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Irreal.

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| Desfavor | | 22 comentários em Irreal.

Mais longeva monarca britânica da história, que passou 70 anos no trono, atravessou crises e guerras e virou ícone pop, a Rainha Elizabeth II morreu nesta quinta-feira (8), aos 96 anos, no castelo de Balmoral, na Escócia. O anúncio foi feito pelos canais oficiais da família real. LINK


Peraí, a morte dela é um desfavor? Alguém deveria se importar tanto assim com isso? Claro que não. Mas a gente não ia perder a chance de trazer as reações do povão (inclusive o argentino) como Desfavor da Semana.

SALLY

Em 2008, quando o Desfavor começou, achamos que seria engraçado eventualmente fazer textos caricatos, emulando algum tipo de loucura onde se defendia o indefensável. Assim surgiu o amor lunático da Sally pelo Rafael Pilha. Não importa o que ele fizesse, sempre havia um argumento para aplaudi-lo e desmerecer os demais que os criticavam.

Pilha vendeu drogas? Um empreendedor! Pilha amarrou uma moça no banco de trás da sua Hilux? Um ícone na luta contra as drogas! Pilha pegou bosta e esfregou na cara? Um precursor no tratamento dermatológico natural! Qualquer texto meu falando nele, inclusive narrando sua participação no reality “A Fazenda”, é nesse tom insano, fazendo uma distorção absurda para encontrar algo positivo no que ele faz e algo negativo em quem o critica.

Já foi engraçado. Hoje não é mais. Sabem o motivo? O cidadão médio acabou ficando exatamente assim. Defende o indefensável, com argumentos que apenas a Sally Maluca Pilhamaníaca seria capaz de pensar e usar. Não é mais engraçado pois deixou de ser uma caricatura, um exagero cômico, e se transformou na realidade. Para qualquer coisa que se apresente, pessoas viraram um “tudo ou nada”, um “a favor ou contra” com os argumentos mais insanos que se possa imaginar.

Esta introdução valeria para basicamente qualquer texto do Desfavor da Semana deste ano, mas calhou de ser o da reação das pessoas à morte da Rainha Elizabeth II. E hoje me permito uma licença para não colocar o foco todo no Brasil e falar um pouco sobre o que aconteceu na Argentina.

A TV aberta argentina anunciou a morte da rainha de uma forma bastante… peculiar. Os presenteio com um breve exemplo:


Teve apresentador abrindo as notícias com “Se murió la vieja hija de puta” (“a velha filha da puta morreu”) ou com “se murió la vieja de mierda” (“a velha de merda morreu”). Isso seguido de comemoração, de apresentador levantando taça de champagne, usando chapéu de aniversário, língua de sogra e confete para comemorar, gritando coisas no estilo “está sentada no colo do capeta agora, velha maldita” e rindo horrores.

Boa parte do povo argentino está em festa, celebrando, bebendo e comemorando a morte da rainha. Como se o problema da Inglaterra ou do mundo pudesse ser jogado nas costas da infeliz. Personificar o bem ou o mal é um recurso lúdico para contar histórias infantis, saiu disso é retardo mental.

O argentino é um povo rancoroso e nunca superou a ferida no ego do que lhe aconteceu nas Malvinas/Falkland (tem texto só sobre isso aqui no Desfavor, então, não vou entrar nesse mérito) e personificou esse feito na figura de Elizabeth II, o que mostra, além de tudo, uma falta de compreensão de como as coisas funcionam: a rainha certamente não declara guerra a ninguém. Foda-se, estava lá, vai levar a culpa, alguém tem que levar a culpa.

Ainda assim, boa parte dos argentinos comemorou demais a morte da rainha, desde bar oferecendo bebida de graça para quem entrasse gritando “A velha de merda morreu” até gente comemorando pelas ruas, a morte de Elizabeth foi um evento.

Mesmo que você seja contra a rainha, a Inglaterra, a colonização ou o que mais queira alegar, é extremamente infantil comemorar a morte de uma idosa de 96 anos: primeiro por personificar tudo que você não gosta nela, segundo por ser inútil, uma vez que a monarquia, a Inglaterra e todo o resto vão continuar, mesmo com sua morte.

Na real, a guerra das Malvinas foi uma distração criada pela ditadura militar, logo, por coerência, qualquer um que tenha sido contra a ditadura, não deveria ficar exaltando as Malvinas. Ser manipulado por ditador deposto há 40 anos é um novo patamar de burrice.

Em contrapartida, no Brasil, eu vi gente que mora em Mossoró do Cu do Mundo tatuando “God Save The Queen”, fazendo vídeo e chorando “a morte da minha rainha”, o que é igualmente idiota e vergonhoso. Isso não é amor, não é admiração, é idolatria cega, doente e cafona.

É isso: acontece um evento, qualquer evento, e as pessoas imediatamente pulam para o lado dos “a favor” ou “do contra” e perdem tempo defendendo sua posição idiota e desinteressante como se fosse a própria vida. E esse é o ponto: a perda de tempo, não o moralismo de “é errado comemorar a morte de alguém”.

Não vamos posar de anjos de luz, a gente fica feliz ou triste com algumas mortes, pois achamos que o mundo fica melhor ou pior sem aquela pessoa. Mas daí a fazer disso uma comemoração ou um luto, tem um universo de distância.

Seja o argentino indo às ruas para comemorar como se fosse final da Copa do Mundo, seja o brasileiro se portando como se a rainha fosse a sua mãe, são todos lados de uma mesma moeda idiota, passional e improdutiva. Um gasto de energia inútil que só faz vergonha. Personificar em alguém tudo de nocivo que se apresentou na história do país ou tudo de positivo que se apresentou na história do país é atestado de não entender como o mundo funciona.

Enquanto as pessoas continuarem assim, precisando de ídolos e vilões, o mundo vai continuar essa bosta involuída. Enquanto as pessoas continuarem culpando o que está fora em vez de lidar com o que está dentro, nada vai se resolver. E enquanto se briga para saber se a rainha era “boa” ou “má”, se perde um momento histórico: o final de um ciclo e suas consequências, algo para o qual pouquíssimas pessoas estão olhando.

A verdade é que nada muda na vidinha da pessoa com a morte dela, então, não há razões para reações passionais, a não ser extravasar o que já estava dentro pedindo para sair, que certamente nada tem a ver com Elizabeth II. Em vez de personificar em uma figura pública ódio ou adoração, não seria melhor resolver a origem desses sentimentos sem propósito, para não precisar canalizá-los para nada nem ninguém?

Parabéns, o ridículo das pessoas diante da morte de uma idosa foi maior do que um Presidente que se diz defensor da família e da inocência das crianças berrando sobre a própria ereção em um ato público…

Para dizer que o “imbrochável” foi pior, para me explicar o motivo pelo qual Elizabeth foi uma filha da puta ou para me explicar o motivo pelo qual Elizabeth foi uma santa: sally@desfavor.com

SOMIR

Eu confesso que enchi o saco da Sally pra ela falar desse assunto, eu queria que vocês também tivessem acesso às informações vindas da Argentina para se chocar ou rir, talvez ambos. De nada. Eu sei que o “imbrochável” foi uma vergonha, mas é mais do mesmo, toda semana tem história insana do Bolsonaro… a véia só tinha uma.

E ela estava numa categoria própria mesmo: a rainha mais longeva da história do Reino Unido. 70 anos. A maior parte da humanidade viva hoje só escutou sobre a Inglaterra no contexto da rainha. Eu vou morrer achando que o som “Rei Charles” significa o músico cego e não o monarca inglês. Elizabeth era sinônimo de realeza para o mundo todo.

E não foi à toa: considerando que o acordo feito pelos seus antepassados para não acabar na guilhotina cedeu o poder decisório do reino para os “plebeus”, a família real britânica ficou com muita pompa, mas pouca circunstância… foi o carisma da Rainha Elizabeth II que transformou a monarquia inglesa no fenômeno pop que alcançou o século XXI.

Muitos de nós temos a memória da senhorinha curvada que só mexia a mão e sorria à distância, mas ela foi coroada muito nova. No tempo dela, era um mulherão! Não exatamente por suas curvas ou rostinho bonito, mas pela combinação de jovialidade, carisma e poder. Saindo da Segunda Guerra Mundial, o mundo estava cansado da carnificina. Os anos 50 e 60 não foram como foram no Ocidente à toa, esperança e renovação faziam parte do espírito daquele tempo.

E foi nesse clima que Elizabeth foi criando sua imagem. Imagino que para as mulheres da época, ainda muito reprimidas, ver aquele avatar do poder em forma de jovem sorridente fosse muito inspirador. Se você é dos anos 80 pra frente, não pegou a era onde a rainha era algo um passo acima de uma estrela de cinema. Já fomos criados vendo-a como a matrona de um grupo muito tradicional, mas antes disso, Elizabeth tinha o seu quê de rebeldia. Sempre muito contida, mas um pouco mais afeita aos plebeus que seus antecessores.

Eu não sei o quanto foi tino comercial dela e o quanto foi a oportunidade que o tempo apresentou, mas no final das contas, a realeza britânica que ela herdou se transformou: de uma instituição milenar para uma das marcas mais valiosas do mundo. Cada evento da vida de sua família era transformado em milhares de produtos licenciados. Estima-se que a marca que ela ajudou a construir é lucrativa para o Reino Unido, mesmo considerando os gastos nababescos que sua manutenção exige.

Realeza se divide antes e depois de Elizabeth II. Um sistema de poder transformado em marca registrada em pratos e taças bregas e num reality show mundial muito antes da moda dos reality shows. Todo mundo no mundo sabia quem era a rainha da Inglaterra, quase ninguém sabe nomear outro monarca em atividade no resto do mundo. A família real britânica soube manter seu valor usando estratégias de marketing e relações públicas como nenhuma outra.

Por mais que eu concorde com a Sally que seja infantilidade comemorar a morte de uma pessoa que viveu 96 anos com tudo do bom e do melhor (mesmo durante a guerra), eu sinto alguma simpatia pela raiva dos nossos hermanos: finalmente se foi o último símbolo realmente carismático desse modelo bizarro que é a monarquia.

Charles é um picolé de chuchu, seus filhos no máximo conseguem alguma polêmica, o futuro da família real não é desastroso, longe disso, sua fortuna ainda é astronômica; mas eu acredito que a marca tomou um golpe muito forte. Ainda temos alguns meses de grandes eventos e “glamour” pela frente, mas a influência da rainha vai começar a diminuir com o tempo.

Tomara que isso ajude a esvaziar o valor da monarquia na mente das pessoas. Mesmo que você não tivesse nada contra a falecida rainha pessoalmente, ela ainda era símbolo de um tempo horrível da história humana, o tempo de líderes absolutistas cujo poder tinha raízes divinas. Elizabeth II tinha tanto carisma e sabedoria para guiar sua marca que conseguiu tirar de moda a ideia de eliminar a monarquia do mundo.

Hoje em dia a família real é uma vendedora de enfeites e fofocas para tabloides, sim, mas não é assim que o povão enxerga a coisa. Os brasileiros emocionados são prova disso: achavam aquilo tudo muito nobre, chique. Era a rainha de outro povo, povo que tratou a América do Sul como mais uma colônia em seu tempo de dominância. Não advogo ter raiva dos ingleses hoje pelo o que seus tatatataravós fizeram, mas a coroa inglesa não é algo que deveria ser celebrada tanto assim por estas bandas.

Como a marca que a ex-rainha criou era poderosa, muita gente deixou de pensar na realidade da coisa. Eu torço muito para que toda a ideia de monarquia vá perdendo o glamour, ficando tão estranha e deslocada da modernidade quanto o resto dos títulos nobres do passado. Que reis e rainhas sejam duques, viscondes e tudo mais que nos faz rir atualmente, não mais essas figuras mágicas que encantam o povão.

Porque isso incentiva a ideia de que existe desígnio divino na escolha de líderes (o que o gado bolsonarista acredita), ou incentiva a ideia de que a posição de poder eleva o indivíduo (o que o gado lulista acredita). Eu quero viver num mundo onde enxergamos líderes como eles são: pessoas que erram e acertam, mas que de mágico nada tem. A monarquia inglesa é um dos símbolos dessa liderança sem mérito. Sim, eles não mandam no seu reino como mandavam séculos atrás, mas eles sustentam a imagem do líder mágico.

Não quero culpar Elizabeth II por ter criado o populismo fantasioso que domina países como o Brasil, afinal, ela estava só garantindo o uísque 24 anos das suas crianças; mas a imagem que ela projetava com certeza ajudou a preparar o terreno para imbecis e corruptos elevados ao status de divindades que lideram as pesquisas atualmente.

A rainha da Inglaterra era só uma pessoa. Uma pessoa esperta e carismática, mas nada além disso. É de uma tremenda imbecilidade acreditar que seu líder preferido é algo além de uma pessoa qualquer. Que existe alguma mágica guiando suas decisões ou que há nobreza implícita em suas visões de mundo. Elizabeth II era só uma pessoa. Sim, é besteira fazer drama por causa da morte dela, mas ela morreu num mundo que ajudou a criar: um mundo onde as pessoas ainda ficam maravilhadas com imagem sem conteúdo.

Espero que tenha sido a última. Nada contra ela especificamente, mas… murio la vieja de mierda! Tomara que isso ajude o mundo.

Para dizer que não posso mais entrar na Inglaterra, para dizer que agradece por eu pedir o texto sobre a Argentina para a Sally, ou mesmo para dizer que a macumba do Charles era fraca: somir@desfavor.com


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