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Jeitinho argentino.

Jeitinho argentino.

| Sally | | 46 comentários em Jeitinho argentino.

Definitivamente, racismo é uma ferida aberta muito mal resolvida na sociedade brasileira. Dói demais, as pessoas ficam irracionais. Por isso, não pretendo tocar no assunto, pois por mais que eu ache que o brasileiro precisa crescer e perceber algumas coisas, a maioria ainda não está pronta e isso só geraria sofrimento. E sofrimento puro é inútil.

Então, já que todo mundo fala, mesmo quem desconhece, resolvi falar, enquanto argentina, sobre a cultura argentina e nossa forma de comunicação – mas, obviamente, excluindo o que envolveria um suposto racismo. Continuem pensando que é pessoal, que é para humilhar a vocês, que é preconceito. Vamos ver como o argentino trata outras questões?

“As crianças que pularem na balança serão vendidas como escravas para Taiwan”

Esta imagem é de um hospital. Não é uma birosca onde um açougueiro sem estudo escreveu. É um cartaz escrito e avalizado por médicos diplomados. E é considerado dentro da normalidade na Argentina. É uma forma de comunicação usual. Não basta proibir, é preciso subir muitos degraus acima. É como nós nos comunicamos.

Bastava pedir para não pular na balança? Nos outros 194 países do mundo sim, na Argentina não. Bastava dizer que a criança seria punida? Na Argentina não. É preciso entrar em detalhes. É preciso dizer que ela será vendida como escrava, não para qualquer lugar, mas para o país que foi eleito como o pior, o mais cruel, o mais abominável em matéria de trabalho infantil.

Percebam ainda que o cartaz não está destinado apenas às crianças, mas a seus pais, já que muitas das crianças que poderiam pular na balança nem ao menos saberiam ler este cartaz. Não é bem sobre proibir, é sobre comunicar ao interlocutor o grau de putez que você vai ficar se aquilo acontecer. Uma pessoa que ameaça com um dos crimes mais hediondos não tem nada a perder.

Zero pessoas se ofenderam com esse cartaz. Zero pessoas acreditaram que o argentino vende crianças escravas para Taiwan. Zero pessoas foram chorar em redes sociais.


“Tinha esquecido que era um traveco até esse jogo fazer com que meus ovos subam à garganta” #VamosArgentinaCaralho

Lizy Tagliani é uma atriz/apresentadora que se define formalmente como uma mulher trans, isto é, uma pessoa que nasceu com um corpo biológico masculino, mas se percebe como uma mulher.

Ela postou isso durante um jogo da Seleção Argentina que a deixou nervosa. Percebam que ela se refere a ela mesma como “trava”, gíria para travesti, algo como “traveco”, sem qualquer problema, em ordem de fazer a piada funcionar: esqueceu que tinha saco, até as bolas subirem à garganta de nervoso por causa da seleção.

Nós não ligamos muito para palavras. Usamos as que causem maior impacto para aquilo que estamos dizendo, seja um discurso sério ou uma piada. Por exemplo, ao falar com outro argentino, eu jamais me referiria a mim mesma como uma pessoa baixa, pois seria até estranho. Usaria termos como “anã”, “micróbio” ou qualquer outro que cause mais impacto. Eu odeio pessoas de baixa estatura? Não, inclusive sou uma delas. É assim que nos comunicamos.

Zero trans se ofenderam. Zero pessoas acreditam que uma mulher trans tem preconceito contra mulheres trans. Zero pessoas foram chorar em redes sociais.


“Capacidade máxima de 4 pessoas (1000kg)
Ou
1 cavalo
Ou
5.050 bananas
Ou
6.666 ovos
Ou
2941 pombos
Ou
3 feministas”

Este simpático cartaz de elevador foi colocado depois das pessoas, sucessivamente, desrespeitarem o limite de peso que ele suportava. Inicialmente, o cartaz estabelecia apenas o limite de 1000kg e as pessoas lotavam o elevador alegando não saber calcular quantas pessoas excederiam o limite. O síndico se enervou e pensou “querem referências? Eu vou dar referências”.

Como você deve imaginar, nenhuma das referências está correta, nem mesmo a de pessoas, afinal, se a capacidade máxima é de 1000kg, para que 4 pessoas cheguem à capacidade máxima elas deveriam pesar 250kg cada uma. Novamente, não é sobre ser real, não é sobre ser instrutivo, é sobre passar uma mensagem: “Querem ser tratados como retardados? Serão”. A falta de paciência do argentino somada a um senso de humor peculiar gera esse tipo de coisa.

Assim como 2941 pombos ou 6666 ovos não somam 1000kg, é provável que 3 feministas também não somem. Mas foi a forma encontrada para dizer que se as pessoas forem gordas, terão que entrar em menor quantidade. É a forma mais educada? É a forma mais polida? É a forma mais gentil? Não. Mas como eu disse no exemplo acima, nossa comunicação se baseia em impacto. E depois desse cartaz, houve impacto e, ainda que por motivos questionáveis, todo mundo começou a prestar atenção no limite de peso do elevador.

Algumas feministas se ofenderam, pois elas se ofendem no mundo todo, mas ninguém deu muita bola e certamente ninguém achou que o argentino odeia feministas. Inclusive esse cartaz foi bastante copiado depois que viralizou.


“Quando eu tinha 15 anos tive que lidar com a morte de um amigo e do meu avô no mesmo dia. Eu achava que isso seria a coisa mais dura com a qual me depararia na vida, até provar a milanesa de vocês”

Review de um argentino sobre um restaurante. Bastaria dizer que a carne não estava boa? Bastaria dar uma estrela e não falar nada? Bastaria dizer que não gostou? Bastaria. Mas, novamente, não é assim que nós nos comunicamos. É preciso invocar a morte de um amigo e do avô para expressar da profundidade da nossa alma o quão descontente a pessoa ficou com aquela milanesa.

Percebem o padrão de intensidade exacerbada e “desnecessidade” naquilo que é dito? Ok, milanesas são uma instituição nacional, se fizer um plebiscito periga do argentino defender pena de morte para quem serve uma milanesa ruim, mas, ainda assim, a pessoa deu um salto monumental, escalou a coisa de uma forma que, aos olhos de vocês, parece desnecessária, para provar seu ponto. Na Argentina é trivial.

É a forma como nos comunicamos: usando a palavra mais forte, de mais impacto, mais exagerada, mais pesada. E todos nós nos entendemos, pois, desde pequenos, todo mundo à nossa volta fala assim. O mundo é assim? Não, o mundo é normal. Por isso se choca tanto com as merdas que falamos. Talvez por isso meus textos ofendam tanto. Mas não falamos nesses termos por odiar X ou Y, discriminar Y ou Z. É nossa forma de comunicação. Não espere palavras comedidas de um argentino. Nunca.


“A baleia azul é o maior mamífero da Terra e possuí um membro viril que tem dois metros de comprimento. Ainda assim não se compara com pica que é calçar estas botas. Não existe forma humanamente possível de fazer algo mais incômodo do que esta merda. Na verdade, temos que parabenizar quem os criou, pois eu imagino que demande muito esforço ser tão filho da puta”

Pessoa avaliando um calçado. Eu me vejo escrevendo algo parecido. Poderia se limitar a “Não gostei, desconfortável”. Seria o normal, correto? Sim, em qualquer país do mundo. Na Argentina não. Na Argentina, se você disser que é desconfortável, as pessoas pensarão que o calçado gera um leve desconforto suportável. É preciso ir além.

É preciso deixar claro, inequívoco, constrangedoramente destacado o quanto aquele calçado é uma merda. É preciso descontar boa parte da raiva pelos machucados nos seus pés escrevendo oito linhas de comparação entre o calçado e o pênis da baleia azul. Isso somos nós, argentinos, muito prazer.

Este cliente odeia a marca? Não. Ele tem preconceito contra sapatos? Não. Ele tem preconceito contra baleias? Não. Ele está emocionado, tomado pela dor e fúria e quis deixar seu ponto muito claro com uma pitada de humor de gosto duvidoso.


BÔNUS: ARGENTINOS OFENDENDO ARGENTINOS

“Sampaoli heliporto de moscas. Tobogã de piolhos. * incompreensível * Cemitério de sanduíche de linguiça. Assassino de croquetes. Substitua o Dybala e o Banega. Maldita a buceta que te pariu. Preciso de letras maiúsculas maiores”

“Sampaoli franja de carne. Cemitério de Piolhos. Filho de uma buceta de baleia arruinador de alegrias”

“A puta buceta que te pariu Sampaoli. Já estou fazendo vudu para você. Faça alguma coisa seu imbecil. Reaja filho de dois milhões de putas da Babilônia ou saia desta realidade e vire ectoplasma, engolidor de pica, maluco, imbecil universal”

Estes são apenas alguns dos infinitos xingamentos que a torcida argentina desfere aos seus quando sente raiva. Escolhi este pois o Sampaoli foi técnico de time brasileiro faz pouco tempo, então, vocês devem estar familiarizados com ele e saberão ligar as ofensas à pessoa.

Mas, uma rápida busca nas redes sociais mais realistas vai fornecer uma infinidade de material simular, sobre todos que já passaram pela seleção argentina, dentro de campo ou fora dele. Sim, assim como faltamos com o respeito aos outros, nós faltamos com o respeito a nós mesmos, pois na nossa cabeça, não é falta de respeito, é desabafo. Na Argentina quase todo mundo é assim. Essa é a forma como nos comunicamos.

Percebam que o desempenho técnico fica em segundo plano, a prioridade foi atacar características físicas do Sampaoli, como o fato de ser careca e gordo. Isso quer dizer que o argentino odeia pessoas carecas e gordas? Não. Isso quer dizer que o argentino sabe que o Sampaoli não gosta de ser chamado de careca e gordo, pois ele mesmo verbalizou isso. Desde a quinta série todo mundo sabe que a regra é bater onde dói. Se não doesse, bateriam em outra coisa. Mas como Sampaoli já demonstrou irritação por isso, até hoje falam esse tipo de coisa. Para todo o sempre careca e gordo.

Temos também algumas alusões à mãe do Sampaoli e sua respectiva buceta, pois falar mal de mãe de homem é um clássico quando se quer impactar. Mas temos ainda alusões a ectoplasma e até xingamentos que nem mesmo eu entendi e não soube traduzir. É um mix de descontrole com criatividade que eu considero fascinante.


O problema é quando alguém tem ideia idiota de levar a sério um povo que usa a morte do avô para falar de milanesa ou o pênis da baleia azul para falar do calçado que comprou. Aí, vocês me desculpem, mas o errado é quem leva a sério.

E, se ainda não ficou claro, permitam reforçar: não existe instituição mais sagrada na Argentina do que a seleção argentina e, ainda assim xingam para um caralho. Aí é que está, nada é 100% sagrado para nós, e essa vibe que tento trazer ao Desfavor. Tudo pode ser alvo de piada, de xingamento e de metáforas que fariam o diabo corar. Nada pessoal. Fazemos com todos, inclusive com os nossos.

E a vida fica mais leve assim, do que se ofendendo, levando para o pessoal, levando a sério. Então, se tem algo que eu posso tentar passar para vocês aqui é: não levem as falas dos argentinos a sério, nós exageramos propositadamente e não temos limites… nem com nós mesmos. Quando um povo é uma cruza do sul da Itália com nazista, sai isso: excesso cruel. Novamente, nada pessoal com ninguém ou nenhum grupo. Somos assim. E nos diverte.

Se vocês gostaram da postagem e quiserem saber mais sobre a cultura argentina, existe material para fazer mais cem anos deste tipo de post. Podemos incorporar no Desfavor uma coluna fixa na qual, de tempos em tempos, analisamos as peculiaridades do meu povo. Não que um dia o brasileiro vá entender, pois é impossível de entender sem vivenciar, mas talvez ao menos vocês se divirtam…

Para dizer que está explicado meu jeito ofensivo de falar, para dizer que achava os argentinos escrotos, mas agora percebe que são apenas malucos ou ainda para dizer que vai incorporar algumas destas ofensas no seu dia a dia: comente.


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