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Estado de fé.

Estado de fé.

| Somir | | 2 comentários em Estado de fé.

Ao redor do mundo, muita gente corre para igrejas, mesquitas e similares quando está passando por alguma dificuldade. Não estou falando de agruras da alma, mas problemas bem práticos como medo de perseguição, fome, desabrigo. São as “entidades do bem” entendidas pelo cidadão médio. Lugares onde se presume que as pessoas vão ser acolhedoras e que fornecem algum grau de segurança pelo poder financeiro e político que detém. Esses lugares não podem faltar.

Tempo de leitura: 1 hora.

Resumo da B.A.: o autor fala sobre religiões sendo entidades do bem mesmo elas sendo contra as pessoas transexuais. Mesmo assim, eu quero ser aceitu pelas religiões.

POWERED BY B.A.

Quem diria, o Somir falando algo positivo de religião?

Sim, mas não. Qualquer coisa que se misture tão profundamente com a vida humana por milênios vai ter pontos positivos. Eu até argumento que para o cidadão médio a conta parece fechar no positivo com religiões organizadas. Oferecem serviços e propósito para quem não tem outras opções.

Mas ao invés de uma discussão sobre a alma do ser humano, eu estou pensando em algo muito mais mundano. Seja como for, religiões organizadas são uma espécie de porto seguro da realidade para muita gente. Independentemente de suas crenças, elas são estáveis. A Igreja Católica, muito em voga no momento por causa da morte do papa, é uma dessas entidades praticamente imutáveis na sua posição de “entidade do bem”. A pessoa nasce e morre sabendo o que esperar dessa instituição.

Tem suas regras, tem suas ideias paradas no tempo, mas em compensação, você provavelmente pode contar com o apoio deles em diversas situações de necessidade. A Igreja Católica é riquíssima e influente em boa parte do mundo. Ela existe como essa figura de poder acolhedora até mesmo se você não tiver a mesma crença que eles, normalmente basta ser respeitoso com a fé deles para não ser muito antagonizado.

O ponto aqui é sobre como uma pessoa qualquer enxerga o mundo: a imagem dessa igreja está tão arraigada, especialmente no mundo ocidental, que o conceito dela faz parte do senso de realidade das pessoas. É uma entidade poderosa que está aberta a novos membros e segue um código mais ou menos compreensível de ética. Falha, como todas as entidades falham, mas existe uma ideia básica de fazer o bem e cuidar dos mais fracos.

E em outras culturas, são outras religiões e templos, mesmo que não tão ricos e centralizados como os católicos. Eu argumento que muito mais que a parte espiritual da coisa, religiões conseguiram se estabelecer com tanta força na humanidade por serem grupos de pessoas previsíveis que se comprometeram a serem colaborativas. Muitas vezes o preço é se render à crença vigente e realizar os rituais esperados do fiel, mas está na cara que o ser humano médio topa a troca sem se doer tanto assim. Existe esse valor na religião organizada: um lugar para ir quando você precisa de suporte. E que nem cobra tão caro por ele.

Dito isso, agora falemos do não. De eu não estar realmente falando bem de religiões. O fato delas assumirem esse papel de entidade poderosa do bem que oferece segurança de algum apoio diante das dificuldades da vida não quer dizer que só elas podem funcionar assim. Em tese, os Estados modernos surgiram para fazer justamente esse papel.

Pode ser tudo um caos na sua vida pessoal, mas o sistema que cobra impostos e faz as ruas deveria ser essa entidade do bem estável. E quando eu falo entidade do bem, é importante ressaltar que é um bem dos mais básicos: alguém que te ajuda a não passar fome, frio e ser atacado por predadores. A religião faz muito nesse sentido de oferecer serviços básicos para quem está desesperado. E ela se assentou nessa posição porque é algo muito valioso para nossa vida em grandes sociedades.

Tudo o que pensamos como serviços básicos do governo é mais ou menos essa ideia de entidade do bem. Um protetor forte com recursos para te proteger de qualquer outro indivíduo. O Estado se desenvolve com essa ideia vinda de religiões organizadas, mas ao redor do mundo, essas organizações falham demais em substituir de verdade as entidades religiosas.

O cidadão médio não consegue suporte suficiente do seu governo, ele não consegue fazer essa substituição. Não à toa, nos Estados mais eficientes do mundo, temos populações menos religiosas. Existe uma relação clara entre os excelentes serviços oferecidos por governos nórdicos e a quantidade de ateus imensamente maior que a média mundial, por exemplo. A religião é mais popular na medida que o Estado é menos.

O americano é muito religioso para a média de países ricos, e isso parece ser por um motivo: a forma como desenvolveram seu riquíssimo Estado não prezou por uma forte rede de segurança social. O espaço da religião utilitarista – isso é, uma que literalmente oferece serviços básicos em conjunto com a espiritualidade – tem que ser ocupado pelo Estado para vermos qualquer diminuição no número de fiéis.

O que, por sinal, acontece consistentemente ao redor do mundo. Mesmo que no Brasil o povo esteja trocando um sabor de cristianismo pelo outro, cada pequeno avanço em qualidade de vida média reduz o número de pessoas que se dizem religiosas. Curiosamente, não é sobre acreditar ou não numa divindade, é sobre o reflexo disso na vida cotidiana da pessoa. Se o Estado funciona, o lugar de entidade do bem é movido da religião, um guardião inconsistente, para o governo, que em tese é fundamentado por constituições e declarações de diretos humanos, sem os buracos óbvios das fantasias religiosas.

Então, sem querer criticar o papel louvável de várias religiões ao redor do mundo para oferecer suporte e segurança para povos marginalizados, ainda podemos ver um problema fundamental aqui: competição. Se o Estado funciona, a religião perde aderentes; se o Estado falha, ela se torna mais popular. Ninguém precisa estar planejando sabotar os governos mundiais para isso ser verdade, não estou nem dizendo que religiões tentam sabotar os Estados laicos sabendo que estão em competição direta; mas estou dizendo que não existe incentivo real para a fé deixar sistemas democráticos humanitários formarem raízes.

E daí, um paradoxo: eu realmente acredito que muitos em religiões organizadas queiram o bem das pessoas, mas pela lógica básica das religiões mais populares do mundo, é importante angariar mais e mais fiéis para oferecer salvação e “cumprir sua missão” diante dos olhos de suas divindades. Deixar o Estado funcionar acaba reduzindo o número de fiéis. Pode não ser algo percebido conscientemente, mas vai impactar as ações das religiões organizadas.

Eu acredito que exista motivo para tantos políticos religiosos serem agentes do caos dentro do sistema democrático. Mesmo que inconscientemente, sabem que são objetivos conflitantes. Se eles trabalharem muito bem dentro do Estado laico, estão erodindo a sua base de poder. A ideia de entidade do bem sobrevive com ou sem a crença em seres superiores, mas a aplicação do conceito leva a uma disputa inevitável entre fé e Estado.

O ser humano precisa de entidades do bem para ter uma vida mais saudável em sociedade, nem que seja para manter a esperança de justiça e segurança. Muitas vezes só de acreditar que a sociedade funciona é suficiente para acalmar os nossos instintos mais egoístas. A religião funciona para isso, mas não funciona o suficiente para entregar qualidade de vida nos países com maior proporção de religiosos.

Achamos um modelo melhor. Provamos que o modelo é melhor. O problema é que para fazer a transição entre entidade do bem religiosa e entidade do bem laica, muita gente vai perder o poder e os recursos que têm. E salvo engano, isso nunca aconteceu de boa vontade na nossa história. As pessoas que detém poderes enormes como as que controlam a Igreja Católica não entregam poder. Tem que ser tirado deles.

E como vemos no Brasil, esse poder está sendo tirado primeiro por neopentecostais, muito mais fracionados, mas com uma proposta de entidade do bem mais interessante para o brasileiro médio. Da mesma forma que os católicos não tinham interesse genuíno em melhorar o Estado, esse nova leva cristã também não vai ter vontade de tornar seu “adversário” mais poderoso.

As coisas podem terminar desse jeito mesmo que exista interesse genuíno em fazer o bem no coração das pessoas. São metas incompatíveis. Se o Estado laico funcionar, a religião perde todo o pacote não espiritual da sua proposta de valor. E talvez pouca gente esteja disposta a lidar com o que parece ser a realidade: o ser humano não é tão espiritual assim. A realidade se impõe, são os serviços humanitários básicos e a comunidade que dão força para as religiões. Já ouviu a maioria dos religiosos? Não tem muita profundidade na parte teológica da coisa, até porque chega num ponto de abstração que simplesmente não cabe na vida de alguém passando sufoco para pagar suas contas e colocar comida na mesa.

Eu penso que num futuro em que o Estado funciona para a maioria das pessoas e as religiões organizadas não têm mais função de entidade prática do bem, talvez as pessoas voltem a se conectar mais com a parte abstrata da fé (por ter mais disponibilidade mental) e as religiões possam retomar sua relevância. Mas é uma aposta difícil. Difícil de dar certo, porque existem buracos muito grandes quando você pensa de verdade na proposição das religiões baseadas em deuses e milagres, e difícil de pagar: se perderem fiéis nesse meio tempo, perdem muitos recursos para se manterem funcionando.

Eu não apostaria nas religiões organizadas cedendo esse poder para o Estado laico, pela aposta que nem eu sei se faria, e pelos interesses muito humanos que as parasitam desde tempos imemoriais. Deus, para muita gente, é uma desculpa esfarrapada para exercer poder e acumular recursos. Essas pessoas precisam ser extirpadas das estruturas das religiões antes de existir qualquer chance de uma transição pacífica. E aí, o próximo problema: se o Estado não funcionar como uma entidade do bem estável, justifica-se quem diz que precisa da dureza ideológica da religião para fazer o ser humano funcionar.

Sabemos que não precisa em alguns exemplos de transição eficiente entre religião e Estado laico em países ricos, mas não sabemos se funciona em todos os lugares, isso é, não sabemos se ainda funciona em todos os lugares. Eu nem acho que a religião vai acabar, mas acho que esse papel de garantidor social tende a ser passado de vez para a política, desde que o povo consiga enxergar no Estado essa figura de poder acolhedora e focada em proteger os mais fracos.

Em última instância, religião funciona para fazer esse papel de entidade do bem. Não é a melhor entidade do bem que podemos ter, mas é uma extremamente sólida, talvez até por sua teimosia dogmática, evolui muito devagar (mas evolui, o cristianismo inicial era completamente diferente do atual). Imagino que por muitos e muitos séculos ela vai estar lá como uma última linha de defesa da humanidade caso os Estados comecem a falhar.

E ao mesmo tempo, muitas vezes sem ser o objetivo explícito dela, sabotando a organização social independente de fé. Os dois sistemas de organização querem a mesma coisa, monopólio da percepção de bem e justiça no mundo. As pessoas querem essas entidades do bem para tornar sua vida menos sofrida. Existe demanda, e existem concorrentes para atender à demanda.

O que eu gostaria que mais gente percebesse é que a religião organizada já percebeu que está concorrendo e age de acordo. O Estado laico ainda não. Alguns ditadores atacam religião por perceberem o conflito de interesses, mas eles são algo ainda pior que religião. O Estado democrático ainda é muito vacilante em entrar na disputa, até porque em boa parte dos países onde existe essa questão, a população é majoritariamente religiosa.

A pior solução é tentar reprimir a fé das pessoas, os ditadores que fazem isso tem prazo de validade, e quando caem, levam consigo qualquer vantagem que o Estado conseguiu sobre a religião. A melhor solução é tornar a fé opcional, e isso só acontece se tudo o que a religião oferece fora do campo espiritual for oferecido pelo Estado também, e sem a contrapartida das regras de comportamento desatualizadas em milênios.

Religião só pode ser controlada se não for basicamente a única alternativa para bilhões de pessoas sem esperança em seus governos. É por isso que eu me posiciono diametralmente contra o poder das religiões organizadas, mas tenho convicção que não podemos tentar proibir ou reprimir o que não for explicitamente ilegal nelas: é meio que nem eu, ateu, ficar pentelhando uma pessoa religiosa sobre sua fé e achar que ela vai ganhar alguma coisa deixando de acreditar no seu deus sem ter nada para colocar no lugar.

Não funciona. É uma disputa por ser a entidade do bem na vida da pessoa. E se o Estado laico for fraco como é o brasileiro, é claro que mais de 90% das pessoas vão se dizer cristãs, é o que sobrou para elas.


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