apesar de não ser casada) se fosse levada para uma delegacia aqui do Rio. Não estou dizendo que ela não matou o marido, ela provavelmente matou, mas porra, não dá para dizer que alguém matou “porque confessou em uma delegacia”. As pessoas tem que se habituar a ter um mínimo de desconfiômetro. Confissão em delegacia VALE MERDA, será possível que as pessoas só aprendam isso quando acontece com elas?

Para que você seja chamado a uma delegacia basta que alguém mande uma carta anônima que seja dizendo que você cometeu um crime. Pronto, você pode responder a um inquérito, você pode ser chamado a uma delegacia. E lá você não vai ter direito a produzir provas para se defender, apenas vai esclarecer o que o delegado quer saber. Se calhar dele ser um filho da puta e ter algum interesse direto ou indireto em te condenar, você pode sim ser torturado (ou membros da sua família) para assinar uma confissão. Não é lenda, acontece todos os dias e fica impune.

Então, de uma vez por todas, aprendam algumas coisas sobre delegacia: a pessoa investigada em um inquérito não está respondendo a processo (pode ser que se conclua que nem ao menos há fundamento para um processo), a pessoa pode ter passado por barbaridades que você nem imagina lá dentro, porque SIM, isso acontece todos os dias e, por último, qualquer um de nós pode ser investigado em um inquérito e tem direito à presunção de inocência até que exista uma sentença judicial em um processo com contraditório e ampla defesa.

Mas tudo bem, admitamos que ela de fato matou o marido. Se a história fosse contada de outra forma, sob a ótica dela, talvez na forma de uma novela ou filme, expondo todas as agressões, humilhações e injustiças que ela passou nas mãos do marido, muita gente apoiaria a morte dele no final das contas. Não que fossem torcer para ela matá-lo, mas se ela fosse uma mocinha de novela, todos compreenderiam a gota dágua que transborda o copo e o tiro desferido em um momento de raiva. Mas não, ela não vai ter o perdão da opinião pública, porque matar pode, matar as pessoas eventualmente perdoam, mas esquartejar não. Oi?

Não estou levantando a questão se ela deve ser perdoada ou não, se é compreensível ou não. Estou dizendo que em situações muito similares de mulhers abusadas e humilhadas pelas canalhices e agressões físicas do marido acabam por enfiar-lhes um tiro nos cornos o povão perdoa e algumas vezes até bate palmas. Mas se esquartejar não, aí vira erro. Qual é a lógica desse povo? Tá bom que ninguém tentaria esconder a merda que fez!

A história toda foi um desfavor. A esposa e o Picadinho se conheceram pela internet. É isso que você ganha quando conhece pessoas pela internet: você pode acabar se relacionando com alguém que vai te dar um tiro, ou pior, você pode engatar um relacionamento com Siago Tomir. Não contentes em se conhecerem pela internet, casaram e, apesar dos maus tratos, agressões, chifres e humilhções ainda fizeram um filho. Podia dar certo uma história dessas? Não podia. Mas em vez de focar no caminho torto que terminou mal para alertar a todos que se portem de forma diferente em tais situações, todos se focam nos detalhes do esquartejamento e julgam com um rigor… como se nunca tenham estado em um relacionamento disfuncional como esse.

Eu sempre digo e vou morrer repetindo: qualquer um de nós pode sentar no banco dos réus de um Tribunal do Júri. Qualquer um de nós pode matar alguém. Todo mundo tem seu ponto de descontrole, que quando alcançado, nos destrava para praticar uma atrocidade. Muitos tem pontos de descontrole mais fáceis de ativar e outros mais difíceis, mas não se engane, somos bicho. Todos nós podemos matar alguém um dia. Não empine o nariz para quem matou alguém em um crime passional, sinta pena da pessoa não ter pulado fora da situação enquanto ainda era tempo, enquanto ainda tinha controle.

Sobre o esquartejamento… Meus Queridos, temos instinto de sobrevivência e preservação. Se você faz uma merda dessas com um filho pequeno para criar, você não quer ser pega. Vocês já estiveram em uma situação onde sua vida toda poderia ruir e poderiam tirar seu filho de você? Será que você não tentaria encobrir um crime que cometeu de todas as formas possíveis para se safar? Eu certamente sim. Se eu perdesse a cabeça e matasse um filho da puta que eu achasse que merecia muito morrer, eu faria de tudo para me safar e não ser presa.

Você acaba de dar um tiro nos cornos de um filho da puta que faz anos te trai, te bate, te ameaça e te humilha, que inclusive tinha acabado de te bater e te chamar de puta. No seu prédio tem câmeras. Você faz O QUE? Liga para a polícia e se entrega para que tirem sua filha de você e te tranquem em uma cadeia? Dá um tempo, ninguém faria isso. O instinto de sobrevivência faz com que a gente tente esconder a merda que fez. Matar foi errado, ela deveria ter se afastado dele. Mas esquartejar foi puro instinto de preservação. Mas que caralho, ele já estava morto mesmo!

Então, vamos combinar, o que essa moça fez (se fez) é errado, é crime e deve ser punido como manda a lei. Mas você não está assim tão distante dela. Para salvar sua própria pele, talvez você fizesse igual ou pior. Dizer que ela tem que ser punida, ok. Mas aproveitar uma desgraça que aconteceu porque uma infeliz não conseguiu sair de um relacionamento cagado e deu merda para se sentir superior… feio, muito feio. Quem nunca esteve em um relacionamento de merda que podia ter causado transtornos?

Anota aí: se essa historia for bem contada, essa moça é absolvida. Tenho certeza de que se eu pegasse esse Júri eu absolveria ela (não estou me promovendo, mesmo que me ofereçam não vou pegar, estou apenas dizendo que não é um caso difícil). Em vez de se deliciar sadicamente com a desgraça alheia as pessoas deveriam cuidar um pouco de suas vidas e olhar um pouco para seus próprios rabos, porque boa parte das pessoas que estão jogando pedras poderiam muito bem ter passado por aquilo que essa moça está passando e por pura sorte não aconteceu.

Lamentável que as pessoas encarem crimes como circo, como distração, como passatempo. Mais lastimável ainda que acreditem em qualquer coisa vinda de uma delegacia merece credibilidade, ou então que algo vindo da imprensa, que tem interesse em faturar em crimes assim. Voyeurs de sangue, gente que precisa se comparar com uma assassina para se sentir boa pessoa, gente que comete o mesmo erro de permanecer em um relacionamento explosivo e perigoso e mesmo assim se sente no direito de apontar o dedo apenas porque teve a sorte de não passar pela mesma desgraça.

O povo está se portando pior do que ela. Esta moça errou, se sujeitou a uma situação que a fez perder o controle em vez de se afastar, mas no momento em que ela errou, ela estava fora de si de raiva. Já os voyeurs que estão se deliciando com isso o fazem de cara limpa, sem estar tomado por forte emoção nenhuma. A moça que em um momento de descontrole deu um tiro no marido vai ser punida por seu ato, já todos os babacas que estão fazendo disso um entretenimento, um lazer, ficarão impunes. Usar ISSO como lazer e distração é uma vergonha, não assistir e comentar A Fazenda.

Para perguntar se eu nunca vou me conformar com o veto ao meu Plantão, para dizer que você seria incapaz de matar alguém e chamar a atenção de Gezuiz-Godzila fazndo-o querer te provar o contrário ou ainda para dizer que compreenderia se eu tivesse matado e esquartejado o Somir: sally@desfavor.com


Comments (87)

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado.

Relatório de erros de ortografia

O texto a seguir será enviado para nossos editores: