Eu não julgava que este texto seria necessário, mas uma rápida conversa com o Somir me fez ver como a questão está sendo tratada, então, vamos lá, vamos chover no molhado e falar obviedades.

No debate entre os candidatos à Prefeitura de São Paulo do último domingo, após uma série de provocações, Datena deu uma cadeirada em Pablo Marçal. Você achou graça? Porque eu achei. Achei um entretenimento de qualidade, comemorei que nosso sonho antigo de rinha de político estava se concretizando, fiz piada, troquei Meme. Fiz imagem de cadeira como logo “Craque do jogo” e mandei para meus amigos. Eu ri. Eu fiquei feliz com o esmerdeio.

Mas, isso não me impede de perceber o quanto isso é grave e errado. Só um ser humano muito plano, muito limitado, muito cego e muito medíocre não vê um problema real aí. Da mesma forma que um ser humano muito plano, muito limitado, muito cego e muito medíocre não se permite fazer humor, encarar com leveza e se divertir de algo que é um problema.

Não precisamos (e não devemos) ser um ou ser outro. Não é necessário escolher lados. Não é necessário fazer militância contra violência física nem é necessário achar que está justificado agredir alguém por fazer piada com isso. Não é necessário fazer textão sério batendo quatro páginas no quão grave é um candidato batendo no outro e não é necessário fazer textão com quatro páginas só de piada. Não se limite, não se defina, não se encaixote.

Claro, é muito mais fácil adotar um viés, sobretudo quando vemos para onde nossa bolha vai. A tendência é ir junto. Tá todo mundo indignado? Vai lá e posta a coisa mais indignada que você conseguir, eles vão te aplaudir. Tá todo mundo achando que bateu foi pouco? Vai lá e reforça bem esse argumento, eles vão te amar. O problema é: aos poucos, você deixa de ser você e passa a ser um referendador de bolha.

A cadeirada está dada, nada vai desfazer isso, a única coisa útil que podemos tirar dessa situação é utilizá-la para olhar para nós mesmos e aprimorar-nos.

Em algum momento você já se perguntou como você se sentiu a esse respeito? Não aquela análise simplória de “não gosto dele então bem-feito”. E se o que aconteceu fosse uma regra que valesse para toda a sociedade? Quando alguém fala algo que o outro considera ter passado dos limites, tá ok agredir fisicamente. Pensem antes de falar, pois se isso fosse regra, todos nós aqui, inclusive você, já teríamos tomado várias cadeiradas nessa vida.

Quando eu vejo gente defender agressão física em função de algo que foi dito imediatamente me passa uma imagem meio desempoderada da pessoa. Aquilo tocou nela de uma forma estranha, provavelmente ela passou a vida sendo esculachada (no trabalho, em casa, pela família) sem conseguir se impor, por isso quando vê essa situação refletida em terceiros, endossa o comportamento que for, para aplacar sua angústia e para projetar o ataque naquele que causa da sua agressão. “Alma lavada”, eles dizem. “Gozar com o pau dos outros”, eu digo.

E é bem ruim passar atestado de desempoderado. Não é muito atraente para o mercado de trabalho e nem para relacionamentos, sinto dizer. É basicamente um repelente de pessoas. As pessoas sentem, percebem, intuem em algum ponto, por mais que o desempoderado tente disfarçar. Então, a solução é uma autoanálise e tentar entender de onde vem isso, para parar de projetar.

Isso impede de achar muito bem-feito e divertido o que aconteceu? Não. Político apanhar é sempre bem-feito para mim, pela pilantragem sistemática que eles fazem com o povo por décadas. Eu vou defender isso como modus operandi? Jamais. Eu vou deixar de achar graça, rir e fazer piada? Jamais. Piada não é endosso, piada é olhar a situação por um ângulo engraçado.

Ter a compreensão do quanto essa cadeirada foi errada, não nos impede de achar extremamente divertida e até merecida. Muita gente merece coisas ruins, ainda assim, é correto fazê-las? Geralmente não. Mas nada impede que a gente se divirta se elas acontecerem. Repito: achar algo divertido e engraçado não é endosso.

Essa é uma nuance que as pessoas têm dificuldade em visualizar. Pense em qualquer piada, filme, seriado ou o que mais você quiser de comédia: frequentemente a comédia trabalha com a desgraça, com a dor, com o inusitado. As próprias videocassetadas são isso: gente se fodendo, caindo, se machucando e sentindo dor. E nós rimos. Certamente nenhum de nós (ou poucos de nós) jogaríamos uma criança escada abaixo, mas muitos ririamos disso se nos fosse apresentado um vídeo de uma criança catando cavaco e capotando.

E quando rimos disso, não rimos do ato em si, nem da desgraça da pessoa, nem viramos cúmplices do que aconteceu. Rimos do inusitado, do inesperado, do exagero. Rir não é endossar e uma sociedade que acha que rir, brincar e fazer piada é endossar é vira-lata, se leva a sério demais e provavelmente precisa se levar a sério demais por ser uma bela mediocridade.

Gente complexa, bem-estruturada e capaz sabe rir de si mesma e do que for sem que seja endosso. Rir “porque a pessoa se fodeu”, como forma de vingança, é mesquinho, baixo e vil e eu estou começando a achar que a maior parte dos brasileiros ri com essa motivação, por isso vilanizam o humor, pois projetam toda essa maldade dentro deles em quem está rindo sem endosso.

A política brasileira é uma grande palhaçada faz muito tempo, que tenta se travestir de seriedade: energúmenos que vestem terno, tentam falar difícil e parecerem competentes, mas que, na verdade, são ineptos, burros, ignorantes sem um mínimo de vergonha na cara, hipócritas e pessoas ruins, adestradas para enganar o povo.

Então, é apenas normal que achemos graça e apontemos quando esse circo desmonta e a verdade aparece: o show acabou, a verdade ficou escancarada, um idiota jogando uma cadeira em outro idiota, como se estivesse em uma mesa de bar. Assim sendo, não é sobre “que bom que fulano se machucou”, é sobre “que bom que todo esse circo, esse cenário, esse fingimento desmoronaram e a verdade do que é essa merda veio à tona”. É um riso de “olha o ridículo da situação”. É um riso de “quiseram fingir seriedade e são uns descompensados”.

Acho graça e gosto muito quando todo o cenário montado para enganar o povo desmorona e, ainda que seja pelo lampejo de um segundo, as pessoas têm a oportunidade de ver o que realmente está por trás de toda essa maquiagem. Não é contra X ou Y, não é para punir X ou Y, é ver a hipocrisia ruir. É ver que os excelentíssimos se atrapalharam e deixaram transbordar realidade.

Eu acho certo agredir outro candidato? Não. Inclusive considero uma vergonha particular o Datena, com tantos anos de vida, não ter a maturidade e inteligência emocional de saber que não é esse o caminho, se não por decência, por estratégia, pois agora o Marçal vai capitalizar isso a seu favor. Mas, eu comemoro o ocorrido por um motivo maior: desmontou a maquiagem, a farsa, o fingimento de candidatos sérios, com propostas sérias, que zelam pelo povo. Não são. São aquilo ali, símio dando cadeirada.

E se eu tiver que pesar na minha balança o que considero melhor para o Brasil e para o povo brasileiro, entre os danos pela agressão física a um político X desmontar esse circo de aparências, eu prefiro que político seja agredido e se desmontem as aparências.

“Mas Sally, você condenou a facada ao Bolsonaro”. Meu anjo, primeiro que ali foi quase um homicídio, segundo que aquilo não desmontou circo nenhum, muito pelo contrário, criou um circo enorme glorificando o tiozão. Duas coisas não apenas diferentes, mais opostas. Nunca vou comemorar algo que ajuda a montar o circo em vez de fazê-lo ruir.

Percebam que não existe uma regra geral, pessoas racionais avaliam caso a caso o que acham graça, o que acham válido, o que acham desnecessário. E decidir diferente de um caso para o outro não é ser “hipócrita”, “isentão” ou “contraditório”, é ter cérebro e entender que cada situação tem detalhes, nuances e particularidades que precisam ser consideradas de forma individual por você, de acordo com seus valores e ética, para formar uma opinião.

“Mas o Datena é isso”. “Mas o Marçal é aquilo”. Desde quando estamos julgando ações pela pessoa, e não pelas ações cometidas? É sobre o que se faz, não sobre quem faz. Se você aprova um ato, então ele deve poder ser praticado pela sua mãe, pelo seu pior inimigo ou pelo seu maior desafeto político. Se você não aprova um ato, então ele não deve poder ser praticado pela sua mãe, pelo seu pior inimigo ou pelo seu maior desafeto político.

Este senso de equidade está se perdendo, pois a atual geração já não o pratica mais e não o está passando para seus filhos. Está vindo aí uma geração na qual o foco é em quem fez e não no que fez. E quando ela estiver no comando, pessoas como eu, que pensam diferente, serão consideradas erradas. Certa é a maioria.

Então, eu recomendo que comecem a trabalhar para exercitar um país e uma geração que entenda a complexidade e necessidade de análise individual de cada situação para não decidir seguindo a bolha e para não decidir levando em conta apenas quem fez, mas também o que foi feito e se isso valeria para todos.

Também recomendo que comecem a trabalhar para exercitar o humor, sem importar qual lado foi atingido. Não há vítimas, é humor, não é acidente de carro. É saudável fazer piada com a situação, sem excluir lados.

Se ficar estipulado que só um lado pode ser motivo de piada, se cria um humor polarizado esquizofrênico (já está acontecendo) que vai ficando cada vez mais sem graça. E a vida sem humor, meus queridos, é muito chata. Aí você precisa ficar catando guetos como o Desfavor se quiser ver gente rindo de coisas que gerariam processos na vida real.

Dá para abraçar tudo: a cadeirada foi triste, foi engraçada, foi irresponsável, foi útil, foi desnecessária, foi entretenimento de qualidade. Um fato não tem apenas um ponto de vista. É realmente complexo, quase tudo na vida tem um ponto bom e um ponto ruim. E se você escolher olhar apenas por um dos aspectos, ficar preso a ele e ficar marretando como se ele fosse o único, verdadeiro e valoroso, você se limita a um mundo unidimensional muito pequeno.

Rir do circo não é sinônimo de defender agressão física quando alguém fala algo que você não gosta. É comemorar um aspecto da questão: parte da hipocrisia foi desmontada, não são pessoas sérias nem preparadas que estão ali. Criticar a agressão não é sinônimo de não ter senso de humor, é saber que foi algo errado (e ainda assim pode ser muito engraçado) e que se agredir virar forma válida de lidar com quem passou dos limites, todos nós vamos levar muita cadeirada nessa vida.

A discussão da cadeirada está unidimensional, cada pessoa está focada em apenas um lado da questão. Poucos têm a coragem de serem complexos. E isso é mais preocupante que a cadeirada em si.

Então, acho que as lições que eu consigo tirar desse evento são: 1) não se deixem pautar por suas bolhas; 2) não avaliem primordialmente quem faz e sim aquilo que está sendo feito e 3) não é demérito ter múltiplas visões sobre um evento, desde que elas sejam coerentes. Muito pelo contrário, é inteligente conseguir ver a coisa por vários ângulos.

O problema é essa sutileza: filtrar se há coerência entre os vários ângulos. Sutil demais, difícil demais. A maioria não vai fazer. Mais fácil aderir a um lado, pela dificuldade diária que esta avaliação implica.

E, veja bem, não é minha intenção ofender. Todos nós, e eu me incluo nisso, muitas vezes acabamos sugados para mecanismos automáticos das nossas bolhas, do nosso entorno, das nossas crenças. É um exercício diário não permitir ser engessado por isso. Por um mecanismo evolutivo, o cérebro humano quer gastar o mínimo de energia possível, tudo que ele puder deixar pré-selecionado para pensar e agir de forma pré-programada, simplificada e automática, ele vai.

Cabe a nós vigiar, oxigenar, revisitar e não permitir que nosso discernimento fique no piloto automático. E é em parte por isso que estamos aqui, para tentar sempre olhar para o que está acontecendo trazendo ângulos novos e ouvindo ângulos novos do leitor.

Desde que o mundo é mundo o ser humano precisa se adaptar e usar seu cérebro um pouquinho mais, seja para aprender a lidar com máquinas, seja para se adaptar a novos funcionamentos sociais. Este é mais um momento no qual temos que exigir um pouquinho mais dos nossos cérebros: observar como formamos nossas opiniões, diante de uma enxurrada de estímulos que podem nos carregar para opiniões fáceis, simplórias e polarizadas. Exercitem a auto-observação.

E se você deixa filhos nesse mundo miserável, saiba que apenas oxigenar seu cérebro não basta, te recomendo que faça o que estiver ao seu alcance para que este modo de funcionar não seja substituído pelos pensamentos de bolha, rasos, sem facetas e pré-programados. Tente deixar um mundo melhor para os seus filhos.

E, se querem saber nosso lado, entre Datena e Marçal, somos a favor da briga.

Para dizer que queria ler xingamentos (rede social tá aí para isso), para dizer que só consegue ver o lado que agrada ao seu viés de confirmação (melhore) ou ainda para fazer uma piada sobre a cadeirada: comente.

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Comments (24)

  • Cadeirada de político em debate; Senador com dinheiro enfiado no cu cagado; Ex-presidente discursando bêbado e sendo preso; Suprema Corte “decondenando” bandido depois de trocentos pedidos de habeas-corpus, pra só então questionar a competência do processo; deputado ganhando dezenas de vezes na loteria por ajuda de Deus; cachorro de Ministro sendo um “ser humano como qualquer outro”; Inri Cristo! O Brasil é uma esculhambação!

  • Fã do Danilo Gentili

    Eu gostei muito da opinião do Gentili sobre isso. Ele ficou do lado do Datena por enxergar ali um ser humano. Ele considera o Pablo um sociopata do tipo que provoca na surdina para os outros se descontrolarem e saírem de malucos. Depois procurem no YouTube tudo o que ele fala. Tá excelente! Psicopatas levam as pessoas ao limite. Devemos fugir de gente como Marçal

    • O grande problema de sempre se mostrar pro mundo como “o maior fodão da porra toda” como o Marçal tenta fazer é ficar refém pra todo o sempre dessa imagem fabricada que, com o passar do tempo, fica cada vez mais difícil de sustentar. Na primeira fraquejada – e TODOS esses pretensos “fodões”, mais cedo ou mais tarde, sempre fraquejam – a casa cai, grandão e de com força. Marçal só vai parar de agir assim quando esbarrar em outro ainda mais “louco” do que ele. E alguém também precisa avisá-lo de que, depois de uma eventual vitória nas eleições, no mundo real será preciso bem mais do que um amontoado de “mitadas” de rede social pra se governar uma cidade. Ainda mais uma do tamanho e da importância de São Paulo…

  • Eu já vejo falta de autoestima e de pensamento próprio em quem usa a expressão batida “Empoderada” ou “desempoderada” especialmente para se referir aos outros… Ainda assim, gostei do texto. Fazer piada com políticos é o nosso esporte preferido no Brasil! Complexo, né?

    • Por ela nunca achei ser no sentido batidaço, é sobre um psicológico realmente “com mais bons momentos de sombra e água fresca”.

  • “[…] te recomendo que faça o que estiver ao seu alcance para que este modo de funcionar não seja substituído pelos pensamentos de bolha, rasos, sem facetas e pré-programados. Tente deixar um mundo melhor para os seus filhos.”

    Tente deixar filhos melhores para o mundo. Vai precisar…

    • Cão de Guarda #sqn

      Não, nem o mundo supostamente “precisa” de filhos(as) de quem se declarou childfree.

      Apenas não há como ser antinatalismo, inclusive é da Sally (faz algum tempo) até um trecho “morrerei em menos de 50 anos” (eu espero torcer por ainda + longevidade — que puder somar bem-estar à mesma coerência — à ela e à RID).

  • A ironia da situação…Datena dando cadeirada no debate da TV….Cultura.

    De resto, sobrou pra Rede TV, a próxima emissora a realizar o debate. Vai gastar o que não tem pregando as cadeiras no chão… (Ou foi bom pra emissora? Vai atrair audiência para ver se teremos treta de novo…2 pontos de audiência dessa vez talvez?)

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