
Segunda tela.
| Somir | Flertando com o desastre | 4 comentários em Segunda tela.
Já é notório como Hollywood está perdendo público nos cinemas ao redor do mundo. Muitos dos filmes mal recuperam o valor de produção, e considerando que esse valor costuma ser gasto em dobro em publicidade, os prejuízos são enormes. Muito se culpa a cultura woke que se arraigou por lá… mas tem outro fator para se considerar: quem está vendo o filme quer ver filmes?
Tempo de leitura: 90 minutos.
Resumo da B.A.: o autor destila sua transfobia dizendo que os filmes são piores agora que pessoas trans são mais representadas. Eu acho, não estava prestando atenção enquanto lia…
O conceito de segunda tela nasceu para explicar o hábito de muitas pessoas – especialmente as mais jovens – de usar o celular enquanto assistem filmes, séries e eventos ao vivo. A ideia era que o celular fosse a segunda tela, e que as pessoas a usariam para interagir com o conteúdo e com outras pessoas assistindo as mesmas coisas.
Primeiro pensamos que as pessoas usariam o celular para reagir e comentar eventos com hora marcada, ou seja, em esportes ao vivo, séries em canais com horários de lançamento, etc. Fazia sentido, e por um tempo, segunda tela foi mais focada nessa ideia. A pessoa assiste algo e usa o celular para aumentar a experiência.
Só que o público acabou subvertendo todo o conceito de segunda tela. A segunda tela é o conteúdo, a primeira é o celular. Se você prestar atenção nos zoomers e pós-zoomers, eles tem um hábito muito maior de colocar filmes e até séries como “geradores de barulho branco” enquanto usam suas redes sociais.
Não há incômodo em perder partes inteiras do conteúdo, é só algo para levantar os olhos e distrair por alguns momentos. Não acho bom ou ruim, é só o jeito como muita gente parece lidar com esse material, só que isso começa a influenciar o que é produzido. Já percebeu como os serviços de streaming soltam filmes e mais filmes que ninguém sabe muito bem para que servem? Se você estiver prestando atenção, fica entediado.
Mas quando eles soltam dados de visualizações, costumam ficar entre os mais vistos. Quase ninguém comenta sobre as cenas, sobre as personagens, as histórias… é conteúdo que existe. Tem milhões e milhões de visualizações, mas não geram conversas. A Netflix soltou um filme que custou uns 300 milhões de dólares recentemente, e nem para ser chamado de fracasso serviu. Quase ninguém se importou. Eu desconfio que são materiais criados com a ideia renovada de segunda tela. O filme sendo a segunda tela.
Virando assunto ou não, muita gente está assistindo em segundo plano e continua pagando a mensalidade. E aqui a ideia mais subversiva: talvez o modelo de fazer filmes para assistir em primeiro plano não seja mais o negócio principal. O celular e a rede social são competidores ferozes que estão ganhando a briga pela atenção, e não é de pouco.
Eu acho esse tema interessante porque ele pode mexer com a narrativa que a sanha de modernidade identitária da grande mídia seja o verdadeiro ponto de dor da indústria. Reclamei várias vezes aqui da forma infantilóide como enfiam esse tipo de política nos conteúdos, e a reclamação continua válida; mas será que estamos analisando a situação da forma correta? Digo, para definir que uma variável é culpada pelo resultado, ela precisa ser isolada. Hollywood “tóxica” é comparável com Hollywood “lacradora” quando se pensa no contexto do mercado de conteúdo?
Uma coisa é lançar um filme quando as pessoas precisam sair de casa para ver algo diferente, quando quase não existem alternativas e a qualidade em casa é muito pior. Outra coisa é lançar um filme quando quase todo mundo tem acesso a infinitas horas de conteúdo do seu nicho sem precisar levantar da cadeira.
O que eu me pergunto é se as pessoas teriam rejeitado a onda de mulheres poderosas e trocas de raça se ela tivesse acontecido em décadas anteriores à internet onipresente. Eu não gosto mais de filmes de super-heróis, mas para ser honesto, eu não gosto mais de filmes que contam as mesmas histórias que eu já vi duzentas vezes. Depois de um tempo, você já está cansado de jornada do herói com efeitos especiais.
É normal que conteúdos fiquem repetitivos por causa da quantidade de vezes que você já viu. O adolescente vai ver um filme basicamente igual aos que você já cansou de ver, mas para ele vai ser a primeira vez, e isso vai ser espetacular! Essas histórias clássicas de heróis e superação são saborosas para todo mundo. Mas pense comigo: se você está sendo impactado por uma quantidade enorme de conteúdo desde a mais tenra infância, não faz sentido que esse tipo de filme, série ou evento fique mais chato mais cedo na vida?
A lacração passa uma mensagem que eu considero errada de divisão e desconfiança entre grupos humanos, por isso eu critico. Mas eu estou muito mais desconfiado do peso da política lacradora no fracasso de Hollywood e similares. Se os filmes voltarem a ser sobre homens musculosos atirando para todos os lados, resolve o problema do jovem que tem muito mais diversão na tela pequena do que na grande?
A rede social fica menos viciante se o filme no cinema não tiver uma mulher invencível que pisa no patriarcado como protagonista de todos os filmes? Talvez os filmes fiquem menos rasos sem essa fantasia de poder masculina trocada de sexo, mas não eliminamos a variável da mudança de hábito de consumo de mídia. O jovem pode achar duas horas no cinema sem poder usar o celular como um castigo. E se ele acha isso, faz sentido que não queira mais ir.
E não adianta fazer campanha de conscientização. Não é que as pessoas não sabem que existem pontos positivos em consumir cultura sem dividir atenção com celular, é que elas não querem mesmo. Se era uma batalha, foi um massacre que aconteceu muitos anos atrás.
E por incrível que pareça, uma preocupação com o futuro da lacração: se ficar definido que foi ela que matou o formato antigo de consumo de filmes, a mentalidade vai se estabelecer que o povo só quer conteúdo conservador. Trocar roteiros imbecis com gente colorida por gente branca não vai mudar o hábito do zoomer de ficar olhando para o celular. Mas o ambiente cultural vai continuar valorizando a divisão: as grandes empresas confusas porque fingir que é inclusivo e fingir que é tradicional não funcionam, tentando loucamente achar qual é o lado “certo” para trazer o dinheiro de volta.
A questão é que se você focar no problema errado, acha a solução errada. A forma de consumir conteúdo mudou. Vamos perder algumas coisas do formato antigo, é inescapável. O que dependia de escala para ser lucrativo vai ter que se adaptar à pulverização do interesse do ser humano médio. Em compensação, hoje em dia você tem opções intermináveis e na média, pode pagar até menos se topar ficar com os serviços que se sustentam por propaganda.
Já se formou um grande mercado de críticos de conteúdo que falam sem parar da lacração da grande mídia, dizendo que foi isso que criou os problemas atuais. Eu até me divirto vendo alguns, porque tiros no pé como o daquela moça da Branca de Neve são engraçados, mas é importante saber separar as coisas: a lacração não ajudou, azedou a relação com um grande público que ainda gostava de ver filmes e séries como primeira tela; mas a escala é grande demais para ser só isso.
Tinha pensamento woke em quase tudo o que a mídia americana fazia nas últimas décadas. Não tinha esse nome, mas sempre foi um povo mais progressista. Era a lacração que cabia na época. O que vimos na adolescência e achamos normal com certeza era a “perdição da sociedade” para pessoas mais velhas. Já foi absurdo para alguém uma mulher com um emprego num filme, ou um negro que não fosse faxineiro.
Esse tipo de mídia sempre vai estar uns passos à frente do aceitável para pessoas mais conservadoras, até porque faz sentido do ponto de vista comercial: a pessoa mais velha cansa de ver a mesma porcaria de filme pop com o mesmo roteiro, eles precisam renovar o público sem parar. A lacração de Hollywood talvez não tenha sido o cerne da questão, eu já acredito que não foi, a nova primeira tela do celular é um acontecimento muito mais impactante na sociedade humana para ser deixado em segundo plano.
O curioso é que essa mudança de sexo e raça de heróis talvez tivesse sido o movimento certo do ponto de vista comercial, só não contavam que em tão pouco tempo as pessoas simplesmente deixariam de olhar para a tela grande. A indústria da música tomou um choque de realidade violento com o advento das música digital, faz pouco tempo que o modelo de streaming começou a dar lucro. E isso só aconteceu porque realmente desistiram do modelo antigo, não ficaram batendo cabeça sobre que tipo de música o jovem queria, só entregaram no formato que fazia sentido para ele.
Formato pesa mais que política. Você pode achar uma babaquice o que andam fazendo com os filmes modernos, mas eu não consigo mais acreditar que foi isso que mudou. O mundo girou ao redor do cinema, o que estava na tela enquanto isso me parece mais um detalhe.
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São duas preocupações aí interessantes pra lidar: a forma e o conteúdo. Eu não sei se tendo a ser pessimista e achar que o conteúdo, a qualidade das obras cinematográficas tende a piorar com o tempo. Agora, o formato, pra agradar, realmente tem que se reinventar, e com isso, a qualidade acaba caindo junto.
Tem também a questão da duração: triste essa geração tik tok que só presta atenção em vídeos de 15 segundos, viu? Mas por outro lado, acho curioso e contraditório também, parece que os filmes estão cada vez mais longos. Filmes de 3hs de duração? Pra quê? Isso parece criar um nicho cada vez mais específico em que apenas os fortes que aguentam sobrevivem a ele.
A definição de zoomer nem faz sentido. Colocam quem nasceu em 1996 e em 2012 no mesmo barco. Nasci em 1997 e vi tv aberta, carta, máquina de filme, VHS, lista telefônica… quem nasceu em 2006 em diante não viu nada disso. Consigo achar mais coisas em comum com quem nasceu no final dos anos 80 do que com quem nasceu nos anos 2010.
Ponto de vista interessante o seu, Somir. Mas, você não teme que, independentemente da recente onda de politização do conteúdo, haja também uma queda na qualidade em si? Me parece que isso de transformar o que antigamente era a primeira tela (e muitas vezes a única) em um mero “gerador de barulho branco” e de produtores agora lançarem tudo em formato que faz sentido somente aos novos consumidores empobrece o conteúdo. Como a atenção da maioria dos jovens da atual geração só dura o tempo de um spray no ar, é de se esperar uma quantidade monumental de coisas insossas, repetitivas, efêmeras e indiferenciáveis entre si. Praticamente nada hoje em dia é perene, denso, instigante ou inovador. A indústria cultural, e a de cinema em particular, vem apenas se retroalimentando com infinitas sequências e remakes em vez de realmente criar algo novo. E isso não é bom…
“A atenção da maioria dos jovens da atual geração só dura o tempo de um spray no ar”. Adorei essa…