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Devo, não nego.

Devo, não nego.

| Sally | | 34 comentários em Devo, não nego.

Hoje quero falar sobre um assunto que me intriga: gente que deve e vive numa boa com isso. Gente que não se importa em dever. Gente que contrai qualquer dívida sabendo que não vai poder arcar com ela e não perde um minuto do seu sono com isso. Essas pessoas me fascinam, não por admiração, mas pelo total desprendimento das normas sociais, do impacto que causam na vida alheia do quanto não se importam em minar sua própria credibilidade.

Nem quero falar sobre um ponto de vista crítico ou psicológico, quero apenas compartilhar meu fascínio por essa irresponsabilidade e pela forma como ela se manifesta no Brasil.

É algo que dificilmente se vê de forma massiva em outros países, na verdade, em alguns deles pode até ser equiparado a algum tipo de problema de saúde mental. No Brasil, não sei se é a regra, mas é bastante comum. Garanto que todos vocês conhecem ao menos uma pessoa que deve sem que isso a incomode. Uma nação na qual estar em débito e não se importar é bastante comum. Fascinante.

E esse “dever a alguém” nem sempre é patrimonial. Sim, muitas vezes é dinheiro, bens, cartão de crédito, mas outras é se comprometer com algo e sumir sem o menor constrangimento, é ter um dever ético ou imposto por lei e ignorá-lo completamente, é qualquer forma de débito, financeiro ou não, que deveria gerar algum grau de desconforto, mas a pessoa consegue se auto justificar ou deligar alguma chave interna e viver normalmente com ele.

Vamos começar pela parte financeira. Tem muito brasileiro que gasta sabendo que não tem, sem qualquer receio, dor de cabeça, constrangimento ou preocupação. E não me refiro a comprar alimento para comer, falo de comprar supérfluos mesmo, coisas que a pessoa poderia muito bem viver sem, mas que ela quer ter nem que para isso precise dar calote em alguém. O querer dela é tão importante ou incontrolável que, para saciá-lo, ela topa manchar sua imagem e causar dano a terceiros.

A pessoa compra, sabe que não vai ter como pagar, sabe que vai ficar endividada, sabe que provavelmente vai ficar com o nome sujo, e não se importa. Muitos até dizem “em cinco anos meu nome está limpo novamente, não tem problema”, como se fosse apenas uma questão de documentação.

Não há qualquer incômodo no fato de dever e não pagar, nem no fato de ter contraído a dívida já sabendo que não poderia pagar. Calote, em bom português. Não há qualquer preocupação na forma como isso vai impactar a pessoa que levou o golpe ou a credibilidade de quem não pagou.

É verdadeiramente fascinante. Eu, se estiver devendo uma moeda para o tio da padaria já fico nervosa, me provoca desconforto, mal-estar, preocupação. Quem dirá ficar devendo o que eu não posso pagar, ter credor correndo atrás de mim, me telefonando, ter o nome sujo. Acho muito curioso quem vive assim por escolha e consegue não se incomodar ou, de alguma forma, sobrepassar esse incômodo e viver feliz devendo.

Normalmente as formas que a pessoa encontra de se auto justificar são muito complicadas de defender. Eu até acho que quem usa essas desculpas para aplacar uma eventual consciência pesada de fato pode acreditar nelas, mas são justificativas que não se mantém de pé depois de meros cinco minutos de reflexão.

Alguns alegam que a pessoa ou empresa para a qual devem “é rica” ou “não vai fazer falta” aquele pagamento, como se esse fosse o critério que gerasse a obrigação de pagar a alguém. O que gera a obrigação é você dar a sua palavra, expressa ou tacitamente, ao adquirir o produto ou serviço. Fora que muitas vezes se tem a ilusão do outro ser “rico” ou “não precisar” e na verdade precisa sim.

E mesmo que seja “rico”, o que aconteceria se todos pensassem igual ao caloteiro e não pagassem pois o outro “não precisa”? Simplesmente todos os negócios faliriam, pois ninguém pagaria. É um pensamento que, se aplicado de forma coletiva, desmorona uma sociedade: mais ninguém é confiável, mais ninguém tem credibilidade. E é algo que acontece bastante no Brasil. Tente explicar para um estrangeiro a canetinha da lotérica presa com uma corrente e observe seu olhar de espanto.

Seria inviável viver em uma sociedade na qual todos se portem assim, logo, o certo a se fazer é ninguém se portar assim. Mas infelizmente tem gente que pensa que se só a pessoa fizer, tá tudo bem. Só ela merece se dar bem, só ela é esperta, só ela tem o direito de não honrar seus compromissos, o lesado que aumente seus preços e acabe intubando o prejuízo nas pessoas que são corretas e pagam.

Outra autojustificativa muito comum e sem nenhum sentido é “mas eu não tinha dinheiro para isso”. Bem, se você não tem dinheiro, então você não compra, certo? A menos que seja uma criança de cinco anos de idade sem a menor noção de finanças ou capacidade de frustração, esse seria o comportamento esperado. Não estamos falando de comida ou itens básicos de sobrevivência, estamos falando de bolsa, roupa, sapato, viagem.

Quando não se tem dinheiro para tudo, se gasta apenas com aquilo que é questão de sobrevivência e se usa a vida para refletir e mudar o que quer que esteja impedindo ou dificultando a pessoa de ganhar mais dinheiro: precisa se qualificar? Precisa mudar de postura? Precisa fazer networking?

“Mas eu precisava viajar, era uma questão de sobrevivência, eu estava muito estressado”. Sim, vocês vão escutar esse tipo de coisa de verdade, a pessoa está falando sério, ela não está brincando. É realmente fascinante. Uma bolsa cara era uma necessidade, uma viagem era uma necessidade, um vestido era uma necessidade. Não fica difícil de entender o motivo pelo qual uma pessoa com essa mentalidade não prospera na vida.

O resultado é previsível. Para atender a algo que ela tem vontade, a pessoa se sente no direito de lesar terceiros e passa por isso sem uma gotinha de culpa ou remorso. Isso mancha tanto sua imagem e sua autoestima, que provavelmente essa pessoa vai ter ainda mais dificuldade em ganhar dinheiro, gerando um círculo vicioso, até que, em algum momento, ela acaba descambando abertamente para golpes.

Não importa em que grau de golpismo a pessoa está, sempre com uma ótima justificativa para isso, a culpa é sempre de terceiros, nunca dela: o patrão é um escroto então ok roubar dele, a vizinha é uma filha da puta, o governo é uma merda. A loja está tentando roubar ela cobrando um preço muito caro, ela precisa daquele bem por um motivo X, seu ex marido é um babaca. Sempre tem um motivo para não cumprir sua palavra e ficar devendo sem constrangimento.

Isso é tão alienígena para mim, me confunde de tal forma, que eu não sei dizer se é um discurso hipócrita de alguém que sabe o quanto está errado e é apenas muito egoísta ou se é um amental que se engana e realmente acredita na pá de bosta que usa como justificativa. Sou toda ouvidos, pois gostaria de entender o que se passa na cabeça dessas pessoas.

“Mas Sally, para você é fácil falar, você nunca sofreu uma privação”. Em primeiro lugar, ninguém sabe nada da minha vida, portanto, bem complicado fazer essa afirmação que, diga-se de passagem, não é verdadeira. Em segundo lugar, tem muita gente que sofre privações muito severas e não faz uma porra dessas. Então, não está relacionado a privação. Está relacionado a respeito, ética, palavra, empatia e outros sentimentos humanos que muitos parecem não ter ou não exercitar.

Eu não entendo qual é a chavinha que vira na cabeça dessas pessoas, qual o botão que desliga, que faz com que elas não se incomodem por estar devendo. Porém, com certeza absoluta isso reflete em todas as áreas da vida dela e de quem está com ela: ético se é ou não se é, portanto, não acho uma boa manter esse tipo de pessoa por perto, pois uma hora a chavinha desliga em relação ao comportamento dela com você.

A questão patrimonial é mais acentuada pois para ela existem consequências legais: se você compra um carro e não paga, vão na sua casa e te tomam o carro, por exemplo. Mas, não é só sobre bens e dinheiro. Ficar devendo em compromissos, em prestação de serviços ou em qualquer coisa que a pessoa voluntariamente acordou é igualmente feio. É mais tolerado no Brasil? Sim. Mas é igualmente feio.

“Mas Sally, imprevistos acontecem”. Certamente. Com todos nós. Mas aí você entra em contato e avisa que não vai poder honrar com o compromisso, remarca a data e pronto. Combinar algo e deixar o outro esperando e/ou nunca pagar o que se comprometeu é algo que não se faz com ninguém, desde seus filhos até o entregador de pizza. Com ninguém.

Eu não entendo o que leva a alguém a desconsiderar um combinado de forma unilateral, e não comunicar aos envolvidos. Talvez seja vergonha? Medo da reação? Talvez alguma anestesia de ir deixando para depois esse comunicado até esquecer dele e nunca fazê-lo? Eu quero acreditar que não estamos falando apenas de um puro sentimento de “foda-se”, apenas de falta de consideração. Deve ter algum conflito interno, algum trauma, alguma situação muito truncada que leva a isso.

Se no calote patrimonial a pessoa tem algum ganho financeiro, quando falamos de compromissos ela não tem nada a ganhar por deixar de cumprir um combinado com alguém. Muito pelo contrário, só tem a perder.

Talvez a pessoa não ache que vai perder nada, pois na cabeça dela seja essa a forma normal de se comportar: quando surge um imprevisto você pode apenas não aparecer e não precisa avisar. Mas não precisa ser muito esperto nem ter muita vivência para perceber que as pessoas ficam putas, que isso fecha portas e corrigir sua postura.

Em tempos de vacas magras da minha vida fui gerente de loja de shopping. Eu tinha um combinado com meus vendedores: podia faltar, podia atrasar, podia até faltar me dizendo que não estava a fim de trabalhar (nunca pedi atestado), podia tudo, desde que me avisasse antes. E quem não avisasse, não precisava voltar para trabalhar no dia seguinte pois estaria demitido. Eu sinceramente pensei que fosse funcionar. Não funcionou.

Em poucos meses de trabalho demiti mais de 50 pessoas por este motivo: não aparecer no trabalho e não avisar. O RH ficava desesperado com a quantidade de vendedores que passavam pela loja e eu só não fui demitida pelo fato da loja vender muito bem e dar muito lucro.

Não era algo de desgaste, de insatisfação. Eu demitia as pessoas ainda no período de experiência, o que quer dizer que logo nas primeiras semanas estavam faltando sem avisar. E eu nunca blefei, demitia sempre, ou seja, as pessoas sabiam que ia acontecer. E nunca onerei meus vendedores que cumpriam seu horário, quando demitia alguém eu mesma ia para as vendas.

Eram pessoas que não ganhavam mal pela formação que (não) tinham, não ganhariam esse salário no mercado médio que as empregaria. Tinha vendedor que comprava carro no final do ano com o salário de dezembro. Eram pessoas que passaram por um processo seletivo rigoroso para estar ali. Eram pessoas que não conseguiam emprego depois que eram demitidas. Ainda assim, jogavam tudo fora por uma besteira.

Isso me fez entender que de fato é pedir demais para que alguém que não vai comparecer a seu trabalho enviar uma mensagem avisando. Mas ainda não entendo qual é a dificuldade. O que trava essas pessoas?

Não digo ter a capacidade de se colocar no lugar dos outros e entender que quando as pessoas contam com você e você não aparece, isso prejudica a todos. Isso seria pedir demais. Mas a compreensão de que se fizessem isso seriam demitidos (que todo mundo tinha) deveria ser incentivo suficiente para pegar o telefone e enviar uma mensagem de uma linha. Não era. Fascinante.

Hoje a questão não me impacta tanto pois com a graça de tudo quanto é mais sagrado não tenho mais que fazer gestão de pessoas (odeio) e não moro mais no Brasil. Mas a curiosidade persiste. Por qual motivo, apesar de todos os avisos de que aquilo não deve ser feito, as pessoas continuam fazendo, quando elas mesmas se prejudicam com isso?

Por qual motivo, apesar das várias portas que fecham e das diversas pontes que queimam, as pessoas continuam fazendo? Será que acham besteira? Será que não percebem como é feio? Será que sabem de tudo isso e simplesmente não se importam? Se alguém tiver um palpite, por favor, deixem nos comentários.

E se você for uma dessas pessoas que tem uma trava ou um foda-se para honrar compromissos, sejam eles financeiros ou não, aproveita o efeito psicológico do ano novo e a falsa sensação de recomeço para melhorar: não é legal ser assim e, em algum momento isso vai te prejudicar de verdade. Aprenda pela consciência, entendendo que não é legal e se corrigindo, em vez de aprender pela dor, perdendo algo realmente importante, desde um amigo até um emprego ou o réu primário.

Para dizer que também não entende quem faz isso, para dizer que não entende qual é o problema em fazer isso ou ainda para contar sua teoria nos comentários: sally@desfavor.com


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