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Censored.

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| Somir | | 22 comentários em Censored.

Hoje é dia 21 de outubro de 2020. Se hoje você visitar conta do Twitter do New York Post, um dos mais antigos e populares jornais americanos, vai perceber que a última postagem é do dia 14. Inimaginável um jornal ficar tanto tempo sem atualizar seu Twitter, não? Pois é. Ainda mais considerando que a conta deles foi bloqueada logo após postarem um matéria incriminadora sobre Hunter Biden, filho do candidato democrata à presidência dos EUA, Joe Biden.

Eu não vou me aprofundar sobre o teor da matéria ou as acusações feitas contra Hunter Biden, mas precisamos de uma base sobre esse conteúdo: tem todo um componente de imprensa baixaria revelando detalhes pessoais sobre a vida de um viciado em drogas, mas o que realmente faz diferença (ou pelo menos deveria fazer) na situação política do país são as implicações de tráfico de influência e enriquecimento ilícito de Hunter com no mínimo anuência do pai, que na época era vice-presidente de Obama.

Além disso, é bom a gente entender também o que é o New York Post: um tabloide que vira e mexe tem daquelas capas apelativas e debochadas de tabloides, e que tem um foco mais popularesco que o concorrente mais “sério” da cidade, o New York Times. Só que não exagere nessa imagem mental de imprensa marrom: tem umas baixarias aqui e acolá, mas o jornal existe desde 1801.

Mais uma coisa, provavelmente bem importante: o jornal é do mesmo dono da Fox News (o canal de notícias dos conservadores), Rupert Murdoch, embora não estejam na mesma empresa tecnicamente dita. O Post é acusado há algumas décadas de ser muito conservador e seguir os interesses de seu dono. Não é um conservadorismo do nível da Fox News, mas mesmo assim um contraponto ao Times, bem mais liberal.

Estamos na mesma página? Excelente. Pouco tempo depois da matéria de capa do jornal estampar Biden e o filho com a manchete de “E-mails secretos do Biden”, o Twitter bloqueou a conta do Post e proibiu o compartilhamento do link sobre a matéria. O Facebook logo fez o mesmo. A argumentação das redes sociais se baseou na ideia de que eram informações oriundas de acesso ilegal ao computador de Hunter Biden. O conteúdo ficou marcado como “informação hackeada” e não pode mais ser compartilhado. Uma semana depois, o perfil do Post continua bloqueado.

É verdade a denúncia do Post? Não sei. Parece muito elaborado para ser Fake News, e até agora Biden pai e Biden filho estão quietinhos até demais sobre o tema. Denúncias sobre relações suspeitas da família com autoridades ucranianas não começaram agora, tem coisa muito mal contada nessa história. Tem motivação política publicar isso agora? Claro. É um jornal conservador que está batendo no Biden a campanha toda. Mas, para ser justo, o resto da imprensa liberal (a grande maioria) está claramente abafando essa história da Ucrânia há meses e meses para proteger seu candidato.

Mas… e agora o verdadeiro ponto do texto: por mais que tudo ao redor dessa história cheire mal e não tenhamos muita simpatia por nenhuma das partes, Twitter e Facebook cruzaram uma linha perigosa. Talvez a mais perigosa de todas desde o começo da internet: empresas de tecnologia decidiram o que configura jornalismo. A matéria do Post pode estar toda errada, o jornal pode ter que pagar milhões em indenizações no futuro, mas não era o lugar nem de Twitter nem de Facebook censurar o conteúdo de um jornal que segue todas as regras básicas da imprensa de um país com liberdade de expressão.

E pior, tecnicamente, o país com a liberdade de expressão mais abrangente do mundo. Eu poderia esperar disso de uma república das bananas como o Brasil ou um Estado assumidamente autoritário como a China, mas acontecer nos EUA é sinal de que há algo de fundamentalmente podre com a nossa relação com a tecnologia da comunicação e as empresas gigantescas que a controlam.

Explico: em tese, o Twitter e o Facebook têm suas razões para exercer o poder de donos das plataformas para coibir notícias falsas. O termo moderno é Fake News, mas não deixa de ser o antiquíssimo boato. Notícias e alegações sem fundamentação, criadas e disseminadas por pessoas que não assumem responsabilidade sobre o que fazem. As Fake News não costumam ter endereço e documento de identificação: são dejetos circulando pelo encanamento da internet, que se não forem limpos de tempos em tempos, acabam entupindo tudo.

A lógica por trás de colocar avisos em postagens e banir quem abusa das plataformas para desinformar é que não existe alternativa prática no sistema legal. Vários países começam a se mexer para oferecer “centrais de tratamento de esgoto virtual”, o Brasil incluído, mas não é como se soubéssemos muito bem o que fazer ainda. Juiz brasileiro fica derrubando o WhatsApp por liminar a cada vez que fica confuso com os termos em inglês… na prática, a forma mais eficiente de lidar com isso é pressionar redes sociais a fazer essa limpeza prévia com as ferramentas que tem ao seu dispor.

Essa era a linha. Essa “orfandade” das Fakes News fazia com que fosse aceitável para Facebook, Twitter e Google tomarem medidas próprias para limitar sua reprodução. Do outro lado da linha, um sistema testado e aprovado por séculos de experiência: a imprensa. Não estou dizendo que a imprensa sempre diz a verdade, longe disso, mas… imprensa tem endereço e documento de identificação.

A imprensa tem jornalistas e editores que decidem o que pode ou não pode ser publicado. A imprensa goza de várias liberdades num país democrático e livre, mas também tem responsabilidades. A Justiça sabe o que fazer quando lida com um processo contra um jornal ou empresa de mídia. Infelizmente acontecem bizarrices como humorista pagando indenização por piada, mas que o sistema está lá, está.

Ninguém precisa do Twitter ou do Facebook para lidar com uma matéria do New York Post, um dos maiores jornais do país mais rico do mundo. Não é um perdido escrevendo bobagem no WhatsApp que depois de cem compartilhamentos se torna impossível de achar, é um jornal profissional! O conteúdo está impresso nas bancas e publicado no seu site, milhões de pessoas como testemunhas. Eles têm a credibilidade a perder e um endereço fácil de achar na hora de mandar a intimação. Toda a mecânica já existe.

Então, como explicar a decisão de funcionários de uma empresa de tecnologia que desenvolve um plataforma para pessoas postarem sua bunda ou opinião sobe reality show (não necessariamente nessa ordem) de olhar para um fuckin’ jornal com mais de 200 anos de existência e dizer que eles não podem mais se comunicar por lá porque não fazem jornalismo do jeito certo? E piora: o CEO do Twitter foi defender sua equipe e bancou a censura. Se demitissem todo mundo que fez essa palhaçada poderíamos achar que foi um ataque de estrelismo pontual, mas não… o New York Post continua bloqueado uma semana depois. Para vocês verem o nível da coisa, até o Glenn Greenwald está puto da vida com as redes sociais depois dessa.

É isso que eu digo quando falo de linha cruzada. A equipe que comanda as redes sociais olhou para a imprensa e todos os mecanismos já existentes para regulá-la e decidiu que eles sabiam mais. Piora de novo: se você for ver os comentários das últimas postagens do NYP no Twitter, vai ver muita gente batendo palma dizendo que fizeram bem em censurar, porque a narrativa da campanha democrata é acusar uma nova conspiração com a Rússia por trás da matéria. Esse clima político doentio de radicalização entrou na frente da discussão real. A rede social acaba de pisar na cabeça da imprensa como um todo e a discussão não consegue avançar porque a maioria das pessoas acha que é sobre ser pró ou contra o Trump.

O jornalista pode fazer muita besteira, pode falar muita coisa errada, mas ele é cobrado pela veracidade do que publica e julgado pelo seu posicionamento político. O sistema de controle da imprensa não é perfeito, mas existe. Agora… quem controla as redes sociais? Porque quando elas assumem essa postura de editoras de conteúdo, decidindo até mesmo o que um jornal estabelecido pode ou não publicar, não sabemos quem está tocando essa narrativa. São fantasmas na máquina que podem ser demitidos e contratados em questão de horas, escorados em algoritmos e programas que propagam suas decisões em escalas nunca antes vistas, e em questão de segundos.

E não é nem o ângulo da conspiração de um grupo para tomar o poder: se você entende a forma como essas empresas funcionam, sabe que há pouco controle real dentro delas. São empresas de capital aberto que já enriqueceram as pessoas que investiram nelas; e se falirem, só tiram dinheiro de quem achou “moderno” comprar ação do Twitter no aplicativo de investimento que baixou de graça depois de ver a propaganda.

E ainda por cima são parte integrante da vida do ser humano do século XXI. A rede social não é a plataforma de poder de um grupo específico ou outro, é a plataforma para quem estiver lá a cada momento, para empurrar o seu projeto atual. Esse tipo de empresa não pode ter esse tipo de poder, porque não funciona do mesmo jeito que a gente se acostumou a entender grandes empresas. Não adianta achar que vai dar poder para pessoas boas (ou que pelo menos concordam com você), porque nada garante que essas pessoas não vão embora poucos meses depois. Uma hora ou outra, entra alguém que pensa algo terrivelmente diferente do que você nessa plataforma com poder de definir o que é jornalismo ou não.

Eu queria que a reclamação desse texto fosse só que se fosse uma matéria contra o Trump no mesmo contexto jamais seria censurada. Queria mesmo. Mas isso já ficou pequeno perto do precedente tenebroso da censura ao New York Post. É questão de princípio mesmo: a imprensa estava mal das pernas há alguns anos, esse pode ter sido o golpe de misericórdia. Se não houve uma consequência dolorosa (ou seja, financeira) para Twitter e Facebook por essa bizarrice, a tendência é que continuem redefinindo pelos próprios termos o que é verdade, notícia ou mesmo imprensa em geral.

Mas… é mais fácil me chamar de isentão e continuar reclamando de homem laranja mau ou velho gagá lacrador enquanto um dos maiores ataques à liberdade de expressão na história recente acaba de acontecer. Cada dia que passa eu fico mais feliz com a nossa decisão de ficar longe das redes sociais. É lá que a verdade vai para morrer…

Para me chamar de alarmista, para dizer que quer que a imprensa desapareça mesmo, ou mesmo para dizer que ainda é melhor que morar no Brasil: somir@desfavor.com


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