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Flertando com o desastre: Minha luta.

| Somir | | 38 comentários em Flertando com o desastre: Minha luta.

Não, não escrevi o texto nas catacumbas de uma prisão bávara… Hoje eu pretendo desenvolver um tema que desconfio que não será muito popular: A ilusão de que suas dificuldades pessoais são mais… difíceis que as alheias. E como isso acaba moldando boa parte de nossa muito menos boa sociedade. Pronto para o desafio de encarar uma coluna dessas? Pegue um café e

Você é único. Não pretendo disputar isso, caro impopular. Por uma série de variáveis que vão muito além da genética, cada pessoa é uma mistura muito específica de características, ideias e opiniões. O que me interessa aqui é a profundidade dessas variações. Somos, pouco mais ou pouco menos, sete bilhões neste planeta.

Permitam-me uma nerdice: De uma forma mais… exata… de enxergar as coisas, podemos considerar que cada ser humano é uma fração do total de pessoas vivendo no planeta. Eu ou você somos um número decimal com nove casas depois da vírgula. Isso é relevante porque por mais que sua vida tenha tomado rumos curiosos, a chance de muitas outras pessoas nesse mundo terem passado por experiências quase iguais ainda sim é muito grande.

Principalmente porque não é como se vivêssemos realmente isolados. As inúmeras comunidades espalhadas pelo mundo tem o hábito de exigirem alguma conformidade de seus membros. Seja por questões financeiras, políticas, religiosas ou ideológicas, as pessoas acabam tendo vantagens e problemas muito parecidos com aqueles que os cercam.

E mesmo quando isso não é “herdado”, não é nem um pouco incomum que busquemos essa conformidade, principalmente na vida adulta. O desfavor é um microcosmo dessa tendência: Podemos discordar muito, mas na média, temos problemas e preocupações que não se distanciam tanto assim.

Só que essa linha de pensamento acaba nos levando a noção de que na verdade a vida dos outros não é tão diferente assim. Quando você acorda cedo de saco cheio do seu trabalho, milhões estão sentindo exatamente a mesma coisa, provavelmente mais ou menos na mesma hora. Quando você leva uma pancada, provavelmente tem pelo menos uma outra pessoa no mundo sofrendo praticamente a mesma coisa…

Poderia passar páginas e páginas listando exemplos e as probabilidades dos fatos estarem acontecendo de forma quase que idêntica para outra pessoa nesse mundo ao mesmo tempo. Eu sou chato, mas nem tanto. O que eu realmente acho chato, contanto, é que essa linha de pensamento leva a uma desanimadora falta de variedade de fatos na vida de uma pessoa.

A chance de algo realmente estimulante e inusitado acontecer no dia-a-dia é muito menor do que o que desejaríamos. Não há tanta variedade de comportamentos e decisões quanto seriam necessárias para os dias não acabarem espelhando em sua maioria os anteriores. Quanto mais você presta atenção, mais parecidas e previsíveis são as pessoas.

Até por isso é sempre um sopro de ânimo quando você conhece alguém que quebra, nem que seja um pouco, o padrão de relacionamentos que você já tem. Não guardo segredo que Sally tenha sido uma dessas pessoas em minha vida, por exemplo. É uma ótima coisa, mas convenhamos: É raro.

Os fatos são muito parecidos, as pessoas são muito parecidas. Como então não estamos vivendo num planeta dominado por depressivos e apáticos? Na minha infalível opinião, conseguimos (pelo menos a maioria) manter isso sob controle com a “Síndrome do Floco de Neve”. Como a diferenciação REAL entre as pessoas não é lá grandes coisas, temos mecanismos para aumentá-las de proporção de acordo com a necessidade.

Curiosa essa relação entre querer fazer parte do grupo (já abordei isso em basicamente todos os “Publiciotários”) e ao mesmo tempo querer ser um elemento único dele. Grupos funcionam de forma mais organizada com conformidade, mas qual é a graça disso, não?

Se tem um lugar aonde é difícil perceber que somos muito parecidos, esse lugar é no abstrato da mente humana. A reação psicológica a cada provação não pode ser quantificada tão facilmente quanto a exposição a fatos negativos. Essa pode ser a tábua de salvação para uma pessoa vivendo um momento terrível, mas também pode ser a base de inúmeras cretinices pra lá de comuns que as pessoas fazem.

Quando você encontra com uma pessoa que está vivendo uma tragédia pessoal, é de bom tom dizer algo do tipo: “Nem posso imaginar o que você está sentindo…”. Aposto que muitos de vocês já disseram isso. Ei, eu já disse isso. A questão aqui, e tenho que ser insensível para isso, é que na verdade não é difícil imaginar o que outra pessoa está sentindo. Querendo ou não, há um leque meio limitado de ideias e propensões que se passam na cabeça de alguém num momento assim.

Desânimo, perda de propósito, sensação de injustiça, raiva, choque, vontade de se jogar na frente do primeiro ônibus na rua… Que cada pessoa é cada pessoa não é o que discuto, mas não há realmente originalidade na cabeça de uma pessoa num momento onde dizemos algo como “não posso imaginar…”. Muita gente faz coisas surpreendentes, mas nenhuma delas curou o câncer ou inventou uma forma de viajar mais rápido que a velocidade da luz depois de perder uma pessoa querida.

Não é fazer pouco caso da desgraça alheia tirar essa presunção de sofrimento único e incompreensível. Acredito que o ideal é não alienar uma pessoa que já está no fundo do poço. Quando se trata a dificuldade do outro como algo inalcançável e incompreensível, na verdade você está empurrando a pessoa ainda mais fundo no isolamento.

Os problemas que enfrentamos na verdade são muito parecidos com o de outras pessoas. Existe documentação e possivelmente solução para muitos deles. Compreender isso abre muito mais portas do que cair no golpe de que ninguém mais sabe o que acontece com você. Infelizmente, esse tipo de ideia soa insensível para muita gente.

O sofrimento e as dificuldades de cada um acabam ganhando uma aura de redutos intocáveis da individualidade humana. Faz tempo que eu escrevo sobre a loucura de competir para ver quem sofre mais. Como se fosse grande vantagem convencer outra pessoa que sua vida é mais difícil e sofrida que a dela. Muita gente parece se deleitar ao explicar para o outro como sua luta é mais difícil, como seus problemas são piores e como suas dores são mais duradouras…

Vida boa é vida livre, fácil e rica. Não confie em quem te disser o contrário. Posso até ser competitivo, mas a briga pela vida mais escrota eu quero sempre perder. Considerando o mundo em que vivemos, se diferencia mais quem acha sua vida fácil e tranquila do que quem conta aos quatro ventos como é especial por se foder o tempo todo.

Eu não gosto daquela conversinha fiada de baixar o cacete em gente que teve vida fácil SÓ por causa disso. Um dia desses eu ainda escrevo um texto sobre minha visão da frase “o trabalho dignifica”.

Existe competição desde o filé até as sobras. Pessoas tentam conseguir qualquer vantagem possível que as separe das outras pessoas efetivamente quase iguais a elas. Que a competição é parte integrante da nossa sociedade eu nem estou questionando agora, a merda é quando ela começa a apontar falsos vencedores.

Não perdendo a chance da cutucada tradicional: Religião se baseia muito na glorificação do sofrimento e da miséria. Nada melhor para quem manda do que um bando de gente que acha bonito ser “humilde”. E o pior é que pega mal para uma pessoa tentar se diferenciar pelas suas vitórias, enquanto os que usam as derrotas com o mesmíssimo propósito arrogante e egoísta são ovacionados.

Prefiro mil vezes ouvir a história de um babaca dizendo como ficou rico e casou com uma modelo do que ouvir alguém dizendo como sofre para pagar suas contas. Grandes chances do babaca rico ter pelo menos alguns elementos em sua história que não são mero eco da vida de bilhões de outras pessoas nesse mundo.

Problemas, dores, conflitos e dificuldades em geral são MUITO parecidos de pessoa para pessoa. Muda o cenário e às vezes muda a proporção, mas não é uma novidade propriamente dita. Não te torna único. O que efetivamente te torna único é uma conjuntura de elementos muito maior até do que você seria capaz de compreender. Cada segundo da vida é um elemento de diferenciação. Só que isso é sutil demais para virar foco de atenção.

Resta então o exagero da dificuldade pessoal. E sim, eu estou considerando que pessoas diferentes agem com intensidades diferentes por causa dos mesmos problemas. Tem gente que leva um fora e parte para a próxima, tem gente que leva um fora e quer se matar.

Só que isso não é uma expressão de fato diferente. É reação. E reação numa escala que costuma ser bem consistente entre as diversas pessoas povoando este mundo. Não perceber que o fato e provavelmente o cenário são relativamente comuns gera uma confusão entre a gravidade do acontecido e a gravidade da reação.

Não tem gente que se mata quando perde um emprego? Não tem emprego que valha uma medida dessas nesse mundo. O fato é frio. Mas com essa coisa de achar que com você é muito pior do que com outras pessoas, começa a parecer que ninguém seria capaz de lidar com a perda de um trabalho incrível desses… Se você está muito abalado, a coisa só pode ter sido muito séria, não?

Não. Evidente que na maioria dos casos as coisas são muito mais complexas, uma confluência de acontecimentos e reações que vão gerando o seu estado mental, mas um problema fora de proporção já é capaz de piorar as coisas muito além do necessário.

Como insensível costumaz, costumo ouvir uns “você não entende” ao tentar (terrivelmente, perguntem para Sally como eu sou bom em consolar…) diminuir o tamanho do problema que alguém está enfrentando. A intenção, juro, é positiva. Mas o resultado quase sempre é negativo… Vontade de dizer a verdade: “Sim, eu entendo. Entender é a parte mais fácil. Só não concordo com a proporção que você está dando para as coisas…”

Se cada um que sabe o quanto seu sapato aperta, é falsidade não dizer que percebeu que a pessoa calçou os pés invertidos, oras. A santidade do problema alheio é inimiga natural da melhora da qualidade de vida. Respeitar e apoiar pessoas queridas sempre, mas reforçar essa mentalidade de que as nossas montanhas são sempre impossíveis de se escalar é ser condescendente e… francamente, inútil.

A chance de doer mais para você do que para todo mundo é de uma em sete bilhões. E aproveitem, porque em 2050 pode ser que seja uma em dez bilhões.

De coração (de pedra)? Não compita pelo prêmio de pessoa mais sofrida, senão esse vai ser o único troféu na sua estante. A esmagadora maioria dos seus problemas são banais. Banais não no sentido de não ter valor (personalíssimo), e sim de que são terrivelmente comuns. A tendência é que existam formas e mais formas de resolvê-los. Sabe como é, sete bilhões…

Ah, em tempo: Isso vale inclusive para sexos diferentes, surtadas e surtados. Eu escolho muito bem minhas batalhas em textos de guerra dos sexos por esse motivo.

Agora, quem quer competir pela vida mais tranquila? Adoraria uma motivação extra…

Para contar sua história sofrida por não sacar que o texto não é exatamente para fazer pouco dela, para reclamar que eu não entendo como é mais difícil para você, ou mesmo para contar vantagem só para variar: somir@desfavor.com


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