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Misofonia.

Barulho te irrita? Então talvez este texto seja para você. Se você se aborrece mais do que a média das pessoas com barulhos, sons ou ruídos no geral, a ponto de perder a concentração, sentir raiva, ódio, irritação, ansiedade e até nojo, com certeza este texto é para você. Desfavor Explica: Misofonia.

Misofonia é a forte reação emocional negativa, incontrolável e desproporcional às situações de exposição aos sons. Não se trata necessariamente de aversão a sons altos (hiperacusia), a irritação pode se originar de sons baixos, geralmente repetitivos, como por exemplo ruídos de mastigação de outras pessoas, barulho de gente sorvendo (por exemplo, tomando sopa ou sugando algo com um canudo), tosse, estalar de dedos, respiração ruidosa ou ofegante, ronco, barulho de sapato de salto alto no chão e até sons emitidos por animais, com latidos e miados.

Não é um mero desconforto. Acredito que ninguém goste ou seja indiferente a comer com outra pessoa mastigando de boca aberta do seu lado. É uma irritação desproporcional, é vontade de agredir o outro fisicamente, é vontade de chorar, é vontade de levantar e ir embora, é desespero do mais genuíno, é aquele mal-estar que te consome por dentro, que te exaure, que te obriga a usar cada poro do seu corpo para se conter e não gritar, xingar e perder seu réu primário.

E não é aversão a qualquer som. É uma aversão seletiva: determinados sons tiram a pessoa do sério, enquanto outros não causam o menor dano. Não é uma irritação progressiva, é instantânea: no que o barulho começa, já desgraça a existência da pessoa que o escuta. Não é algo que possa ser ignorado, tira toda a atenção, concentração e alegria de viver do misofônico, quando exposto ao ruído que o incomoda.

Não existem muitos estudos sobre misofonia, pois faz muito pouco tempo que ela parou de ser considerada “frescura” e passou a ser tratada como um problema. Estima-se que, em média, uma em cada cinco pessoas sofra em algum grau com o problema.

Não existe uma lista de sons que se configuram como misofonia, ela pode ser gerada por qualquer som. O que se observa para determinar a misofonia é a reação da pessoa a aquele som. O que talvez seria um leve incômodo ou motivo de piada para a média das pessoas, como alguém mastigando ruidosamente ao seu lado, gera um desconforto descomunal em alguém com misofonia.

Sente vontade de matar a pessoa que está roncando ao seu lado? Sente vontade de dar uma tijolada na boca da pessoa que está mastigando desagradável e ruidosamente de boca aberta do seu lado? Deseja a morte lenta e dolorosa de quem fica tossindo e pigarreando a cada 30 segundos? Pessoa batucando ao seu lado te faz parar de trabalhar, perder a concentração e desejar que o colega tenha câncer no cu? Bem-vindo ao clube.

Vale reforçar que assim como não existe uma lista de sons para a misofonia, também não existe uma lista de reações. Qualquer reação negativa exacerbada gerada por determinado som ou sons pode ser indício de misofonia. E não precisa necessariamente ser uma reação emocional, também pode ser física. Sim, em casos mais extremos, a pessoa pode, além dos sentimentos exacerbados, ter sintomas físicos como taquicardia, sudorese e mal-estar.

Talvez alguns de vocês estejam pensando que isso é “frescura”. Não é. É um mau funcionamento do cérebro (papo técnico: hiperativação do sistema límbico), que reage de forma excessiva a um estímulo. Assim como uma pessoa com fotofobia sente muito desconforto nos olhos com luz, a pessoa com misofonia sente muito desconforto com ruídos. Assim como uma pessoa com Síndrome do Pânico realmente acha que vai morrer, uma pessoa com misofonia sente um mal-estar incontrolável e intolerável.

As causas da misofonia não são muito bem compreendidas, mas acredita-se que ela seja hereditária e que comece a se manifestar na infância ou adolescência. O diagnóstico é difícil por diversos motivos. Na infância, geralmente uma criança não tem autoridade para mandar alguém parar de fazer barulho ou não tem discernimento para reconhecer que está irritada por causa do barulho, então, aos olhos dos pais, ela apresenta uma irritação repentina e injustificada. E mesmo quando ela faz a queixa, muitas vezes sua reclamação não é validade, é taxada de frescura ou chatice.

Isso faz com que a criança chegue na vida adulta achando que isso é o normal: viver com uma constante irritação, que supostamente todos sentiriam e com a qual todos conseguem lidar menos ela, o que, além da desgastante irritação cotidiana, ainda pode gerar um problema de autoestima.

Mesmo adultos bem estruturados têm dificuldade para nomear o que sentem quando expostos a um som que ativa sua misofonia. “Vontade de matar” não é propriamente um sentimento, não é mesmo? Costuma ser um mix de irritação, desconforto e raiva que eu chamo de “insuportabilidade”.

O que todos devem entender é que não é algo que a pessoa possa controlar, é seu cérebro reagindo automática e desproporcionalmente a algo que a maior parte das pessoas não dão tanta importância. E o fato da maioria não dar importância não quer dizer que não seja enorme para aquela pessoa.

Por exemplo, uma pessoa que sofra de misofonia está em seu ambiente de trabalho e divide a sala com um colega que fica batucando na mesa o dia todo pode efetivamente não conseguir trabalhar por causa disso. É quase como se fosse uma fobia a determinados sons.

Também é importante deixar claro que a pessoa que tem misofonia não se sentirá irritada necessariamente com todos os sons. É possível que um único som lhe gere essa reação exacerbada. Ou mais de um. Não há necessidade, para configurar o problema, que se irrite com todos os sons.

E quando falamos em reação exacerbada, não dá para listar todos os sentimentos possíveis, é mais sobre sua intensidade do que sobre os sentimentos em si. Qualquer sentimento negativo desproporcional pode indicar misofonia. Apenas para fins ilustrativos, os mais comuns são: irritação, raiva, ódio, perda da concentração, vontade de sair do ambiente, agitação, ansiedade e até uma explosão, uma agressão verbal, pedindo de forma rude que o barulho pare.

Quando falamos nos sons que a provocam, os mais comuns são, nessa ordem: mastigação de comida, mastigação de chiclete, ronco, respiração ruidosa, som de pessoas bebendo, tosse, pigarrear, espirros, uso repetido de palavras, sussurros, voz anasalada, barulho de televisão ligada, barulho de relógio, páginas de papel roçando uma na outra, sons de animais (principalmente latido, miado ou sons de pássaros), sons de animais bebendo água, sons de beijos humanos, arroto, bocejo e barulho de alguém escovando os dentes.

O diagnóstico de misofonia é basicamente clínico: uma boa e longa conversa com um médico. Eventualmente podem ser pedidos alguns exames como avaliação audiométrica e exame de Limiar de Desconforto a Sons (LDL) e até exames de sangue, para descartar outras causas (talvez a pessoa tenha alguma alteração na percepção dos sons), mas no geral, é o sentimento do paciente o determinante para o diagnóstico.

Uma curiosidade que pode ajudar a detectar a misofonia: não é raro que pessoas com o problema imitam justamente os sons que mais as irritam, muitas vezes sem sequer perceber. Ao que tudo indica, os sons ativam o chamado “sistema de neurônios espelho do cérebro”, que levam a pessoa a imitar o que vê. São eles que fazem a gente bocejar quando alguém boceja, por exemplo. Então, nada de escrotizar as pessoas dizendo “se você ficasse realmente irritado com isso não faria você mesmo o barulho”. A pessoa faz sim o mesmo barulho, por deboche, desespero ou na esperança de que se o outro ouvir o barulho hediondo que está fazendo, pare de fazê-lo.

Outro dado curioso é que mulheres tendem a ter a misofonia ativada por sons mais agudos. Isso aconteceria por uma questão evolutiva: mulheres vem de fábrica programadas para reagir de forma imediata a sons mais agudos, para que escutem seus bebês e os atendam prontamente quando eles choram. Então, seus cérebros estão mais propensos a reagir com mais, digamos, ênfase a esse tipo de som. E muitos animais aprenderam isso, como por exemplo, os gatos, que miam na mesma frequência de um choro de bebê, o que pode realmente enlouquecer um cérebro que foi programado para não ignorar esse ruído.

Não existe cura para a misofonia, porém, existem algumas opções para tentar dessensibilizar o paciente. E quando falamos em dessensibilizar, não é “para a pessoa parar de frescura”, é uma fisioterapia para o cérebro, é tentar, aos poucos, mudar essa hiperativação do sistema límbico. Aqui seguem algumas sugestões de coisas que você mesmo pode tentar.

É possível tentar enganar o cérebro fornecendo um som alternativo que você considere agradável, e “treiná-lo” para focar nesse som quando um som desagradável se apresentar. Por exemplo, se você gosta do som de chuva, quando um filho da puta porco começar a mastigar ruidosamente ao seu lado ou quando um filho da puta sem consideração passar a porra da tarde toda batucando com uma caneta em uma mesa, você pode botar um fone de ouvido e tentar se concentrar no barulho da chuva. Com o tempo e com um pouco de sorte é possível que o ato repetido de focar em outra coisa se torne automático e você aprenda a tirar o foco do ruído que incomoda mesmo sem o suporte do som agradável.

Também é possível tentar dessensibilizar o cérebro se expondo a sons repetitivos muito baixos durante períodos de tempo no dia, aumentando progressivamente o período de exposição e o volume dos sons. A ideia é treinar essa parte do cérebro a ignorar sons repetitivos e, com um pouco de tempo e um pouco de sorte, pode ser que o cérebro consiga aprender a ignorar todos os sons no mesmo estilo.

Se o som específico que causa repulsa estiver ligado a alguma experiência negativa do passado, um psicólogo pode te ajudar a dissociar o som dessa experiência negativa e, com o tempo e um pouco de sorte, é possível que ele pare de te incomodar.

Também é possível, em alguns casos, tentar bloquear definitivamente o som. Você vai ler por aí sobre usar tampão no ouvido, mas eu já te adianto que isso não funciona, pois quando o som te irrita, um mínimo decibel que vaza já faz subir aquela vontade gostosa de quebrar todos os ossos da face da pessoa que está fazendo o ruído. Sua melhor chance é um bom fone com bloqueio de ruídos conjugado com um áudio de ruído branco tocando ao fundo.

O ruído branco é um som que tem como objetivo bloquear outros sons, pois contém todas as frequências de som na mesma potência. Ele se chama assim em uma analogia à luz branca: assim como a luz branca contém todas as cores que “se anulam entre si” e por isso não ficam visíveis, o ruído branco, com o perdão da simplificação, possuí “todos os sons entre si”, impedindo que outros não sejam ouvidos. Você encontra longas faixas de áudio com ruído branco online e de forma gratuita, desde YouTube, até Spotify ou Google.

Vai ter quem te diga que com relaxamento ou meditação se pode resolver o problema. Eu duvido muito. Para que uma pessoa com uma alteração cerebral consiga desativar seu cérebro, ela precisa ser mestre em meditação, estar em um grau muito elevado de técnica e prática e… quem está nesse grau muito elevado de técnica e prática, meus queridos, não se irrita com barulho.

Então, francamente, é algo que um leigo vai demorar décadas para atingir e, enquanto isso, sua qualidade de vida foi pro saco. Medite, pois é bom para você, mas não espere resolver problemas com meditação sendo um iniciante, isso só vai te desmotivar a meditar.

Em casos extremos, é possível até tratar o paciente com medicação, quando a misofonia compromete sua qualidade de vida. “Mas Sally, remédio por causa de barulho não é algo extremo demais?”. É. Deve ser a última opção. Mas sabe o que é mais extremo do que remédio? Levar uma vida em constante irritação, descarregando a toda hora no corpo substâncias químicas que, em um futuro não muito distante, vão gerar doenças graves. Um corpo em estresse causa mais dano do que remédios. Uma pessoa que não consegue trabalhar direito vive estressada. Então, se está comprometendo a qualidade de vida, remédio tem que ser uma opção a ser discutida com o médico.

Por fim, deixo aqui uma reflexão: se estamos vivendo um mundo histérico no qual todo mundo tem que se adaptar ao que “dá gatilho” ou incomoda uma pessoa, não seria o caso de proibir todo mundo de fazer tanto barulho em locais públicos? Pois é, nessas horas a inclusão e a empatia somem, não é mesmo?

Para dizer que tem misofonia e não sabia, para compartilhar qual barulho mais te incomoda ou ainda para dizer que tem certeza que esse é o estopim para todo franco-atirador: comente.

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Misofonia, psicologia, saúde, saúde mental

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