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Pecado Original.

Pecado Original.

| Somir | | 44 comentários em Pecado Original.

Um comentário do Charles D.G. lançou uma boa discussão no texto de segunda. Ele se perguntava sobre o incrível fenômeno do pobre de direita. Tivemos algumas respostas interessantes, mas mesmo tendo sido mencionado diretamente, resolvi guardar minha teoria para este texto. E como megalomania é especialidade da casa, não é só uma teoria sobre esse curioso viés conservador de quem não tem nada para conservar, mas… sobre toda a relação da humanidade com política. E qual seria essa teoria? O ser humano só se importa com sexo. O resto é consequência.

Não, eu não acabei de ler Freud for Dummies (nem vou pesquisar por medo de existir) e fiquei empolgado, na verdade nem quero me aprofundar tanto assim na psique do indivíduo. É mais sobre uma dinâmica de grupos humanos sobre a sexualidade. Quanto mais eu presto atenção no cenário político e cultural de sociedades atuais e passadas, mais difícil fica ignorar como a visão do ser humano médio sobre sexo parece estar na base de tudo. Tomara que eu não te convença com este texto, porque se você começar a enxergar também, não tem mais volta.

O instinto de reprodução é poderoso. Talvez tão poderoso quanto o de sobrevivência. De um ponto de vista puramente mecânico, o sentido da vida humana é atingir a maturidade sexual e botar mais seres parecidos com você no mundo. Consuma calorias, evite predadores, reproduza o máximo de vezes que conseguir antes de morrer… e pronto. Missão cumprida! Evidente que a humanidade só chegou onde chegou por se esforçar a fazer um pouquinho a mais que o básico a cada geração, mas nunca foi uma obrigação genética.

Os primeiros seres humanos nem tinham capacidade de ir muito além disso. Fomos selecionados para viver em grupos, afinal, era mais eficiente para o propósito básico com os corpos que ainda temos. Naquele tempo, antes de qualquer sinal de civilização, sexo era uma missão a se cumprir. E francamente, duvido que tivesse algo sequer parecido com ciúmes: desde que as crianças continuassem aparecendo com regularidade, não importava quem era filho de quem. A sociedade vivia ao redor do sexo, como continuou desde então, mas era questão de sobrevivência pura.

Mas com o passar das gerações, e estamos falando de dezenas de milhares de anos, pequenas evoluções na organização dos grupos humanos começaram a acumular. Protótipos de civilização começavam a surgir com a descoberta da agricultura, sociedades minúsculas que ainda conviviam com coletores e caçadores nômades, mas que introduziam o conceito de propriedade e status dentro de uma comunidade. É aí que começa a fazer diferença saber quem é seu filho e quem não é, porque filhos começam a se tornar propriedade de uma família, e não mais do grupo em geral.

E eu concordo com muitas teorias feministas que dizem que esse é o ponto onde as mulheres tiraram o palitinho menor: o sistema dependia de repressão à sexualidade feminina para funcionar. Nada mais de procurar o homem mais forte ou com mais status, a mulher era propriedade da propriedade. Ficou confuso? Eu não estou dizendo que a mulher pertencia necessariamente ao homem, mas que era a base da manutenção de uma casa ou fazenda. Homem morre aos borbotões, mas homem só precisa de 5 minutos para cumprir sua missão biológica. Mulheres só entregam esse tipo de valor depois de alguns anos, incluindo gravidez e primeira infância da criança. Mulher solta não mantinha o sistema funcionando. Tanto que historicamente homens são descartáveis e mulheres são salvas primeiro.

O sistema continua evoluindo: as civilizações aumentam, e a pressão reduz um pouco sobre a mulher. Quanto mais gente nesse mundo, menor a necessidade de manter controle estrito sobre uma específica. Vamos ficando bons nisso de manter pessoas vivas. E isso permite que a sexualidade humana fique um pouco menos… utilitarista. Civilizações como a grega, por exemplo, aceitam com relativa tranquilidade homossexualidade, os romanos eram bem mais tranquilos com sexo casual… desde que os filhos continuem aparecendo e exista alguma ordem na questão de heranças, podemos relaxar um pouco.

Mas é claro que esse não é um processo simples: várias civilizações nasceram e morreram nesse meio tempo, a coisa vai acontecendo de forma diferente em várias partes do mundo, alguns começam antes, outros bem depois. Parece contínuo se você olhar de 2020, mas não se esqueçam que estamos falando de períodos de tempo na base dos muitos séculos ou mesmo milênios. Alguém na Europa podia estar vivendo na fase do começo da agricultura ao mesmo tempo que alguém na Ásia estava vivendo uma era de grandes civilizações. E menos de um século depois, tudo estar ao contrário nas mesmas regiões. Ainda era uma humanidade na sua fase experimental, tentando várias coisas e agindo em relação ao seu instinto reprodutivo de acordo com as liberdades de cada momento.

Mesmo que me acusem de eurocentrismo, preciso fazer essa definição: o mundo como conhecemos começa na Idade Média. Gostando ou não, foi a visão europeia de como civilizações devem ser que “ganhou a guerra cultural” e virou a norma do mundo moderno. E ela se estabelece com força mais ou menos nessa era da nossa história. Claro, o resto do mundo ainda não sabia, mas essa é a vantagem de falar depois do fato consumado. E a Idade Média é importante porque nela começamos a estabelecer uma relação muito mais complicada com o sexo. As grandes religiões monoteístas do Oriente Médio alcançam imenso poder, e elas são baseadas em uma série de regras sobre o que é permitido ou proibido no sexo. Judaísmo, Cristianismo e Islamismo são de uma obsessão doentia com o que fazer com os desejos sexuais humanos. E isso não é à toa: foi assim que derrubaram a concorrência.

A visão mais relaxada das religiões politeístas antigas sobre sexo não conversava com o instinto reprodutivo humano e todo o processo que tínhamos passado de pura necessidade de sobrevivência para ritual social que o sexo tinha passado das primeiras civilizações até os grandes impérios da era clássica. Não foram as religiões que nos fizeram pensar tanto em sexo de forma abstrata, fomos nós que dissemos para elas orbitarem ao redor desse tema. Você só vai ter seus fiéis se ficar falando disso sem parar. Tanto que deuses e deusas da fertilidade sempre foram dos mais populares antes da tara prevalente ser a da proibição. Espera aí… tara?

Historiadores e religiosos vão querer me matar, mas Idade Média e os anos de puritanismo que se seguiram foram fetiche puro. A vontade do ser humano de apimentar o sexo achando que era proibido. E a não ser que você seja assexual, sabe muito bem do que eu estou falando. E quase tudo foi proibido (as pessoas continuavam fazendo escondidas, é claro). Religião teve um papel tão grande na civilização ocidental por tantos séculos porque ninguém tornava o pecado mais gostoso. Mais gente no mundo, mais comida sobrando, mais gente ficando especializada e assumindo cargos de poder em algo que parecia ser uma só civilização. Era o ambiente perfeito. Quando o sexo muda, a humanidade muda junto.

E sim, novamente estou fazendo parecer que foi uma transição mais gradual e homogênea do que realmente foi. Muitos países não foram expostos a civilização fetichista ocidental até o século XX, mas dessa vez estamos falando de séculos ao invés de milênios. A velocidade das mudanças aumenta consideravelmente. Mas ainda havia um problema: as mulheres. Toda aquela história de heranças e base da família ainda eram muito importantes.

Apesar de muitas feministas (atuais, indecentes) não acreditarem nisso e acharem que está tudo igual desde a Idade Média, desde o começo da Era Industrial o grande tema da humanidade é a liberação sexual da mulher. Com o Estado mais confiável em vários locais do mundo, a pressão sobre a mulher diminui para o menor nível desde tempos pré-históricos. A população mundial cresce exponencialmente, leis começam a funcionar em estados progressivamente mais democráticos, há uma explosão de riqueza sem precedentes e a posse do útero torna-se negociável. A mulher não é mais obrigada a ser propriedade da propriedade, tem um sistema funcionando para dar conta dessa parte.

Podemos abrir mão de cada vez mais mulheres nessa posição de posse e manter a nossa civilização rodando. E sabem o que acontece com toda aquela repressão sexual das religiões? Fica insustentável. Pode ser interessante viver à base de sexo proibido por alguns séculos, mas quando a humanidade percebe o que pode fazer nesse campo com as mulheres soltas? Direitos humanos, feminismo (original, o decente) e secularismo. Espero que não tenham te ensinado isso errado: o século XX foi a parte mais impactante de toda nossa história. E para o bem. Mesmo com as guerras horríveis, o salto que a humanidade deu foi absurdo. Foi nesse século que uma pessoa pisou na Lua! E não à toa, foi nesse século que a mulher ganhou uma liberdade sexual incomparável desde os tempos do começo da agricultura. Sim, existiram sociedades liberais antes, mas ainda tinha que fazer filho e garantir as unidades familiares.

Com as mulheres mais soltas, a coisa foi ficando tão boa para a humanidade que mais ou menos no final do século, ainda derrubamos boa parte dos tabus artificiais sobre homossexualidade da era das religiões. Claro, o ser humano tem merda na cabeça e quase normalizaram a pedofilia antes de resolver o problema óbvio com a repressão dos gays, mas entre trancos e barrancos, parecíamos ter achado um caminho bem decente para estabelecer uma nova era de valores sobre sexo. Enquanto a questão sexual fluía de forma mais natural na sociedade, vivíamos um período de relativa tranquilidade política. Discutíamos até sistemas de governo e políticas econômicas… veja só.

Mas, o século XXI chegou. E chegou para escancarar muita coisa mal resolvida na sexualidade humana. Depois de tanta bonança e união de praticamente todos os países numa só civilização (não existe civilização americana, chinesa, alemã ou brasileira, todo mundo age muito parecido e os países se organizam mais ou menos do mesmo jeito), a questão utilitária do sexo se perde. Se o homem não precisa forçar uma mulher a se prestar ao papel de propriedade da propriedade e se a mulher não precisa se resumir ao seu útero… as coisas começam a ficar confusas. Muito confusas. Se você não tem mais uma necessidade prática de seguir seu instinto reprodutivo, pra que serve o sexo mesmo? Porque a vontade continua lá. Seu cerebelo está pouco se lixando para um astronauta na Lua, foi programado para te mandar fazer filhos faça chuva, faça sol, na riqueza, na pobreza…

Não que seja negativa a liberdade sexual de homens e mulheres, mas nas escalas de tempo da humanidade, ela progrediu muito rápido. Muita gente foi pega de surpresa, sem preparação alguma para essa realidade. E a internet pode ter ajudado a estimular essa confusão: até pouco mais de 20 anos atrás, o ser humano não estava acostumado a ter tanta informação e conexões com outros seres humanos de forma tão instantânea. E não é surpresa que o poderoso instinto reprodutivo humano tenha tomado a dianteira nesse mundo globalizado. Já notaram quanto do ambiente político e social atual é dominado por temas relacionados à sexualidade atualmente? Homens e mulheres começam a se fechar em grupos cada vez mais radicais, pornografia é um vício cada vez mais comum, transexuais viraram obsessão em discussões sobre a sociedade, e um monte de gente perdeu até mesmo a noção de a qual sexo pertence.

E isso tem consequências, é claro. É excesso de informação, é excesso de sexualização. Não se enganem, discutir se pode usar uma modelo atraente numa propaganda é ainda mais sexual do que a foto dela pelada. Não estou nem dizendo que estamos mais tarados (embora seja verdade), estou falando sobre a discussão interminável sobre papéis de gênero e o tratamento entre eles. Estou falando sobre padrões malucos de atração e relação sexual vindos da pornografia em contraste com padrões malucos de atração e relação sexual vindos de lacradores. Depois de milênios de destilação dos interesses humanos, ficamos com um caldo muito concentrado de obsessão sexual. Caldo que pouca gente tem capacidade de digerir de forma saudável.

E isso gerou essa era radicalizada. Enquanto um grupo dobra a aposta sobre liberação sexual (sem entender o que está acontecendo) sem parar, outro volta para o último estágio seguro do processo: as religiões do Oriente Médio e suas proibições sexuais. E aqui que eu faço a conexão sobre o pobre conservador e essa teoria do sexo no centro de tudo: cidadão não sabe como funciona o Estado, mal o vê no dia a dia mesmo. Governo são uns safados que vem pedir voto a cada 2 anos, o resto que vê são basicamente policiais truculentos e o burocrata eventual que parece falar em outra língua. Pobre conservador não está pensando em políticas fiscais ou sistemas de organização econômica. É complicado e… francamente, nem é tão interessante assim.

Agora, se ele vir uma notícia sobre uma criança tomando hormônios para mudar de sexo, podem apostar que o universo todo colapsa num só ponto diante de seus olhos. Uma singularidade de interesse que une algo que foi programado geneticamente para dar atenção com a facilidade de formar uma opinião sobre o tema. E se adicionar religião à equação (no Brasil, mais de 96% da população é cristã), temos milhares de anos de experiência em explorar repressão sexual com a anuência dos fiéis.

Podem me chamar de simplista, mas pobre conservador só está nessa porque tem uma divisão clara sobre a visão da sexualidade na sociedade moderna. É literalmente sobre o os outros fazem com suas genitálias, e boa parte não tem sequer capacidade de fazer ginástica mental para esconder isso. Só isso é simples o suficiente para colocá-los em alguma posição política, o resto é basicamente indecifrável para quem mal entende o que lê e na melhor das hipóteses completou ensino médio.

O século XX foi sobre liberação sexual feminina, o XXI vai ser sobre liberação de papéis sexuais em geral. É um buraco tão mais embaixo de tudo o que vivenciamos até aqui que eu honestamente não sei se vamos dar conta do recado numa progressão constante ou se vai ter uma Idade Média Revival reinstituindo as proibições no meio do caminho.

Não aposto que seja rápido o suficiente para vermos em nossas vidas, nem mesmo que seja num processo único como disse no parágrafo anterior, mas a humanidade tem o fim de homem e mulher como conhecemos no seu caminho. Não estou fazendo juízo de valor, afinal, não sou eu que vou viver nesse mundo. Acredito que seja a progressão natural dessa jornada sexual humana, cada vez menos com função reprodutiva e cada vez mais com função social. Porque o instinto não vai embora, ele vai continuar com o pé pesado no acelerador dos nossos interesses, não importa para que lado estejamos guiando o carro…

E para não terminar um texto desses sem pelo menos uma baixaria, um resumo: para entender a humanidade a cada momento, basta entender quem está fodendo quem.

Para dizer que agora não vai mais conseguir desver, para dizer que é tudo culpa dos homens (não é), ou mesmo para dizer que é tudo culpa das mulheres (não é): somir@desfavor.com


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