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Escravos do futuro.

Escravos do futuro.

| Somir | | 32 comentários em Escravos do futuro.

Alguns séculos atrás, a humanidade estava terrivelmente confortável com a ideia de escravidão. No mundo moderno, por mais que tenhamos outros métodos de explorar pessoas, isso já não é mais verdade. Mesmo com casos de abusos cometidos por “empregadores”, o conceito de escravizar outro ser humano não é mais algo tolerável. O ser humano vira a chave para algumas coisas dadas as condições ideais, e eu realmente acredito que a próxima chave a ser virada é a da aceitação da pobreza.

Nos tempos em que sequer era crime escravizar outro ser humano, e esses tempos vão longe, os africanos que vieram para as Américas são o último grande exemplo dessa prática, mas nem de longe o primeiro; podemos argumentar que nem mesmo entre os povos escravizados a rejeição ao conceito de escravidão era tão grande quanto é atualmente no século XXI. No Brasil mesmo, até mesmo alguns negros tinham escravos quando era legalmente permitido ter.

Era a mentalidade da época, uma ideia de como a sociedade era e pouca ou nenhuma esperança de mudanças. É importante manter isso em mente: não foram pessoas que inventaram esse abuso horrível de outro ser humano, foram pessoas que seguiram o fluxo do local onde viviam e com exceção dos últimos anos do século retrasado, sequer foram repreendidos por isso. Era normal naquele tempo.

Normal ao ponto de a pessoa provavelmente passar a vida toda sem ser confrontada pelo horror que é tratar outra como gado. Pelas informações que eu tive até hoje sobre o tema, a crueldade não era a norma nos donos de escravos, não crueldade no sentido de violência e tortura constantes, pelo menos. Existia uma zona cinzenta entre a ideia de propriedade e humanidade do escravo. Não servia para ter direitos, mas servia para fazer tarefas claramente humanas, como cuidar de casas, amamentar crianças, serem amantes (homens e mulheres), em alguns casos, alguns escravos mais adaptados à vida sem direitos acabavam até tocando negócios e tomando decisões técnicas sobre as fazendas e empresas de seus donos.

Não, não estou tentando dizer que a escravidão não era uma coisa ruim, porque claramente é. Ser humano tem que ter direito humano. Quando você tira dele seus direitos básicos, está fazendo algo horrível e imperdoável. O meu ponto aqui é que a sociedade antiga fazia “vistas grossas” para o fato óbvio que o escravo era humano. Os donos sabiam que eram pessoas ali, quando era conveniente, focavam no aspecto humano.

Mas enquanto a sociedade não pressionava para o término dessa prática, aqueles que tiravam vantagem daquilo se acomodavam com a ideia de que “as coisas são assim”. Tratar um ser humano como gado quando quisesse era vantajoso demais para a maioria das pessoas sequer olhar para outra direção. É fácil criticar as pessoas que tinham escravos hoje em dia, quando está tudo às claras e a visão prevalente da sociedade é de rejeição à escravidão. As pessoas que se levantaram contra a escravidão nos tempos que isso era impensável são exemplos luminosos do que o ser humano deveria ser, mas sejamos honestos: é difícil enfrentar o bando, é pouca gente que tem o que é necessário pra isso.

Os mais interessados em história sabem que a escravidão não acabou por “amor aos direitos humanos”, e sim uma pressão econômica vinda especialmente da Inglaterra, que queria moldar o mundo para uma sociedade de consumo como conhecemos hoje. Com imensa vantagem na industrialização, os ingleses resolveram dar ouvidos aos que criticavam a escravidão. Não é cinismo puro: muita gente estava nessa por querer ajudar o próximo mesmo, mas não fosse a Revolução Industrial, eu duvido que o ser humano tivesse algum incentivo financeiro para terminar com essa prática horrível.

E os ingleses estavam certos: libertar os escravos ajudou a criar novos modelos econômicos muito mais lucrativos em geral. Sim, os negros foram absolutamente sacaneados no processo de término da escravidão, mas em linhas gerais, a humanidade teve uma disparada imensa na produção e distribuição de riquezas depois do fim da escravidão. Vemos todos os dias nas notícias como os ex-escravos foram deixados para trás na pobreza, mas o pobre do século XXI vive na abundância em comparação com o escravo do século XVII…

Não corrigimos injustiças de uma vez, mas a mudança de mentalidade em geral fez um bem tremendo para a humanidade. Não só porque começamos a nos importar com direitos humanos, mas também porque essa mudança de foco do escravo para a máquina permitiu extrair e criar muito mais valor para ser dividido entre nós. Se abolir a escravidão tivesse vindo junto com uma onda de fracassos econômicos, eu duvido que teria durado. Mas como deu certo na parte financeira, você não pode ter mais escravos por motivos humanitários. *piscando

Todos esses pontos sobre escravidão foram estabelecidos para tentar te fazer ver os mesmos paralelos que eu estou enxergando agora: estamos em 2022 e tem gente passando fome. Tem gente sem acesso a educação, saúde, segurança… e não estou falando de achar um hambúrguer caro, se consultar com um médico de má vontade, estou falando sobre ausência de elementos básicos para tocar uma vida como achamos que ela deve ser hoje em dia.

Embora exista a relação óbvia entre o escravo liberto com uma mão na frente e outra atrás num país estranho e a imensa maioria dos negros pobres que vivem em países como Brasil e Estados Unidos, eu estou falando da pessoa miserável em geral. Pode ser de qualquer cor e qualquer descendência. Tem gente vivendo ao mesmo tempo que a gente que não foi chamada para participar do Século XXI. Muitas delas não devem morar muito longe de você.

Flertando com o desastre: a gente está tão acostumado com a existência de miseráveis atualmente quanto os donos de escravos estavam acostumados com a escravidão séculos atrás. Não é aceitável que exista gente passando fome, não é humano que alguém nasça numa casa pobre e tenha que se esforçar muito mais que outro ser humano para ter condições mais decentes de vida. Ou os direitos são humanos, ou não são.

Os escravocratas da época foram rápidos em dizer que ia acabar a comida do mundo sem ninguém pra trabalhar na lavoura. Disseram que a sociedade ia ficar miserável e que a ordem natural das coisas seria desfeita. Compara uma fazenda moderna com uma fazenda tocada por escravos… compara a riqueza daquele tempo com a riqueza atual.

Eliminar a pobreza (não eliminar os pobres, antes que alguém pense em genocídio) vai gerar o mesmo tipo de reação: “a sociedade não aguenta esses custos, ninguém vai querer trabalhar, não é justo com quem se esforça, eu me viro sozinho…”

Ideias como renda básica universal ou mesmo reparações para descendentes de escravos parecem maluquices de esquerdistas/progressistas sem base na realidade, e eu sei por textos antigos sobre esses temas que temos vários aqui que vão reagir negativamente ao texto (mesmo que seja com o demoji de comunista).

Mas aí que eu te digo: os cães ladram, mas a caravana passa. Um combate à pobreza baseado na ideia que é direito inalienável do ser humano ter comida, casa, educação e saúde mesmo sem ter um trabalho tradicional vai começar a fazer mais e mais sentido com o passar dos anos. As pessoas que lutam por melhores condições para os pobres atualmente estão fazendo isso por ideal, mas me parece óbvio que as próximas décadas vão nos mostrar que essa é a alternativa para um futuro mais rico e desenvolvido.

A mecanização acelera numa velocidade impressionante, computadores ficam mais e mais inteligentes, vai começar a diminuir a necessidade de termos seres humanos produzindo coisas. Vai aumentar a necessidade de ter seres humanos consumindo coisas. Eu sei que muitos de vocês vão me dizer agora que o mundo não tem recursos para dar conta dos bilhões de pobres que vivem hoje com restos, mas lembra do que os donos de fazendas de escravos disseram? Eles tinham certeza que a produção ia desabar. A produção explodiu, a humanidade produz tanta comida que a população está engordando em todos os lugares.

Não é uma questão de empobrecer todo mundo por igual, é a ideia de que precisamos dar mais um salto de eficiência e produção para começar a subir o padrão de vida de todo mundo para uma base impensável para nossos antepassados. Um africano escravizado no Brasil em 1700 não pensava também que um dia as pessoas como ele poderiam nascer em berços privilegiados eventualmente. Parecia que o mundo acabava ali mesmo. Não acabou.

Para dar mais um salto de eficiência e produção, precisamos deixar o mercado consumidor muito maior. A economia mundial está estagnando porque a China parou de colocar milhões de novos consumidores no mercado todos os dias. Mas enquanto estava, a produção global aumentou sem parar. Ainda temos a Índia e a África para explorar nesse sentido, quando a demanda aumenta, o mercado corre atrás. Tem muita terra pra usar ainda nesse planeta, tem muitos recursos disponíveis de acordo com o quão lucrativos eles se tornem.

E pra deixar o mercado consumidor muito maior, por mais que isso deixe os nossos leitores libertários furiosos, o Estado precisa começar a pegar e distribuir muito mais dinheiro. Renda básica universal com impostos imensos é o tipo da coisa que parece que vai quebrar a economia, mas que na verdade só vai aumentar ela. Estamos dentro da era onde ainda não parece absurdo deixar que seres humanos vivam na pobreza, porque achamos que as coisas são assim.

Mas essa era acaba. A era da escravidão acabou. Assim como o fim da escravidão não significou justiça para todos, o fim da era da pobreza também não, ainda vai ter desigualdade e gente explorada, mas vai ser gente explorada que gasta muito mais na economia, e por tabela faz com que mais e mais gente produza riquezas para a sociedade.

A humanidade era maluca de achar que forçar uma pessoa a trabalhar era mais eficiente do que pagar para ela, a humanidade é maluca de achar que nossos problemas não derivam quase que exclusivamente da maioria das pessoas desse mundo serem pobres demais. Essa ficha vai cair, não por amor, mas por potencial de exploração financeira.

Eu apostaria que um Somir do século XXIII vai falar sobre pobreza da mesma forma que o Somir do século XXI fala sobre escravidão. Algo bizarro, inaceitável e acima de tudo, terrível para economia. Não estou dizendo pra começar hoje, estou dizendo que se você estiver prestando atenção, esse parece ser o caminho mais provável. Não se assuste quando começar a ver mais e mais gente discutindo esse tipo de proposta.

E quando começar a ver, saiba que acabaram de perceber que escravidão não dava dinheiro de verdade. Dá pra ser otimista por motivos cínicos, afinal, a humanidade ainda é a humanidade.

Para dizer que poderia começar agora para você se demitir, para dizer que carros nunca vão substituir os cavalos, ou mesmo para dizer que eu sou um esquerdista nojento: somir@desfavor.com


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