
Bonita coisa…
| Somir | Flertando com o desastre | 2 comentários em Bonita coisa…
Alguns dias atrás, Lula estava fazendo um de seus discursos de forma livre num evento oficial e no meio de uma fala aos líderes do Legislativo, disse que queria tanto uma boa relação que até colocou uma mulher bonita como Ministra das Relações Institucionais do governo. Deu ruim.
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Resumo da B.A.: painho não faz por mal, é culpa da extrema-direita e dos padrões de beleza eurocêntricos.
A mulher bonita em questão era Gleisi Hoffmann, ex-presidente do PT e atual escolhida para gerenciar o relacionamento entre o governo Lula e os outros poderes, especialmente em relação a deputados e senadores. Não deu tempo nem de Lula soltar o microfone e já tinha gente achando um absurdo. Sexismo, desvalorização de competência da mulher e tudo mais o que vem no pacote do discurso esperado sobre o tema hoje em dia.
Mas antes de seguir neste tema, eu quero falar sobre estocar vento.
Vários anos atrás, quando ainda era presidente, mas cismava em ser chamada de presidenta, Dilma Rousseff fazia o seu discurso de forma livre num evento oficial. O foco era energia eólica. Dilma vendia o investimento nas turbinas de captação de energia dos ventos como algo moderno, benéfico, fascinante até.
E lá na sua cabeça, depois de ouvir algum especialista explicar como a coisa funciona, repassou o conhecimento de uma forma que deve ter julgado poética. Disse que poderíamos estocar o vento. Virou piada. Até hoje as pessoas lembram de Dilma e brincam com o “absurdo” que ela disse sobre estocar… vento.
O problema é que Dilma pode ser meio atrapalhada ao se expressar e ter ideias terríveis sobre economia, mas é claramente uma pessoa com inteligência bem acima da média brasileira. O que muita gente não sabe até hoje é que não tinha nada de absurdo ou estúpido sobre o que ela disse. Turbinas de energia eólica transformam o girar das hélices pelo vento em energia elétrica, e como essa energia é muito variável (vento começa e para diversas vezes no dia), o sistema precisa de baterias para manter essa energia num nível médio.
Dilma entrou para a história com essa frase, e no contexto que o brasileiro médio usa, é uma frase que demonstra burrice. A verdade é que ela ouviu um engenheiro explicando e transformou isso numa frase que achava bonita, e francamente, é mesmo uma das partes mais fascinantes do processo. O vento que passaria à toa num lugar é estocado em forma de energia nas baterias do sistema.
Eu adoro esse exemplo porque ele explica muito bem como ignorância está sempre se olhando no espelho. Sabe-se lá quantos anos se passaram com gente repetindo essa frase dela como exemplo de estupidez sem saber que estão se revelando como estúpidos.
Por que eu peguei esse desvio? Porque se o Brasil estivesse indo muito bem na economia naquela época e Dilma fosse minimamente carismática, essa frase não entraria para os anais das frases bizarras da política tupiniquim. Eu tenho certeza de que na época tínhamos um monte de gente que entendeu e que poderia ter explicado para o cidadão médio o contexto da coisa. Mas ninguém se esforçou. Nem eu.
Quando junta incapacidade com má vontade no entendimento, qualquer coisa que você fala pode virar um problema. O Bolsonaro foi acusado de ser pedófilo por muita gente quando disse que estava passando por uma rua, viu uma menina e “pintou um clima”. Na época a gente deve ter comentado aqui, mas o contexto era que ele desconfiou que era um prostíbulo com menores de idade e mandou alguém verificar. Quando descobriu que não era nada disso, foi lá tirar umas fotos e fazer uma campanha eleitoral na casa.
E mesmo naquela época, com a putez sobre os descalabros da pandemia, nós conseguimos separar a lógica da emoção e perceber que não havia cabimento em desconfiar que o presidente estaria tentando solicitar serviços sexuais de uma menina e ainda admitindo isso publicamente. Ele usou uma expressão burra para descrever a situação e quem já estava disposto a tentar ferrar ele se jogou na acusação infundada.
E sim, se você acha que o então presidente “vacilou” e deu uma indicação de que era pedófilo no meio de uma entrevista para a imprensa, eu só posso te dizer que está faltando lógica básica na sua cabeça ou faltou proteína na sua primeira infância. Não tem nada a ver com gostar ou não da pessoa, tem a ver com capacidade básica de compreensão da sociedade humana.
Vamos para o Lula chamando Gleisi de mulher bonita: qual o contexto? O de dizer que mulheres só servem como enfeites? Que ele esperava que ela de alguma forma usasse a sua beleza para seduzir os líderes do Legislativo? Porque se for isso, realmente temos um problema sério.
Mas esse é o contexto? A própria Ministra veio a público defender o patrão. Disse que não viu nenhum desmerecimento ali, e que não a ofendeu. Claro, fica no ar a ideia de que não é algo que combine mais com discurso público moderno, mas como dizem: é importante acreditar na mulher. Quem poderia se ofender não se ofendeu, mas muita gente resolveu falsificar a assinatura dela numa procuração de ofensa.
Gleisi disse que atos falam mais do que palavras. E na parte dos atos, se você conhece um pouco a história dos dois, sabe que Lula tem sim intimidade com ela para fazer esse tipo de brincadeira, e sabe também que faz tempo que ele demonstra confiar na capacidade técnica e intelectual dela. O cidadão literalmente a colocou numa posição crítica do seu governo mesmo sabendo que ela é impopular com políticos e povão.
Não existe contexto para ver esse machismo todo na frase. Tem, eu sei que tem, mas eu preparei todo o terreno do texto com os exemplos para te preparar para o argumento: é importante deixar o Lula escapar dessa. Não por causa do Lula, mas por causa das relações entre homens e mulheres e o combate eficiente ao machismo danoso.
O presidente está em baixa, com quase metade do povo perpetuamente puto com ele por ter vencido a eleição e uma boa parcela de irritados por causa da inflação dos alimentos. Qualquer coisa que ele falar vai ter o efeito “vento estocado”. Como eu acho que ele é um populista corrupto com tendências autoritárias, não é inerentemente ruim que ele apanhe por essa frase. Até mesmo por causa de toda a conversa de lacração que a esquerda petista empurra, tem graça ver darem chilique em cima dele.
Mas moderação e bom senso devem ser exercitados até quando a vítima é alguém que você não gosta. Eu concordo que machismo é um problema, eu concordo que muitas coisas que falamos sobre mulheres são uma merda, mas nessa vida as coisas têm escala de gravidade. Existem níveis de machismo que a mulher média adulta deveria ser capaz de lidar.
E esse caso é um deles. Uma pessoa mentalmente capaz tem que ter ferramentas para encarar dificuldades sem ter crises de pânico. É mais divertido ver o circo pegar fogo quando é uma pessoa que você não gosta, mas nesse circo vivemos todos nós. É engraçado pegar no pé da Dilma, mas ficou para a história a vitória dos burros sobre quem tinha capacidade de entender o que ela disse.
Um prazer momentâneo em troca de um mundo mais imbecil. A gente precisa ter tolerância pelo menos um, porque tolerância zero está ajudando a empurrar para frente o discurso de ignorantes e histéricos como se fossem válidos. É de emputecer que Lula encha a boca para falar como é progressista e lacrar quando é do seu interesse, mas que na prática seja o brucutu que todos sabemos que é, mas isso não é motivo para você piorar o seu mundo. Não compensa. É dar valor demais para Lulas, Bolsonaros, Dilmas e cia.
Às vezes temos que fazer o papel chato de olhar para uma pessoa incomodada com algo e pedir… menos. Ou mesmo não fingirmos demência e notarmos que estão batendo no Lula não pela gravidade do que foi feito, mas pelo contexto de impopularidade e rivalidade. Só me faltava a direita brasileira dizer que achou horrível alguém falar isso e continuar apoiando o Bolsonaro até a morte.
E sim, eu sei que é incômodo estar junto com os passadores de pano oficiais (e pagos pelo governo) para defender Lula, mas é o exemplo que eu sempre uso: se o Hitler disse que matar é errado, você vai sair matando só para ser contra ele? As ideias e contextos tem que existir independentemente de quem está falando. É perfeitamente possível apontar que a turma da lacração abandona seus ideais na hora de defender seus políticos e celebridades de estimação e ainda sim concordar quando o “crime” da pessoa em questão não é tão sério assim.
Porque tudo isso existe, ao mesmo tempo. Das merdas que Lula fez e faz, essa é das mais inocentes. Não se pode acusar o presidente de não dar confiança para mulheres, mesmo que não siga uma regra mágica de metade a metade. Analise a história dos dois e Gleisi está certa: os atos falam mais que palavras no caso dela. Ele pode brincar sim, é burrice fazer isso da forma extremamente pública como faz, mas o papo não era sobre decoro presidencial, era sobre desmerecer sua ministra como apenas um rostinho bonito. Não é verdade, não tem suporte dos fatos nem faz sentido.
Se eu viro para a Sally e digo que ela trabalha comigo porque é bonita, ela vai rir. Primeiro que não uso a beleza dela no trabalho que é intelectual puro, e segundo porque tem mais de década de exemplos comigo realmente confiando no intelecto dela, ações diárias e consistentes. E Gleisi Hoffmann parece alguém inteligente o suficiente (lembre-se que pessoas inteligentes ainda podem ter opiniões e visões aberrantes para você) para não se morder por isso.
Curioso que muita jornalista e colunista se doeu pesado com essa frase do Lula. Especialmente as que tem alguma fama e aparecem nas telas das pessoas. Será que pegou num nervo? Porque ser bonita ajuda em muita coisa, e uma delas é subir na carreira, com ou sem teste do sofá. Se a pessoa não está muito segura de que o conteúdo do seu crânio é o fator definidor do seu sucesso, esses lembretes de que é possível subir na vida por causa da aparência devem mexer com a confiança.
E aí é mais sobre não querer ouvir coisas incômodas do que necessariamente defender as mulheres. As mulheres competentes com sangue nos olhos como a Gleisi (de novo, pode odiar o que ela defende, mas ela tem fama de conseguir o que quer) tratam a beleza que enxergam nelas como beleza mesmo, não como “vantagem indevida”.
Tem mais sobre quem reclamou do que sobre o reclamado aqui. Como sempre, fica a dica: não morda a isca, o mundo fica melhor quando você sobe sua tolerância e não deixa o quanto você gosta ou desgosta de alguém mexer com sua percepção da realidade.
Na verdade, a Dilma disse que NÂO dá pra estocar vento. É uma besteira também, até porque o pastel está aí para desmentir.
Pegou muito mal, sobretudo por se tratar de alguém que ganhou a alcunha de amante nas planilhas da Odebrecht.