
Tudo em Todo o Lugar ao Mesmo Tempo
| Desfavor | Ele disse, Ela disse | 2 comentários em Tudo em Todo o Lugar ao Mesmo Tempo
O vencedor do Oscar (em várias categorias, incluindo Melhor Filme) 2023 dividiu opiniões entre Sally e Somir. Algumas delas bem profundas. Os impopulares escolhem sua versão da realidade.
Tema de hoje: Tudo em Todo o Lugar ao Mesmo Tempo é um filme idiota ou genial?
SOMIR
Genial é mais uma das palavras que sofreram inflação de significado com o passar do tempo. No sentido moderno de qualquer coisa interessante e um pouco mais esperta que a média, eu considero genial sim. É um filme sobre uma pessoa lidando com a percepção do multiverso ao mesmo tempo que tenta consertar suas relações familiares.
Muita coisa poderia dar errado com essa base metafísica, o filme poderia se perder em puro barulho como os filmes de super-heróis recentes, mas para mim seu grande mérito foi se manter suficientemente focado na história que tenta contar. Sim, é um festival de estímulos visuais e sonoros, mas não é difícil ficar junto com a protagonista e seus desafios durante o filme.
Ponto positivo para o roteiro, a direção e até mesmo os efeitos especiais. A bagunça é o cenário do filme, mas ele não te aliena do que diz ser importante: as relações humanas. Evelyn está sempre no centro dos acontecimentos e podemos ver claramente como ela interage com quem vive ao redor dela. O multiverso é um pano de fundo, que se mantém como pano de fundo o tempo todo.
Se você analisar esse filme em comparação com o que Hollywood andava fazendo nos últimos anos (décadas?), o filme é um mix de qualidade técnica e boa história que realmente merecia ser premiado. Eu achei todo o papo sobre premiar uma pessoa asiática uma bobagem típica dos tempos modernos (ganhou porque tinha méritos, não ganhou para corrigir falhas históricas da Academia).
E foi nessa qualidade técnica que o filme me ganhou. Cenas interessantes, visuais impactantes, até mesmo os elementos mais caóticos do filme serviam ao roteiro. Estou batendo na tecla de ser algo muito bem feito e com uma história muito bem focada porque a ideia de multiverso não é lá novidade, pelo menos para quem tem curiosidade sobre físicas nos últimos anos.
Como bom cético, eu não tenho nenhuma crença na existência de múltiplos universos paralelos, não existem evidências para colocar isso como realidade provável, sequer possível. Os Múltiplos Mundos é apenas uma interpretação da física moderna, e não é a vigente. Ainda estou no time Copenhague de apenas uma realidade até segunda ordem.
O multiverso é uma ideia fascinante, mas ainda é apenas uma ideia. É a presunção de realidades infinitas para cada uma das possibilidades infinitas que aparecem quando você considera o mundo quântico um mar de probabilidades sem fim. Em tese o multiverso permite infinitas realidades possíveis, o que exclui infinitas realidades impossíveis: eu não aceitei as partes mais malucas do filme como a realidade das mãos de salsicha ou mesmo do guaxinim, porque elas não poderiam acontecer de verdade. A humanidade não evoluiria como evoluiu com mãos de salsicha. Destreza manual é um dos fatores mais importantes da nossa espécie, não tinha como evoluir sem isso.
Admito que trouxe humor para o filme, eu me diverti com as bobagens, mas pra mim foi um distanciamento de qualquer presunção de realidade científica na história. Virou entretenimento. Até por isso eu discordo da Sally sobre as críticas mais profundas sobre a história: os dedos de salsicha entregam que o filme não é uma análise sobre um possível multiverso, é só mesmo a história de como uma mulher lidou com a crise de meia idade e aprendeu a encontrar valor no que já tinha.
Não é uma história sobre transcender a realidade em busca de algo maior, eu argumentaria que é mais sobre “fazer o seu” e parar de tentar controlar o universo. Sim, poderíamos fazer milhões de coisas diferentes, mas não fizemos, o que temos é o que temos. Não é nem a ideia de que tudo aconteceu e vai acontecer ao mesmo tempo que te obriga a rejeitar a sua realidade. Faça o que quiser, mas saiba que quem não vive no mundo que tem não vive em mundo nenhum.
Duvido que tenha sido o objetivo do roteiro, mas por tabela o filme também conta uma história sobre não engolir qualquer explicação fantástica sobre o estado atual da sua vida: você tem controle sobre algumas coisas e não tem sobre outras. Eu enxerguei uma rejeição à ideia niilista de que nada vale a pena, tudo vale a pena se você quiser que valha.
Quando Evelyn rejeita se entregar ao mar de probabilidades infinitas e “colapsar” numa realidade só, ela não está desistindo de nada. Oras, todas as realidades coexistem. Isso dá valor para a sua atual. Se por um acaso o objetivo de tudo é experimentar todas as probabilidades para acumular conhecimento, a sua realidade agora é tão válida quanto todas as outras. Se você não viver a sua, está privando de todas as outras o conhecimento dessa.
Não acho derrotismo escolher a família. Até porque num contexto de multiversos, tempo é o que mais temos. Cada segundo vale por infinitos segundos, não precisa ter pressa de nada. Nada é mais importante se você está experimentando toda a realidade ao mesmo tempo. Pode ficar tranquilo(a), o objetivo da vida está sendo cumprido de qualquer jeito. A filha dela queria pular fora, achou que já tinha visto tudo. Mas quando a mãe toma uma decisão inesperada, não fica provado que ela não tinha visto tudo?
A experiência da mãe demonstrou a falha no pensamento da jovem: o de que já sabe o que precisa saber. Idade traz muitas dúvidas, erode certezas. E está tudo bem. Na lógica do filme, o isolamento das mentes dentro de apenas uma realidade parece ser um mecanismo de segurança para evitar o tipo de tédio arrogante que a filha teve. Tanto que conta a história da garota ser resultado de um experimento falho. A ideia de escolher a sua realidade só é desistência se você acha que não precisa mais experimentar todas as realidades. A realidade onde Evelyn fracassa em vários de seus sonhos é a realidade onde ela consegue tempo e disponibilidade mental de se conectar com sua filha.
O que pode ser meio melodramático, mas é uma das facetas da psique humana. É uma das experiências possíveis, e ela estava vivendo nessa. Se você tem a prova de que tudo acontece ao mesmo tempo, nenhuma realidade é inútil. E talvez o mais importante: Evelyn pode escolher ficar na sua. Depois que vira escolha, eu não vejo mais problemas. O bagel do destino estava lá, era só entrar.
E no multiverso do filme, toda escolha é válida. Ela só calhou de fazer essa para ver onde essa realidade desembocaria. Todas as realidades importam e o senso de ser incompleto é só uma ilusão causada pela separação entre as mentes de cada uma delas. Neste contexto, achei uma decisão tão válida quanto qualquer outra, porque de fato é tão válida quanto qualquer outra.
Multiversos são infinitos, então faz o que achar melhor e fica tranquilo.
Para dizer que o papo está profundo demais para um filme sobre mãos de salsicha, para dizer que achou exagerado (talvez, mas tinha motivo), ou mesmo para dizer que ia para o bagel sem pensar meia vez (uma das suas versões faria isso mesmo): somir@desfavor.com
SALLY
O filme “Tudo em todo lugar ao mesmo tempo” é idiota ou genial?
Esperamos passar um mês da entrega do Oscar, assim, quem queria ver, teve tempo de ver e pode lidar com este texto sem sofrer as consequências dos spoilers. Se você ainda não viu o filme e quer ver, recomendo que não leia o texto, pois vamos estragar o filme para você.
Apesar de todas as críticas favoráveis e as muitas estatuetas, eu achei o filme idiota. Não que necessariamente ele seja, é a minha opinião.
Até concordo com a premiação, pois quem consegue fazer um filme que atraia o grande público falando de multiverso, espaço-tempo e de unidade realmente merece o reconhecimento. Também entendo o valor do filme: levar ao menos um conceito básico disso para todos é louvável. Mas para o público EU, achei idiota.
Justamente pela intenção de atingir pessoas do mundo todo, foi preciso descer uns degraus e, na minha opinião, ficou idiota. E não estou falando que seja um erro fazer um filme idiota. Quando se fala de um assunto muito complexo, é quase que uma necessidade que o filme seja idiota, bem idiota, para que as pessoas não se cansem, não sejam sobrecarregadas e não desistam do filme. A estratégia foi muito bem jogada. Mas, para mim, o filme me pareceu idiota, quase infantil.
E o final… o final sim dá para criticar, no final fica clara a intenção de se vender e de dar ao público o que ele quer ver em vez de, talvez, quem sabe, induzir a alguma reflexão ou tentar expandir um milímetro a mente das pessoas. Vamos falar rapidamente do filme e já conversamos sobre o final.
O filme relata a vida medíocre de uma mãe de família, que vive no piloto-automático, soterrada por problemas mundanos e burocracia, até que ela descobre que existem infinitas realidades paralelas acontecendo todas ao mesmo tempo e aprende como pular de uma para a outra. Em cada uma delas, ela tem uma vida diferente e o mundo no qual vive também é completamente diferente.
Para ressaltar que são realmente infinitas possibilidades, o filme escolhe ir pelo caminho do absurdo, mostrando diferentes realidades absurdas, grotescas, risíveis, como por exemplo uma realidade onde todos os seres humanos evoluíram de modo a ter dedos de salsicha (comestíveis). Precisava? Não precisava. Dava para passar esse recado sem se exceder dessa forma, não é mesmo?
O figurino também me incomodou um pouco. Muita fantasia, muita cor, muita cara de festa infantil. Clovis Bornay olharia e diria “Para, que tá over”. Eu entendo o desejo de criar contraste entre diferentes realidades, eu entendo a intenção de reforçar que tudo é possível, mas porra, meu olho não é penico. Não precisava o look Mangá Cheirando Cocaína, realmente não precisava.
Tantos recursos visuais me ofendem. Parece que estão tentando contar uma história para criança com fantoches. Parece adulto quando quer chamar a atenção de bebê e fica estalando os dedos para o bebê olhar para ele. Francamente, apenas conte a porra da história sem precisar escorar sua compreensão ou atenção do público em cores e sons e sim em um bom roteiro.
E, finalmente, o final do filme. Um filme que tinha tudo para dar um passo corajoso além e mostrar que este mundo é um amontoado de burocracia sem propósito do qual as pessoas devem querer sair (não no sentido de suicídio, por favor), reforçou o valor desta existência medíocre, em nome de um clichê vagabundo que serve de consolo e muleta para quem ainda está apegado à matéria.
No final do filme, a protagonista tem a opção de se juntar ao “tudo em todo lugar ao mesmo tempo” (que foi reunido em… uma rosquinha) e sair da ilusão daquela realidade na qual ela vive… ou voltar para ela como se nada. E, adivinha, ela resolve voltar para a vidinha ilusória por “amor” à filha e à sua família, pois se ela fosse para a unidade, para essa reunião de tudo em um único lugar, ela se tornaria um com tudo e todos, tendo que abrir mão do seu ego, da sua personalidade e seus apegos.
Passar a mensagem que de vale a pena ficar em um mundo ilusório e limitado por um sentimento que pretensamente se chama de “amor” é reforçar tudo que existe de errado com as crenças humanas, com a sociedade e com o propósito coletivo. Não precisava ter feito esse desfavor. Um final aberto seria melhor do que isso.
Amor não é isso, o que o filme retrata é apego, mas vocês não estão prontos para essa conversa (provavelmente nem eu estou). Não querer sair da Matrix, da ilusão, da Roda de Samsara por querer ficar perto de fulaninha é como se recusar a tirar uma venda dos olhos e ver a realidade por gostar dos amigos imaginários que inventou.
“Mas Sally, quem disse que é tudo ilusão?”. O filme, porra. Se tem trocentas versões da sua vida acontecendo ao mesmo tempo, isso significa que a que você vive agora não é “a real”, nem a realidade. A realidade é tudo, todas elas. E a única forma de verdadeiramente experenciar essa realidade é reuni-las todas e se unir a isso… conhecido, no filme, como a rosquinha.
Mas não, vamos criar um apego por essa ilusão que escolhi chamar de “minha filha” nesta pequena realidade limitada e vamos nos manter nessa ilusão camuflando esse apego de amor, assim todo mundo do público se sente acolhido por todas as decisões bostas, covardes e medíocres que tomaram na vida em nome de um pretenso amor.
Passou a mensagem (errada, errada, errada, muito errada) de que vale ficar nesse mundo irreal, egóico e impermanente. Passou a mensagem que mais vale uma ilusão que seja do seu agrado do que uma verdade eterna, imutável e inescapável, mas que te provoque medo pelo desconhecido. Fica lá, entretida, perdendo tempo em um mundo falso. Amor é o caralho, foi um final covarde mesmo.
Acho o filme válido, acho útil, acho até necessário. Mas isso não me faz gostar. Penso o mesmo de colonoscopias regulares para checkup e nem por isso gosto. Eu realmente não preciso de peruquinha, glitter e toda essa pirotecnia para entender multiverso, espaço-tempo e unidade. E, se um dia vocês puderem escolher, por gentileza, sejam melhores: desistam do mundo e vão para a rosquinha.
Para dizer que eu não sei o que é amor (não, você é que não sabe), para dizer que o elitista costumava ser o Somir ou ainda para dizer se indignar por eu ter comparado o filme com tomar no cu: sally@desfavor.com
Somente conseguiria conceber o “aceitar a rosquinha” se considerar suicídio como forma de “escapar”.
O que percebi foi uma maneira (extremamente colorida e pastelão) de mostrar uma pessoa com extrema dificuldade de aceitar que sua vida é uma merda e que, não, ela não tem nada de especial – tudo são sonhos acordados, que todo mundo adoraria ser verdade.
O final me é ela aceitando que sim, é tudo uma merda, mas é a merda dela, e ela vai se virar com o que tem ao invés de viver de ilusões e “e se”.
Estou totalmente com o Somir nessa (embora também não goste do termo “genial”, idiota é algo que não considero o filme).
Li recentemente o livro “A Biblioteca da Meia Noite”, que traz uma história parecida com filme. Não vou dar spoilers, mas recomendo muito o livro!
Acho que a grande questão é que as diferentes vidas são de outras versões dela, nunca é a mesma Evelyn, pq nunca é a mesma realidade. Então, de certa forma, a Evelyn “original” (a do mundo burocrático), acaba “roubando” a vida das outras Evelyns, e por mais perfeita que aquela vida pareça, não foi ela que viveu realmente.
Acho que dizer que ela opta por voltar pra realidade dela por amor é simplificar muito. Ela retorna porque aquela é a vida que ela ( a Evelyn original) escolheu, em cada bifurcação que apareceu no seu caminho, e com todos os problemas ela consegue valorizar a família que ela construiu ali, porque, no fim, isso era o que realmente valia para aquela Evelyn.
Quanto a parte da filha e da imaturidade versus “saber tudo”, não acrescento nada. Achei perfeito.
Acho que são 2 histórias (o filme e o livro) que trazem uma visão mais otimista e gentil pras nossas vidas (que na maioria das vezes é burocrática mesmo).