Taxidermia
Imortalizar a aparência de um animal é mais importante do que parece para fins científicos e educacionais. E também é mais difícil do que parece. Hoje falamos dessa arte que exige múltiplos conhecimento e habilidade: Desfavor Explica Taxidermia.
Taxidermia é a técnica de montar ou reproduzir animais para preservar sua aparência após sua morte. O nome vem do grego e significa “dar forma à pele” (taxi = dar forma, dermia = pele).
Antigamente o processo era realizado recheando o animal com palha, e daí veio o nome “empalhar”. Mas hoje, taxidermia faz sentido, pois o processo é feito removendo toda a pele do animal e recolocando-a, após um tratamento, por cima de uma estrutura que imita seu corpo.
É um procedimento antigo. Os primeiros registros conhecidos de preservação de animais mortos data de 5000 Antes de Cristo, no Egito Antigo. Se você já viu fotos de animais empalhados antigos deve ter percebido que o resultado deixava um pouco a desejar. Sendo gentil, parecia que os bichos tinham morrido de um AVC.
Mas, a taxidermia evoluiu muito ao longo dos anos e hoje permite recriar com perfeição qualquer animal, com um resultado simétrico, natural e agradável. O que não quer dizer que não existam trabalhos amadores e mal executados nos dias atuais… talvez você tenha entrado em contato com taxidermia realizada pelas mãos de curiosos ou amadores, o que pode gerar uns bichos muito estranhos e desconjuntados, mas, saiba que se bem-feita, parece um animal paralisado.
O que nos leva à óbvia conclusão que taxidermia não é para curiosos. Além dos riscos biológicos de se manipular de forma errada um animal morto (uma panedemia já está de bom tamanho), é um processo que requer o uso de produtos caros (a maioria importados) e um vaso conhecimento de anatomia, química e habilidades artísticas.
A taxidermia vai muito além de decoração cafona, ela tem um papel importante na educação e na ciência. A maior parte das pessoas associa taxidermia a aquela cabeça de cervo ou alce na parede de uma cabana na montanha, mas, na vida real, ela cumpre um papel importante para ajudar a catalogar, compreender, estudar e preservar as espécies.
Existem relatos de alunos de escolas que receberam aulas sobre animais que estavam em risco de extinção e aqueles que foram apresentados a esses animais taxidermizados foram mais capazes de identificar a proteger a espécie. Ver o animal ao vivo gera outro tipo de impacto e aprendizado muito mais potente do que ver uma foto.
Ela também é uma importante ferramenta para estudo da anatomia animal de grande valor para todos os profissionais que de alguma forma lidam com animais selvagens de forma indireta e não tem condições de observá-los em seu habitat natural. Muitas vezes é preciso solucionar problemas ou ajudar animais que vivem em áreas remotas e a taxidermia ajuda a pensar nessa solução sem ter que ir para o topo do Everest ou para algum cantinho da Antártida.
A taxidermia permite criar um catálogo de animais e imortalizar espécies que eventualmente sejam extintas. É uma enciclopédia visual dos animais do planeta que tem um valor enorme nos dias atuais e, quem sabe, terá mais ainda no futuro, com o avanço da tecnologia.
Ela serve até mesmo como ferramenta de inclusão. Pode ser usada, por exemplo, para permitir que pessoas com deficiência visual “conheçam” os animais pelo tato.
Antes do surgimento dos grandes meios de comunicação e da máquina fotográfica, a taxidermia era a única forma de conhecer animais nativos de outros países sem ter que ir até eles. Era comum que a nobreza ostentasse animais exóticos empalhados como símbolo de status.
Um caso ficou muito famoso: o Leão de Gripsholm. O rei da Suécia, Frederico I, era obcecado por leões, por tudo que escutava falar de sua beleza e imponência. Após alguns acordos duvidosos, o rei da Argélia, em gratidão, resolveu enviar um leão morto de presente para Frederico, para que seja empalhado e exposto no seu palácio.
Foi o primeiro leão empalhado da escandinávia e… o resultado… bem, deixo aqui as fotos…
Em defesa do pobre infeliz que fez isso: 1) a distância da Argélia até a Suécia é grande, o que significa que boa parte do animal chegou decomposta, ou seja, deformada, mole, alterada e 2) os taxidermistas que fizeram esse trabalho nunca haviam visto um leão, portanto, tiveram que fazer o processo apenas com base em relatos, sem qualquer parâmetro para saber se estava condizente com a realidade ou não. Deve ser bem difícil montar um bicho todo derretido/decomposto, sem nunca ter visto como ele era quando inteiro.
Mesmo quando o animal estava em boas condições as dificuldades eram enormes. Há relatos de que a primeira pele de ornitorrinco que chegou à Europa para o procedimento foi descartada por acharem que se tratava de uma piada. Pensaram que alguém havia costurado um bico de pato em uma pele de castor. A piada, no caso, foi feita pela mãe natureza. Duros tempos para a taxidermia.
Este caso famoso do Leão de Gripsholm é um bom exemplo de como taxidermia é uma arte difícil não apenas pelas habilidades que um taxidermista deve ter, mas por diversos fatores que são cruciais para o processo, como tempo, materiais utilizados e conhecimento anatômico do animal. Como você pode supor, foi realizado pelos melhores do local (apenas os melhores trabalhavam para o rei) e, ainda assim, ficou bem ruim.
A taxidermia se divide em dois grandes grupos: a científica (para fins de estudos e educativos) e a artística, apenas para fins decorativos ou de exposição. Quando a ideia é expor o animal para fins educativos, normalmente se acrescenta algum contexto, algum cenário, geralmente o habitat no qual os animais seriam encontrados na natureza. Quando é para fins artísticos, ela é livre, sendo comum inclusive criar animais que não existem, unindo partes de diferentes animais. Um milionário excêntrico mandou fazer um Pegaso, um cavalo alado, para colocar na sua sala.
Para ser um bom taxidermista é preciso, além de habilidades manuais, um bom conhecimento em biologia (principalmente anatomia animal) e química. É preciso entender como o posicionamento de cada músculo interfere na expressão e postura do animal. É preciso compreender a melhor forma de preservar seus tecidos e substituir aquilo que não pode ser preservado (como olhos, nariz, cauda, orelhas, língua e mandíbula).
No Brasil, a taxidermia chegou trazida por europeus, com o principal objetivo de catalogar e ensinar sobre as espécies nativas, que eram levados a laboratórios e faculdades. Durante algum tempo era uma arte com um belo campo de atuação.
Porém, à medida que a caça passou a ser proibida, a possibilidade de atuação de taxidermistas foi reduzindo, até quase desaparecer. Hoje não existem muitos profissionais realmente qualificados no Brasil, em parte pela dificuldade de ter acesso a animais, em parte pela dificuldade de ter acesso a conteúdo, já que os bons livros sobre o assunto estão em outros idiomas.
Hoje, as leis ambientais tornam praticamente impossível matar um animal nativo, mesmo que seja para fins educativos. Portanto, a taxidermia só pode ser realizada em animais que morreram por outras causas. E, geralmente não encontramos animais que morreram de velhos por aí, são causas da morte costumam violentas: atropelamento, animais mortos por predadores, etc. Se já é um processo difícil normalmente, imagina a complexidade de taxidermizar um animal com metade do corpo esmagado pelo pneu de um caminhão.
Além disso, animais taxidermizados não são meros objetos que podem ser deixados em uma estante indeterminadamente. Apesar de todo o processo de preservação, ainda são material orgânico, o que significa que precisam de “manutenção” para não perecer, especialmente em locais de clima quente como o Brasil. Isso é mais um dificultador: a manutenção é cara e é para sempre.
Isso explica o motivo de não existirem muitos museus com animais taxidermizados no país. Seria maravilhoso ter museus regionais com todos os animais da área em exposição, mas infelizmente isso não é uma realidade viável hoje.
O processo é complexo, demorado e requer muita habilidade. O ideal é que ele comece antes das 24h da morte do animal, pois passado esse período a carne começa a se decompor, comprometendo o resultado.
O animal precisa ser congelado já na posição na qual será imortalizado. E isso não é tão fácil quanto parece. Escolher uma posição adequada, na qual o bicho pareça natural demanda algum estudo. Cada tipo de animal tem suas particularidades: a forma como senta, as patas nas quais apoiam o peso, a forma como a cabeça de movimenta. São muitos detalhes. Algumas vezes é preciso até mexer na expressão facial.
Uma vez definida a posição, o corpo do animal é “imobilizado” nela, usando arames e apoios, e colocado para congelar. É preciso que seu corpo esteja bem rígido para fazer um bom trabalho.
Mas, antes de colocar o corpo no congelador, o taxidermista toma as principais medidas: circunferência do abdome, comprimento total do nariz à cauda, distância entre orelhas, largura da cabeça, distância do nariz ao olho e outras. Também é preciso medir as partes que serão substituídas, como olhos, nariz, língua e outros, pois eles deverão ser reproduzidos em outros materiais.
Quando o animal estiver bem congelado, é hora de começar o processo.
O primeiro passo é tirar um molde do corpo do bicho, a chamada “máscara mortuária”. Esse molde é feito em gesso. O corpo do animal é submergido, criando um “molde negativo” ou seja, um buraco no gesso com a forma do animal.
Usando esse molde negativo se cria o molde definitivo, sobre o qual será estendida a pele do animal. O molde de gesso é preenchido com algum tipo de resina e, quando endurece, gera uma “estátua plástica” do animal que será usada para a base que vai sustentar a pele na versão taxidermizada.
Muitas vezes esse molde definitivo precisa da intervenção do taxidermista, esculpindo-o manualmente para dar um melhor caimento à pele do animal. Nele serão colocados os olhos falsos (que não são meras bolinhas de vidro, existe tamanho e forma de pupila para cada animal), e demais estruturas substituídas, como língua, nariz, cartilagem da orelha e outros.
Em paralelo, é feita a retirada da pele do animal, um procedimento extremamente delicado que demanda paciência e precisão. O “couro” do animal é removido com o mínimo de cortes e estragos possíveis e colocado “de molho” em químicos que ajudam a retirar a sujeira e gordura, impermeabilizando a pele e evitando que ela apodreça.
O tempo e o tipo de produto dependem do animal. A pele de um mamífero não é igual à pele de um pássaro, de um réptil ou de um peixe. Mas, em média uma pele demora cerca de 30 dias para ficar pronta. Aí sim ela pode ser colocada por cima do molde.
Quando a pele está pronta, devidamente protegida contra decomposição, traças e demais problemas, é hora de montar o animal. A estrutura-base terá a pele fixada com uma cola especial e depois essa pele será costurada em locais estratégicos, para garantir que se mantenha no lugar. A costura é feita em locais menos visíveis, como a parte inferior da barriga.
Pode ser necessário pintar, maquiar ou colorir o animal, para cobrir imperfeições ou dar um aspecto mais natural. É uma verdadeira obra de arte 3D, que vai muito além da habilidade. É preciso também bom-senso e bom-gosto para saber até onde ir, o que fazer e a hora de parar.
O tempo para que todo o animal fique pronto também é relativo. Um peixe pequeno pode demorar um dia, um elefante pode demorar anos. E o tempo pelo qual o animal ficará bem preservado vai depender da manutenção. Uma taxidermia bem-feita e com manutenção adequada pode durar muitas décadas.
Provavelmente tem algum leitor se perguntando se é possível taxidermizar seres humanos. Sim, tecnicamente é possível, mas o resultado não é tão bom por uma série de motivos.
O primeiro deles é a falta de pelos, que torna muito visível qualquer imperfeição no processo, como a cicatriz no local em que a pele é cortada, rasgos etc. Outro é a cor da pele, que acaba mudando com os químicos que recebe. Se for uma pele clara, ela vai ficar visivelmente mais escura e causar uma impressão de artificialidade. Por fim, somos muito sensíveis a expressões faciais, seria muito difícil conseguir uma expressão facial natural nessas circunstâncias.
O mais indicado para preservar corpos humanos é o embalsamamento (papo técnico: tanatopraxia). Mas isso é assunto para outro texto.
É uma pena que o trabalho dos taxidermistas não seja devidamente reconhecido e estimulado no Brasil, pois além de ser extremamente difícil, ele é extremamente importante. Todo animal brasileiro deveria ter uma versão empalhada disponível para consultas científicas e para fins educativos.
Para dizer que quer um unicórnio na sala da sua casa, para dizer que esse leão só pode ser piada (não é) ou ainda para dizer que alguns animais feios é melhor deixar morrer sem registro: sally@desfavor.com
Anônimo
Não fazia ideia de como isso era complexo, apesar de já imaginar que era difícil.
Talvez a taxidermia no futuro consista em fazer bonecos e robôs que imitem quase perfeitamente a pele e outras características dos animais.
UABO
Taí algo em que eu não tinha pensado. Pode ser que no futuro aconteça isso mesmo…
Ge
Imagina só fazer taxidermia de humanos? Acho que o resultado seria tenso…
UABO
Esse Leão de Gripsholm é de dar medo! Ô trocinho feio…