
Parcialmente correto.
| Desfavor | Ele disse, Ela disse | 3 comentários em Parcialmente correto.
O modelo americano de imprensa abertamente parcial ganha mais e mais adeptos ao redor do mundo. Sally e Somir apreciam honestidade, mas discordam sobre como isso deve ser tratado na mídia de massa, especialmente a jornalística. Os impopulares expressam suas opiniões.
Tema de hoje: o que é preferível de se ler, um jornal que declaradamente tem uma linha editorial definida e honestamente se diz parcial ou um jornal que se diz completamente imparcial?
SOMIR
Tempo de leitura: depois eu leio, parece chato.
Resumo da B.A.: é muito mais fácil saber que está sempre certo, meu rei.
Eu prefiro que a parcialidade seja explícita. Não é como se fosse possível alcançar 100% de imparcialidade, e mesmo que num mundo ideal toda a imprensa tentasse uma abordagem centrada e factual, no mundo real as coisas não funcionam bem assim.
O que eu quero dizer é que a ideia de imparcialidade até funcionaria se fosse o padrão, mas como o dinheiro fala mais alto e ser parcial rende mais cliques e atenção hoje em dia, vira uma vantagem competitiva quase impossível de ignorar. Se um veículo de imprensa se esforçar para não parecer parcial, vai ser menos chamativo que os que apelam para viés de confirmação do público.
E aí, das duas uma: ou o jornal vai se afundando em irrelevância ou faz ainda pior, começa a ser parcial fingindo que não é. Se o “meta” do jogo da informação é pregar para convertidos, talvez até inconscientemente o pessoal que queria ser imparcial começa a apelar mais em manchetes e em temas escolhidos. A gente fica com esse mundo de chamadas exageradas que mexem com o emocional das pessoas, e o texto (que pouca gente lê) pouco importa, mesmo que seja mais imparcial mesmo.
Como eu não quero que a imprensa morra, porque o cidadão médio é um desastre para compartilhar informação, só apelação, fofoca e confusão no grupo do Zap, eu quero que o modelo de negócios de coletar e divulgar informações continue válido. E como eu não quero também que a imprensa fique nesse jogo imbecil de apelar por cliques fingindo que não está apelando por cliques, a parcialidade assumida parece a solução menos dolorosa.
Porque pelo menos existe uma certa preocupação com o valor da informação se você quer defender um ponto. Parece contraditório, mas mentir funciona até certo ponto. Se você começa a forçar a barra com informações bizarras inventadas e acusações infundadas sem parar, seu público vai ficando mais e mais restrito. Eventualmente você vira um daqueles perfis ideológicos conspiratórios, que não tem mais filtro e começa a mexer até com o tênue senso de realidade do cidadão médio.
Dizer que o Bolsonaro ou o Lula são pessoas ruins é uma coisa, fazer uma acusação absurda contra eles começa a erodir sua confiabilidade como fonte de informação. Mesmo que a pessoa engula bobagem 90% das vezes, você apela tanto que eventualmente vai pegar nos 10% das vezes que a pessoa é capaz de perceber a mentira, ela vai pegar. E aí, sua credibilidade está ferida para sempre com a pessoa.
A solução para esse problema é se controlar um pouco para defender o seu lado sem mentiras ou conspirações malucas facilmente perceptíveis. Um jornal que se diz parcial sem perder a aura de imprensa tende a ser mais racional na hora de escolher suas manchetes. Ainda falam muita besteira, mas se prendem a um padrão mínimo de realismo. A Fox News nos EUA é um bom exemplo: eles são republicanos até dizer chega, mas se pegam eles numa mentira ou em algo muito forçado, eles baixam a fervura na hora. O modelo de negócios não é fazer alegações bombásticas sem parar, é se posicionar como imprensa que “fala a verdade” para o seu público, sem a “manipulação” que o outro faz na informação.
Sutil, mas importante. Como você tem um lado, é julgado de acordo com seu potencial de influenciar o público para esse lado. E existem limites de quanto você pode apelar para isso, não porque as pessoas são boazinhas, mas porque existem carreiras, imagens e anunciantes para manter. Por incrível que pareça, parcialidade descarada ajuda veículos de imprensa profissionais a se manter relevantes sem perder um mínimo de credibilidade. Até para ser manipulador precisa ser confiável.
E eu sei que muita gente acha terrível essa coisa da imprensa ter um lado, porque teme ser enganada. Oras, aí entra algo que eu sei que não é muito popular, mas que precisa ser dito: o problema de entender a realidade é seu. Sempre foi. O ser humano mente, se engana, tem objetivos próprios que não são claros para os outros. A ideia de imprensa imparcial como salvação para esse problema é uma ilusão, e meio preguiçosa até.
Você tem que ser capaz de absorver uma informação com algum nível de pensamento crítico. E isso não quer dizer saber tudo de antemão, quer dizer que você tem que saber minimamente o que é capaz de analisar e o que não é. Nada dessa arrogância internética de ser especialista em tudo. Quando eu leio uma notícia sobre algo que não conheço bem, sei que não posso sair usando aquela informação de qualquer jeito. Ler uma notícia sobre física quântica não te prepara para criar um curso de autoajuda quântica, seja lá o que isso signifique.
Inteligência é muito mais sobre reconhecer o que te falta de informação do que propriamente ter um repertório gigante de opiniões fortes. Se você morre de medo de ser manipulado, provavelmente está subutilizando sua inteligência: não era mesmo para ter uma certeza absoluta sobre algo depois de cinco minutos de leitura!
Mesmo que não seja o mundo ideal, pelo menos com mais jornais admitindo que de lado estão e como vão contar a história, as pessoas podem aprender a largar essa muleta e tentar fazer senso do mundo sem tanta histeria. Claro, não vai ser rápido nem indolor, mas como eu parto do princípio que a parte capitalista da coisa de lutar por cliques até a morte não vai diminuir, que pelo menos tenhamos mais clareza ideológica no mundo. Hoje quase todo mundo se diz de direita ou esquerda, mas na verdade pensa que está certo sobre tudo e não precisa mudar nada. Falsa imparcialidade alimenta esse monstro da certeza, porque as pessoas acham que o que concordam é notícia pura e o que discordam é manipulação. Que fique claro que o que você concorda vem de alguém com interesses.
Se não tem como fazer do melhor jeito, que se faça de um jeito menos pior. E se você tem medo de ser manipulado pela imprensa, saiba que é muito mais preguiça intelectual sua do que propriamente uma armadilha inescapável.
SALLY
Tempo de leitura: 24h
Resumo da B.A.: tá errado o texto o sobrenome do Cumpadi não é “post”. Tchu tchu pááá
O que é preferível de se ler, um jornal que declaradamente tem uma linha editorial definida e honestamente se diz parcial ou um jornal que se diz completamente imparcial?
Recentemente o The Washington Post anunciou uma mudança na sua linha editorial, focado em defender certos princípios e em não publicar matérias que de alguma forma contrariem esses princípios. Isso trouxe uma enxurrada de críticas e muita revolta, por isso, resolvemos trazer o tema hoje.
Para começo de conversa, sabemos bem que não existe veículo de mídia imparcial, pois não existe ser humano imparcial. Todos nós somos contaminados em menor ou em maior grau, por nossas crenças, convicções e vivências, por mais que tentemos a todo custo manter uma imparcialidade. Então, a mídia que se diz imparcial mente.
Porém, uma coisa é não ser imparcial, mas fazer constantemente um esforço para ser e outra é quem já desistiu e tem uma linha editorial que baliza tudo que é escrito. Eu prefiro um jornal que, mesmo não sendo 100% imparcial, tem essa meta, do que um jornal que assume que não é imparcial e se sente totalmente confortável para falar dentro de um cercadinho que ele já estabeleceu.
Mesmo sabendo que ninguém é imparcial, um jornal sem uma linha editorial que restrinja conteúdo pode chamar diversas pessoas, diversos pontos de vista (obviamente dentro da lei), para que o leitor tenha acesso a eles e forme sua opinião. Ainda que cada autor de cada texto não seja imparcial, se equilibra essa parcialidade com diversidade.
Se você traça uma linha editorial restrita, só vai poder escrever na sua mídia quem reza por aquela cartilha. Isso é meio empobrecedor quando falamos de produção de conteúdo.
“Mas Sally vocês fazem isso no Desfavor”. Sim, nós vetamos certos temas como BBB, falas que negam a ciência e outras coisas, mas nós não nos dizemos mídia, muito pelo contrário. Nossa intenção não é fazer o papel da grande mídia. E nós não ganhamos dinheiro ou cobramos pelo conteúdo. Muito pelo contrário. Somos honestos: isto aqui é um blog opinativo.
Ter status de mídia, de veículo com a intenção de informar as massas, se vender como órgão que tem compromisso em apurar a verdade (e não em opinar) tem seu lado bom e seu lado ruim. O lado bom é conseguir status, subsídios, visibilidade e dinheiro. O lado ruim é que você tem alguns deveres éticos e morais para com a sociedade.
Quer fazer as coisas do seu jeito? Escreve um blog opinativo, deixando muito claro que o que tem ali é sua opinião. Quer ser um veículo oficial de informação? Bem, nesse caso, é melhor para a sociedade se você entregar informação em vez de levantar uma bandeira.
“Mas Sally, eles disseram que vão defender liberdades individuais, isso não é bom?”. Levantar bandeira nunca é bom, pois te permite direcionar o discurso para o lado que te convém. Vejamos o Brasil fazendo atrocidades para “defender a democracia”, atrocidades essas que acabaram tornando o país muito menos democrático do que era antes, segundo diversos observatórios internacionais.
“Mas Sally, ao menos eles foram sinceros sobre o conteúdo que vão apresentar”. Eu não concordo. Geralmente, levantar uma bandeira é algo usado para direcionar um discurso por interesses pessoais sem que isso pegue mal. A maior parte das atrocidades cometidas pelo ser humano foi sempre agindo em nome de uma “boa causa”. Dificilmente quem faz questão de levantar uma bandeira dessa forma tão ostensiva está focado na causa que diz defender. Quer é um álibi para ignorar certos fatos.
Quem é a favor da democracia não precisa fazer disso sua bandeira. Quem é a favor de liberdades individuais não precisa fazer disso sua linha editorial. Basta buscar conteúdos que estejam alinhados com isso, sem precisar fazer qualquer anúncio público com ameaça implícita.
Acho sintomático precisar traçar esta linha: “somos um jornal que não fala sobre ____”. Tá tudo certo optar por não falar sobre coisas que se considerem socialmente nocivas, mas é red flag quando você precisa levantar essa bandeira, parece que está querendo passar uma determinada imagem artificial.
Fora que essa bandeira pode servir como desculpa para deixar de falar sobre muitas outras coisas importantes que não têm absolutamente nada a ver com ela, mas que acabam correlacionadas em uma forçação argumentativa. Mais ou menos o que o Governo brasileiro faz perseguindo tuiteiro que faz piada com eles em rede social, alegando que estão ameaçando a democracia ou divulgando fake news.
Então, eu prefiro quem tenta mostrar todos os pontos de vista, mesmo que não consiga, mesmo que alguma parcialidade resista, pois além de acreditar que terei mais diversidade de fontes e pensamentos, acho que linha editorial é balela, é uma grande desculpa para não falar sobre o que não convém ou falar sobre o que convém. Se você quer fazer isso, não pode ser imprensa.
E, veja bem, nada contra quem quiser continuar consumindo o The Washington Post, não acho que seja caso de boicote aqui. Eu mesma vou continuar lendo. O povo tá nervoso, esculhambando, xingando e dizendo que não vai dar mais dinheiro para eles como se estivessem cometendo um crime… Gente, é sagrado direito deles se posicionar. E avisa para o pessoal que está nervosíssimo boicotando que para boicotar também tem que parar de comprar na Amazon, pois é o mesmo dono.
Desconfie de qualquer pessoa ou empresa que levanta bandeiras. Geralmente é para conveniência deles, não pela causa.
Apesar de concordar com muito do que a Sally diz, eu vou ficar com o Somir nessa. Jornais nunca deveriam tomar lados. Em um mundo ideal, a imprensa apenas noticiaria e apresentaria vários pontos de vista a fim de dar aos leitores as “ferramentas” pra formarem sua próprias opiniões. Mas esse “mundo ideal”, infelizmente, não existe na realidade. Há um monte de interesses em jogo (financeiros e políticos) e a maioria do público “do lado de cá” também não é de pessoas muito perspicazes e/ou cultas. É uma merda que jornais fiquem tomando partido desse ou daquele, reforçando visões de mundo parciais e tortas ao invés de combatê-las, mas, quando esse “posicionamento” é feito às claras, a gente ao menos já sabe o que esperar quando vai ler…
“E, veja bem, nada contra quem quiser continuar consumindo o The Washington Post, não acho que seja caso de boicote aqui. Eu mesma vou continuar lendo”.
Historicamente, o Washington Post desempenhou o papel que se espera de um jornal nos anos 70 ao publicar matérias sobre Pentagon Papers e o Watergate.
O Pentagon Papers (1971) foi um caso interessante de parcialidade. Katherine Graham era uma socialite, que acabara de assumir o comando do jornal ao ficar viúva, e queria vender ações na bolsa para ter recursos para tornar o jornal um veículo respeitável de mídia que ela sempre sonhou.
Ao mesmo tempo, era amiga de vários políticos, do governo atual e dos anteriores, sobretudo os envolvidos até o pescoço na Guerra do Vietnã, o que deixava os editores do jornal malucos com a interferência da alta administração na publicação de artigos sobre os amigos da dona.
Nisso, um relatório de 7.000 páginas do governo anterior caiu no colo no jornal, que, em linhas gerais, declarava que a guerra era um caso perdido desde seu início. O documento fora encomendado pelo então Secretário de Defesa, que era amigo pessoal da dona do jornal. Convencida pelo editor-chefe, Katherine deixou seus jornalistas correrem atrás dos fatos.
Mesmo com a alta administração do jornal dizendo que, caso ela prosseguisse, o jornal perderia seus principais investidores, não conseguiria perder ações na bolsa e ela mesma se tornaria uma pária em Washington, fora o risco legal (já havia uma determinação judicial para não divulgar), trechos do relatório foram publicados. E o Washington Post acabou banido da Casa Branca pelo Presidente Nixon (até que o jornal publicou sobre o escândalo de Watergate, que causou a renúncia dele em 1974).
Quem quiser saber um pouco dessa estória, sugiro assistir o filme The Post.
Vou dar uma olhada nesse filme, Suellen. Excelente comentário.