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Estupro culposo?

Estupro culposo?

| Sally | | 50 comentários em Estupro culposo?

Sim, eu sei, você queria um texto sobre a eleição nos EUA. Mas infelizmente o assunto ainda não está maduro. Calma, em breve vamos falar sobre o esmerdeio que o Trump diz que vai armar.

Hoje vamos falar da decisão judicial que repercutiu esta semana, envolvendo a acusação de estupro por parte da influenciadora Mariana Ferrer contra o empresário André de Camargo. Você deve ter escutado umas opiniões muito nervosas em redes sociais. Vamos tentar falar do assunto sem dedo no cu e gritaria.

A mídia publicou que o empresário André Camargo foi absolvido após o juiz (alguns falaram que foi o promotor) considerar o evento como um “estupro culposo”. Isso não é verdade, isso nem sequer existe. O empresário foi absolvido com o argumento de falta de provas. No direito penal, a menos que haja certeza absoluta, a lei manda que se inocente o réu e esse foi o argumento do juiz em sua sentença de 51 páginas.

Segundo a lei brasileira, quando uma pessoa faz sexo com a outra sem que esta tenha a capacidade de dar o seu consentimento, é estupro (papo técnico: estupro de vulnerável”). Esta falta de capacidade de consentir pode vir de vários fatores: problemas mentais, a pessoa estar desacordada, dormindo e muitos outros. Ao contrário do que andaram dizendo em redes sociais, não se trata de uma menina que bebeu demais e fez sexo, ela alega ter sido deliberadamente dopada em seu local de trabalho.

Mariana trabalhava em um evento, realizado em uma boate, em 2018, quando o suposto estupro teria acontecido. Ela alega que estava sob efeito de substância entorpecente que a teria afetado de tal forma que impediu que ela tivesse clareza mental para consentir. Mais: ela diz ter sido dopada pelo empresário, de forma propositada e premeditada. Diz que mal conseguia andar sozinha, que se lembra apenas de flashes e que tudo aconteceu depois que ele se aproximou dela e supostamente colocou alguma coisa na sua bebida.

Antes de mais nada, vamos entender essa cortina de fumaça que criaram com “estupro culposo”, uma imbecilidade que não deveria ter sido levantada, pois, além de incorreta, tira o foco do que é importante no caso.

Um crime doloso é um crime onde a pessoa tinha a intenção de cometê-lo. Por exemplo, se você quer agredir alguém, pega uma faca e esfaqueia a pessoa, é um crime doloso. Você queria fazer aquilo, você queria machucar a pessoa.

No crime culposo a pessoa não tinha a intenção daquele resultado. Por exemplo, você está andando com o seu carro na rua, e, do nada, um ciclista cai da bicicleta na frente do seu carro e você o atropela. Não havia intenção de atropelar ninguém.

Faço essa distinção pois vi muita gente militando errado em redes sociais, dizendo que o crime culposo ocorre quando a vítima é a culpada pelas consequências. Não. O crime culposo ocorre quando a pessoa age sem desejar aquele resultado e sem antever que ele iria acontecer.

Nem todos os crimes têm a modalidade culposa. Em alguns, basta que a conduta tenha sido praticada para que a pessoa seja condenada, independente de dolo (intenção). São coisas que o legislador entendeu que não podem ser feitas “sem querer”. Concorde você ou não, vale o que está na lei, e a lei define quais crimes admitem modalidade culposa.

Estupro não admite a modalidade culposa: se fez sexo com alguém incapacitado de consentir, é estupro e ponto final. Não existe estupro sem querer, a menos que o cara tropece e caia com o pênis dentro de outra mulher. É simples assim: se não está na lei, não existe. E, acreditem, o juiz do caso sabe muito bem disso e não seria debilóide de fundamentar sua decisão com uma aberração jurídica dessas e se expor desta forma.

O que foi citado no processo, que pode dar margem para essa interpretação errada da mídia, é algo chamado “erro de tipo”, que está no artigo 20 do Código Penal. Não vou aborrecê-los com juridiquês e termos legais, vamos simplificar: o erro de tipo é basicamente quando você tem todos os motivos do mundo para acreditar que está fazendo uma coisa, mas, enganado por algo que não poderia ser percebido por uma pessoa comum, acaba fazendo outra.

Vou contar um caso curioso para ilustrar, que se usa muito nas aulas de direito: um sujeito vai caçar um bosque, quando vê um vulto vindo na sua direção. O vulto se aproxima rápido, é marrom e peludo. Achando que é um urso, o caçador atira para se defender. Depois de abater o animal, o caçador descobre que era um homem fantasiado de urso, que estava promovendo um evento infantil nas redondezas e havia se afastado para fazer um xixi no mato.

Quando acontece isso, quando fica comprovado no processo que a pessoa foi levada a cometer o ato por um erro justificável no qual qualquer um poderia incorrer, a lei diz que a pessoa não responde pelo crime doloso. No caso do caçador, não seria justo dar a ele a mesma punição que se dá a uma pessoa que, deliberadamente, pega uma arma e mata o vizinho com total intenção de fazê-lo.

Porém, quem incorre nesse erro de tipo pode sim ser punido pela modalidade culposa do crime que cometeu, ou seja, o caçador poderia ser processado por homicídio culposo (sem a intenção de matar), o mesmo que aconteceria no caso da pessoa que atropelou o ciclista.

Então, segundo a lei, quando ocorre um erro justificável que leva a pessoa a cometer um crime sem que ela perceba que está cometendo um crime, a pessoa pode ser punida pela modalidade culposa desse crime. O problema é: estupro não tem modalidade culposa.

Disso, se depreendeu que: mesmo que fosse culposo, a modalidade culposa não existe, então o que aconteceu não existe no mundo jurídico, portanto, não caberia condenação. Porém, foi uma argumentação, não o argumento para absolver o empresário. O argumento dado pelo juiz na sentença foi bem claro: falta de provas, in dubio pro reo, ou seja, na dúvida, se decide pela inocência do réu, algo que está totalmente dentro das leis brasileiras. No direito penal, só se condena quando há absoluta certeza.

E é preciso muito cuidado aqui, pois esta é uma porta que não deveria ser aberta, mas foi: fazer um tremendo alarde citando “estupro culposo”. Não. Ninguém citou isso no processo. Não há uma única menção a isso. A palavra “estupro culposo” nasceu da mídia, ela não foi escrita em momento algum no processo. Só foi dito que o caso poderia ser equiparado a erro de tipo SE estupro se enquadrasse na previsão legal, mas constatando que não se enquadra.

Repito: estupro culposo não foi dito. Isso não existe. A mídia de quinta categoria que espalhou isso fez um tremendo desfavor. Se é para criticar, vamos criticar pelos motivos certos. Quando se critica a coisa errada, sobretudo quando ela é inexistente, se tira o foco do que realmente importa a troco de nada. E este caso foi muito grave. Por isso escolhemos vir aqui hoje jogar luz no que realmente importa.

Então, todos cientes de que o empresário foi absolvido por falta de provas, seguem os argumentos dados pelo juiz na sentença para concluir que não haveria provas suficientes para condenar o réu.

Os exames de alcoolemia e toxicológicos de Mariana tiveram resultado negativo. Então, o argumento final do juiz não foi o de que “ele não sabia que ela estava dopada, então não cometeu crime”. O argumento foi: “não há nenhuma prova que ela tenha sido dopada ou tivesse seu discernimento reduzido por qualquer motivo”. Isso inclusive é dito diversas vezes na sentença.

Além disso, todas as testemunhas que estiveram em contato com ela na boate disseram que ela não estava alterada e não demonstrava nenhuma incapacidade de compreender ou consentir, que andava com normalidade, falava com normalidade e que não notaram nenhum comportamento estranho. A única testemunha que falou em favor de Mariana na ação judicial foi sua mãe. Olhando assim, parece uma decisão bastante razoável. Não parece haver certeza de que ocorreu um estupro. Mas quando se olha a história toda…

Então, qual é grande problema desse processo? Tudo que veio antes dessa sentença. Aconteceram muitas coisas graves: troca repentina do delegado que investigava o caso, troca de promotor, sumiço de imagens das câmeras de segurança que filmavam o local (que, por um acaso, pertencia a um amigo do réu), mudança da versão da história pelo acusado e pelas testemunhas e muitas outras coisas que estão aí, na mídia, disponíveis para quem quiser consultar. Em resumo, o que levou a que esse juiz afirme que não há provas suficientes para condenar o réu é o grande problema, e é nisso que vamos jogar luz.

Na época do ocorrido (dezembro de 2018), um vídeo de Mariana visivelmente dopada, subindo a escada em direção a um camarim com André escorando-a foi vazado na internet. Eles entram juntos e, um tempo depois, André sai sozinho. Esse vídeo só foi solicitado à boate meses depois do começo das investigações. A boate, que tinha 37 câmeras, alegou que os vídeos eram excluídos a cada quatro dias e que não tinha mais registro de nada.

Você pode se perguntar por qual motivo não saiu nada no exame toxicológico da moça. Bem, existe uma grande variedade de drogas que podem dopar uma pessoa e que saem do seu organismo rapidamente sem deixar vestígios. E pessoas filhas da puta que se prestam a fazer uma coisa dessas sabem muito bem quais são. Além disso, a coisa mais fácil do mundo é comprar um perito no Brasil, nem sequer custa caro. O exame deu o que o empresário queria que desse, assim como toda a condução das investigações e do processo.

Mariana relata que teve a clara sensação de ter sido dopada e que teve lapsos de memória durante a noite. Alegou ainda que só estava no local por estar trabalhando no evento, não a lazer, e que era virgem e que jamais escolheria essa situação (uma rapidinha em um camarim de um evento no qual ela trabalhava, com um desconhecido) para ser a sua primeira vez. Fizeram piada com ela, sacanearam, a chamaram de rodada para baixo. Mas o exame pericial constatou que sim, de fato, a menina, até aquela noite, era virgem.

O primeiro promotor que cuidou do caso, lá no começo, entendeu que havia provas suficientes do estupro: mensagens desconexas que Mariana teria enviado a seus amigos, depoimento do Uber que a levou para casa dizendo que ela estava visivelmente dopada e não conseguia nem andar sozinha (e que, curiosamente, desapareceu durante o processo), depoimento da mãe, que narrou o estado no qual ela chegou em casa.

Vale lembrar que ela não estava bêbada, o exame pericial constatou isso. Tendo em vista que uma pessoa não bêbada estava mandando mensagens desconexas e foi vista sem conseguir andar, o promotor entendeu que havia uma chance de terem colocado alguma coisa no seu copo e chegou a fazer a solicitação das imagens das câmeras de segurança à boate, mas foi imediatamente substituído por outro promotor e o pedido só foi enviado meses (não dias, meses) depois quando as imagens já haviam sido apagadas.

Também vale lembrar que Mariana estava no local a trabalho, e o empresário estava com os amigos se divertindo. Óbvio que as testemunhas eram amigos dele e óbvio que vão dizer que ela estava ótima, mesmo que estivesse de quatro lambendo o chão ou desmaiada. Além disso, testemunha também se compra no Brasil, por sinal, muito barato o preço.

No primeiro depoimento do réu na delegacia, ele fez o louco e disse que nunca teve contato com Mariana, que nem conhecia. Só que o delegado do caso foi esperto: colheu material genético no exame de corpo de delito de Mariana e comparou com a saliva que André deixou em um copo de água no qual tinha bebido durante o depoimento. O sêmen encontrado no corpo de Mariana era de André, que até então dizia que nem a conhecia. Obviamente, este delegado também foi rapidamente afastado do caso.

Diante dessas provas, André e as testemunhas que falavam em seu favor mudaram a sua versão. Ele disse que ok, tá bom, conhecia ela, mas que só tinha feito sexo oral na moça. Lembrando sempre que o exame de corpo de delito entrou esperma dento dela. Testemunhas também mudaram sua versão outras vezes, à medida que vazavam etapas da investigação. Vale lembrar que André é rico e influente e o crime teria ocorrido na boate de um amigo dele.

Os argumentos da defesa do réu talvez tenham sido o mais grave e sintomático que merece atenção, por ser a prova mais descarada de como se pisoteia em vítimas no Brasil. Silêncio: o jovem está prestes a descobrir que não vale a pena denunciar, pois, além de não punir o culpado, a pessoa sai massacrada.

Entre uma infinidade de atos escrotos, o advogado do réu mostrou fotos sensuais de Mariana, dos tempos em que ela era modelo, para “provar” que a moça faria sim sexo casual com qualquer um por aí. O que isso tem a ver? Uma mulher que posa para uma foto sensual é sinônimo de consentir sexo a qualquer um? No tribunal, enquanto a menina chorava, o advogado chamou as fotos de “ginecológicas”, ofendeu a menina de várias formas e afirmou que ele jamais teria uma filha do nível de Mariana.

Enquanto Mariana chorava, o advogado continuava esculhambando, chamando seu choro de dissimulado e falso. Acuada após uma infinidade de ofensas e desrespeitos, Mariana apelou para o juiz: “Excelentíssimo, eu tô implorando por respeito, nem os acusados são tratados do jeito que estou sendo tratada, pelo amor de Deus, gente. O que é isso?”. Mas o máximo que o juiz fez foi dar um intervalo para ela tomar uma água e parar de chorar.

O Ministério Público alega que as imagens da audiência que vazaram foram editadas para fazer Mariana parecer uma vítima. Dizem que todas as vezes em que ela foi atacada o Promotor interveio para assegurar que ela tivesse um tratamento digno, mas isso foi cortado, foi editado deliberadamente para fazer com que ela pareça uma vítima indefesa. Não dá para saber (por enquanto) até que ponto essa moça foi amparada, mas, mesmo com o Ministério Público intervindo, o que ela teve que escutar foi muito forte.

E se vocês acham que isso é exceção praticada por maus profissionais e que tem maus profissionais em todas as áreas, saibam que não é exceção. Isso é regra. Isso é regra, sobretudo nos casos de estupro. Tá chovendo reportagem com advogados dizendo que a coisa mais comum que tem é jogarem a reputação da mulher no lixo para salvar playboy desse tipo de acusação. É regra. Acontece todos os dias.

Quando eu venho aqui dizer no Ele Disse, Ela Disse que não vale a pena denunciar nem sequer stalker, é a isso que me refiro: a pessoa não é punida e a vítima acaba trucidada. A menos que a pessoa tenha muita sorte de encontrar policiais, delegado e juiz decentes (e olha, para isso acontecer simultaneamente, precisa de muita sorte mesmo), é isso o que acontece.

Mariana foi trucidada durante um julgamento onde se dizia vítima. Isso está transcrito e imortalizado para sempre nos autos de um processo e também nas redes sociais. Mariana foi chamada de vadia, vagabunda e a opinião pública se apropriou destas ofensas para atacá-la também. O saldo final dessa história é: o réu saiu declarado inocente e Mariana saiu com sua reputação destruída. É para isso que temos que olhar.

Focar a artilharia no “estupro culposo” é bait. Em momento nenhum a absolvição do réu se fundamentou nisso, ela se fundamentou em falta de provas, e não faltavam provas nesse processo. Focar no “estupro culposo” é cortina de fumaça.

Aconteceu coisa muito mais grave nesse processo, que está sendo ofuscada pelo “estupro culposo”, talvez criado justamente para isso: para levar o foco do público a outro lugar. Parem de repetir que o juiz entendeu que foi estupro culposo, pois isso não é verdade e pode ser facilmente provado, colocando um pá de cal no caso. Não queremos uma pá de cal no caso.

Tinha uma infinidade de provas contra o réu e ele saiu inocente e a moça, massacrada. Tem vídeo da moça visivelmente dopada que circulou nas redes sociais na época, tem exame de material genético dizendo que eles fizeram sexo (algo que ele negou), tem mensagens desconexas dela mostrando que ela não estava totalmente consciente, tem contradição do réu e de testemunhas, tem tudo que um processo precisa para uma condenação, e, ainda assim, ele foi absolvido e saiu inocente. Daí eu te pergunto: tem como exigir quem uma mulher reporte um estupro?

Vale a pena reportar um estupro e, além de dar um ticket de inocência para o estuprador se vangloriar em público de que ele não fez nada e a mulher é uma mentirosa, ainda ser chamada de vagabunda, vadia e ter um carimbo de mentirosa estampado na testa para o país todo ver? Entendo que a “coisa certa” a fazer seja denunciar, mas será que uma mulher estuprada consegue arcar com o custo emocional da batalha suja que é um processo como esse? Acho muito compreensível que não consiga.

É por isso que no Brasil os processos que costumam ir adiante são os das mulheres que não foram estupradas, mas alegam que foram em troca de benefícios pessoais (dinheiro, vingança, fama, etc). Uma mulher que não foi estuprada está mais inteira e pode comprar essa longa batalha. Uma mulher que é uma mentirosa não se importa de ser chamada de mentirosa. É muito triste o que vou dizer, mas geralmente quem sofreu um grande trauma não tem condições de travar essa batalha imunda.

E acho escroto discursinho que impõe culpa à mulher que não tem condições de passar por esse show de horrores. Em um país normal, sim, é dever reportar, para impedir que outras sejam estupradas. No Brasil? Sinto muito, mas não. Entendo quem não denuncia, pois não há qualquer garantia de que ela vai resguardar outras mulheres e não seria justo que o faça às custas da sua reputação, bem-estar e sanidade mental.

Talvez, pela repercussão dos famosos, esse caso seja revisto e André seja condenado. Talvez não, talvez ele seja esquecido e a mais nova causa da vez atraia a atenção das celebridades. Independentemente do que aconteça, não foquem no “estupro culposo”, é atirar na água. Isso não está no processo, essa não foi a fundamentação para absolver o réu. Foquem em tudo que aconteceu antes: o que aconteceu com todas as provas e contradições? É isso o que precisa ser falado.

Para dizer que só quem não estuprou é condenado por estupro no Brasil, para dizer que ser rico é ser impune ou ainda para dizer que a melhor forma de se resguardar é não frequentar esse tipo de lugar: sally@desfavor.com


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