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Pós-eleições: EUA

Pós-eleições: EUA

| Sally | | 28 comentários em Pós-eleições: EUA

Como todos sabem, as eleições dos EUA estão longe de acabar. Apesar de, em tese, Joe Biden ter vencido a disputa, Trump, conforme previsto, não aceitou a derrota. O assunto vai ficar em pauta por várias semanas, então, novamente, fizemos um compilado mastigado do que você precisa saber para estar por dentro do assunto.

A recusa do Trump em aceitar a derrota se baseia no argumento de que teria havido fraude nessa eleição. Ele ainda não mostrou nenhuma prova disso, apenas jogou a alegação no ar, mas se a questão for judicializada, ele vai ter que provar as fraudes. Bem, ao menos ele é coerente, alega fraude em uma eleição a qual ele perdeu, tem gente que alega fraude em eleição que venceu.

Trump já tentou levar a questão ao Judiciário americano. Alguns pedidos ele perder (como por exemplo parar a contagem dos votos em alguns estados) mas outros provavelmente serão aceitos (como a recontagem de votos nos estados que definem a eleição, por terem maior número de delegados). Provavelmente serão recontados os votos da Pensilvânia, Georgia e Michigan.

Além disso, Trump vem fazendo alguns movimentos preocupantes. Disse que só sairia da Casa Branca arrastado, gritando e espernenando (mal podemos esperar), está impedindo que a equipe de transição tenha acesso a qualquer material e demitiu seu Secretário de Defesa (também conhecido como Chefe do Pentágono), Mark Esper, pois este se recusou a cumprir uma ordem que ele teria lhe dado, sobre utilizar o exército para reprimir protestos. Esper disse, ao sair “Quem vem depois de mim? Provavelmente alguém que só diga ‘sim’ para o Presidente. E aí, Deus nos ajude”.

O filho de Trump já foi a público incitar a violência para resolver a questão eleitoral. Membros do Qanon foram flagrados entrando com armas e uma sacola cheia de cédulas com votos para o Trump em uma zona eleitoral. Enfim, há uma tempestade se armando no horizonte. Ela pode virar um furacão ou pode se dissipar e nada acontecer. Não sabemos o desfecho, apenas sentimos a tensão no ar.

Enquanto isso, Trump continua preso na sua bolha. Poucos dias atrás foi a redes sociais dizer, em caixa alta “EU GANHEI ESSA ELEIÇÃO, POR MUITO!”. E, é claro, a célebre frase que acabou virando Meme: “STOP THE COUNT” (“parem a contagem”). Gritou muito, mas não levou, todas as suas tentativas judiciais de parar a contagem em diversos estados foram negadas. Mas ele vai continuar.

Sua base de argumentação é na suposta ilegalidade de alguns votos pelos correios e em supostas irregularidades que aconteceram durante a votação presencial. Vamos ver o que ele alega, nos estados mais importantes.

Na Pensilvânia, Trump alega que não foram observadas as regras para que os “observadores eleitorais” (algo similar aos mesários brasileiros) que acompanham a contagem dos votos pudessem impedir fraudes. É que, por questões sanitárias, por causa da pandemia, o número de observadores eleitorais foi mais restrito e algumas regras de distanciamento foram impostas.

Ele entendeu que essas restrições comprometeram a fiscalização dos votos. Trump também alega que os votos pelos correios só podem ser contados no dia das eleições, o que não foi contado no dia, não pode ser contado no dia seguinte, tem que ser desconsiderado. Até ontem, Biden ganhava de Trump na Pensilvânia por aproximadamente 50 mil votos.

No Michigan, ele também alegou que os observadores republicanos estavam sem condições de fiscalizar a apuração dos votos por causa das restrições sanitárias envolvendo número de observadores e distância que eles deveriam respeitar. Pediu que parem a contagem com base nesse argumento e um juiz rejeitou, entendendo que as restrições impostas eram necessárias para preservar a vida e a saúde das pessoas, mas a questão pode ser levada à Suprema Corte. Até ontem, Biden ganhava de Trump no Michigan por aproximadamente 150 mil votos.

Na Geórgia, ele alega “problemas com o processamento das cédulas”. Parece que observadores teriam visto cédulas que deveriam ser descartadas colocadas como votos válidos e outras pequenas trapaças desse tipo. A ação judicial para paralisar a apuração dos votos também foi negada, pois o juiz entendeu que não haviam sido apresentadas provas suficientes da veracidade das alegações e a questão pode ser levada à Suprema Corte. Até ontem, Biden ganhava de Trump por uma diferença de 10 mil votos na Georgia.

Outros estados também podem ter recontagem: Wisconsin (onde ele alega que ocorreram “anormalidades” durante as votações), Nevada (onde ele alega que pessoas que se mudaram do estado continuam votando ali) e Arizona (sob a acusação de descartar votos válidos).

Trump tem dois caminhos daqui pra frente, e um não é excludente do outro, portanto, ele pode adotar ambos: 1) judicializar a questão tentando provar à Suprema Corte que, por algum motivo, votos que deveriam ter sido contados não foram ou votos que não deveriam ter sido contados foram, ou 2) apelar para a ignorância e incitar seus eleitores a irem às ruas usando de violência para mantê-lo no poder (o sonho dourado que o Bolsonaro acha que vai conseguir realizar no Brasil, mas, spoiler, não vai, pois nem para isso brasileiro tem competência).

Os eleitores do Trump são fanáticos e estão armados, então, é bem possível que tentem alguma coisa. Mas, nada leva a crer que a Suprema Corte vá tomar uma decisão pressionada pelo medo de descontentes na rua, pois se decidir a favor de Trump, o número de descontentes nas ruas será ainda maior. Ou Trump tem um infarto fulminante e morre, ou este caminho, se adotado, vai causar muitos problemas.

O caminho judicial é certo que ela vai tomar, pois ele mesmo já anunciou isso de forma pública, então, vamos focar nele.

O direito americano é o que se chama “consuetudinário” ou “common law”. Isso significa que sua base principal não é a lei escrita, como acontece no Brasil. Ele se baseia na chamada “jurisprudência”, que seria um sinônimo de costumes: se, em outros casos similares, outros juízes decidiram de forma X, quando surge um novo caso similar, a decisão também deverá ser de forma X. É como se a decisão fosse tomada com base nas tradições, no que já foi decidido sobre isso anteriormente.

Então, diante desse sistema jurídico, nossa melhor chance de entender o que está por vir é olhar para o passado, pois é assim que os juízes terão que decidir: como foi decidido antes. E, em matéria de lambança eleitoral, o melhor exemplo que temos nos EUA são as eleições do ano 2000.

Em 2000 vimos um cenário parecido: uma votação apertada na qual uma das partes pediu uma recontagem difícil. A disputa era entre George W. Bush e Al Gore. Após apurar 49 estados, nenhum dos candidatos havia obtido o número necessário de delegados (270) para se eleger. O resultado ficou nas mãos da Flórida, que também estava muito dividida.

A apuração na Flórida deu uma vitória a Bush por apenas 2 mil votos de diferença. Quando o resultado é assim tão apertado, a própria lei da Flórida diz que os votos daquele estado devem ser recontados. O processo é feito com a ajuda de máquinas, por isso foi relativamente rápido. Mas, a recontagem só deixou as coisas mais confusas: agora a diferença que levava Bush à vitória era de apenas 327 votos.

Daí você pode estar se perguntando: fraude? Provavelmente não. Ao que tudo indica foi erro mesmo, de um sistema de apuração tão ruim quanto o sistema eleitoral. É o resultado da falta de uniformização: cada estado tem suas regras e cada condado de cada estado (algo similar aos municípios brasileiros) também tem suas regras. Isso gera inúmeras falhas.

Por exemplo, em alguns, o eleitor tinha que furar o papel no lugar indicado para selecionar seu candidato e uma máquina faria a leitura com base nos furos para a apuração. Porém se o furo não fosse completo, se o papel cortado (ou parte dele) ficasse preso no furo, a máquina não conseguiria ler o voto. Quem já usou furador de papel sabe que muitas vezes a porcaria do papelzinho cortado (ou parte dele) são sai do furo. Por isso, a essa altura, com uma diferença de votos tão pequena, cada voto era importante e as máquinas não eram mais confiáveis.

Al Gore entrou com um processo e pediu a recontagem manual dos votos. Pessoas teriam que olhar um a um cada voto, verificar cada cédula. Para complicar ainda mais, a lei exigia que a recontagem terminasse até o dia 14 de novembro, quatro dias após o pedido. Como a contagem manual demoraria muito mais do que isso, Al Gore recorreu à Suprema Corte do estado da Flórida, que estendeu esse prazo até o dia 26 de novembro.

Esse novo prazo foi concedido, pois perceberam que a questão era ainda mais complexa do que um papel que não caiu do furo. As cédulas foram mal feitas, a diagramação estava confusa. Como Bush era o primeiro candidato, ficava fácil votar nele, pois era o primeiro furinho da fila. Mas, daí para baixo, era um emaranhado de nomes e setas tão complexos que facilmente poderiam induzir o eleitor a erro sobre o local certo a furar. Era preciso analisar cada cédula e tentar entender a real intenção do eleitor.

Mas, esta prorrogação do prazo não foi suficiente. Dos quatro distritos onde Gore pediu a recontagem na Flórida, somente dois cumpriram o prazo da recontagem. Um deles entregou com atraso (portanto, foi desconsiderado) e o outro, Miami, desistiu no meio do caminho pois era humanamente impossível fazer essa recontagem de forma manual em tão pouco tempo. Diante disso, Al Gore pediu uma nova recontagem manual e a Suprema Corte da Flórida concordou.

Bush, por sua vez, recorreu à Suprema Corte dos Estados Unidos (a mais alta instância do judiciário americano) para parar essa nova recontagem e seu pedido foi aceito, em 9 de dezembro. Graças a essa decisão, o processo eleitoral foi encerrado como estava e Bush foi eleito presidente por uma diferença de apenas 0,009% dos votos.

Quem trabalhou na recontagem afirma que a vitória foi de Al Gore, graças à falha das máquinas ao computar muitos votos mal furados. Al Gore ganhou, mas não levou. E, francamente, Al Gore deve ter agradecido muito por essa decisão quando, meses depois, dois aviões arrebentaram as Torres Gêmeas. Ele se livrou de uma bela dor de cabeça.

O que podemos tirar dessa decisão? Bom, ao que tudo indica, a Suprema Corte preza pela estabilidade do país: se não for um erro muito crasso que não possa ser provado de forma rápida, clara e inconteste, não vão ficar prolongando uma situação de dúvida. Não basta ter razão, e preciso ter muitas provas boas de que tem razão.

Então, seguindo pela linha de raciocínio do direito americano, ao que tudo indica, ou Trump mostra provas muito boas e definitivas de que houve fraude, ou Biden leva.

A linha de desdobramento normal desta eleição é: até o dia 14 de novembro os estados devem finalizar a apuração dos votos, até 8 de dezembro os estados devem nomear os delegados do colégio eleitoral e até 14 de dezembro os delegados do colégio eleitoral de todo o país devem oficializar seus votos para presidente. No dia 6 de janeiro, o Congresso faz a apuração desses votos e declara oficialmente o resultado das eleições. Em 20 de janeiro o novo Presidente toma posse.

Então, por qual motivo já estão dando como certa a vitória de Biden? Por já saber como cada delegado do colégio eleitoral vota. Seria um absurdo que a pessoa eleja um representante para votar no Biden e, quando chegasse a hora, seu representante votasse no Trump. Pode acontecer? Bem, tudo pode acontecer, mas seria algo que geraria um problema de enormes proporções, talvez até uma guerra civil nos EUA.

O próximo passo é acompanhar os desdobramentos dos pedidos de Trump ao judiciário e se eles serão ou não aceitos. Se ele conseguir tumultuar a coisa, é possível que os prazos que eu citei da linha de desdobramento normal das eleições sejam modificados e a coisa demore ainda mais.

Enquanto isso, a gente continua por aqui, te atualizando a cada novidade.

Para dizer que é complicado demais para merecer sua atenção, para dizer que está torcendo para um delegado virar a casaca em nome da treta ou ainda para dizer que teria sido melhor um Ei Você com a opinião do brasileiro médio sobre este fascinante imbróglio eleitoral: sally@desfavor.com


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