Suspeitos.
Médicos são investigados por dizerem que ‘câncer de mama não existe’ ou que mamografia causaria a doença. As afirmações foram divulgadas durante o Outubro Rosa, mês de conscientização e alerta sobre a importância da prevenção desse tipo de câncer. Lucas Ferreira Mattos, que tem registros em São Paulo e Minas Gerais, é médico com mais de 1,2 milhão de seguidores no Instagram. A outra médica que aparece em vídeos é Lana Tiani Almeida da Silva, inscrita no conselho de medicina do Pará, também sem especialidade registrada. LINK
Como essas pessoas conseguem ter plataforma? Desfavor da Semana.
SALLY
Médicos falando que câncer de mama não existe e que não precisa fazer mamografia… meus amigos, o Brasil não é para amadores.
Hoje é um daqueles raros casos nos quais Somir e eu concordamos no desfavor mas discordamos na argumentação. Eu não concordo com o texto dele, eu acho que tem excelentes médicos compartilhando conteúdo valioso em redes sociais que ajudam a informar a população. Se dedicar a redes sociais de forma educativa, instrutiva e séria não te faz um profissional ruim.
Não dá para dizer que Ana Beatriz Barbosa Silva, Drauzio Varella e tantos outros sejam profissionais do quais você tenha que “fugir”. Eu ficaria honrada em ser atendida por eles. Para mim tem algo bem mais grave e profundo acontecendo, que é o patamar de ignorância que é permitido às pessoas defender publicamente.
“Mas Sally, em todo lugar do mundo tem maluco, em todo lugar do mundo tem negador”. Sim. Mas experimenta deixar uma coisa assim registrada em um vídeo viralizado e me diz se a pessoa continua exercendo medicina tranquilamente depois disso. Me diz se, em um país civilizado, ela não perde sua licença e a maior parte de seus pacientes procura outros médicos.
O problema deixou de ser o absurdo do que se fala/faz faz tempo. O problema é como o Brasil lida com o absurdo. Antes do absurdo e depois do absurdo acontecer.
Para que se chegue ao ponto de dar um diploma a uma pessoa que diz que câncer de mama não existe e que não precisa fazer mamografia, teve muita falha no ensino. Desde o colégio. E não me refiro apenas à parte de transmitir conteúdo, me refiro também à parte de fazer uma peneira. Essa pessoa deveria ter sido reprovada muitas vezes. Nunca lhe deveria ser permitido se formar em medicina.
“Mas Sally, a pessoa não deve ter escrito isso em uma prova”. Vai me desculpar, mas alguém sem um pingo de adequação que é capaz de falar uma bosta dessas em redes sociais certamente deu sinais disso em algum momento. Falhou a peneira educacional.
Felizmente, quando a peneira educacional falha, seja no ensinar, seja no filtrar, ainda existem recursos. O CRM ou CFM tem poder para proibir médicos de continuarem exercendo medicina. O Judiciário pode até ir além.
Mas quase nunca acontece, a prova é a quantidade de médico charlatão que tem no Brasil, desde os ortomoleculares que fazem otário pagar caro por fórmulas com 50 componentes inúteis até homeopatas, receitando água com cheirinho do Muro de Berlim para tratar ansiedade de separação. O Brasil odeia a ciência.
Essas múltiplas falhas (no ensinar, no peneirar e no coibir) já foram percebidas, ainda que de forma meio truncada, pelo brasileiro. A sensação de “pode falar o que você acha não pega nada não” já se instaurou, como bem vimos na pandemia, com hordas de médicos prescrevendo Cloroquina e Ivermectina. E nada vai acontecer. O terraplanismo médico é uma realidade consolidada.
E um país que não foi capaz de tomar medidas preventivas ou coercitivas para conter o início desse surto, provavelmente não será capaz de tomar medidas urgentes, enérgicas e contundentes para cortar o que já se consolidou.
Controlar o conteúdo de redes sociais é uma tarefa muito difícil, quase impossível. E esses profissionais que pisoteiam a medicina sabem disso e exploram essa falha: protegidos pelo excesso de conteúdo vão postando suas merdas e, ao ver que não dá em nada, continuam. Assim, conseguem atrair pessoas vulneráveis, que preferem uma informação mais fácil e agradável do que uma informação verdadeira.
Então, o problema tem duas facetas: que existam médicos que pisoteiam a ciência e que esses médicos tenham voz livremente e alcancem milhões. Hoje, ir ao médico no Brasil é uma grande loteria para a maior parte das pessoas: você pode cair nas mãos de um excelente profissional ou você pode cair nas mãos de quem te afirme que água sanitária cura autismo.
E a maioria das pessoas é vulnerável de por si, além da vulnerabilidade que qualquer doença já geraria. Dificilmente vai saber discernir entre um bom médico e um criminoso de jaleco. Percebem a crueldade da coisa? E é justamente aqui que eu saúdo os bons médicos que, desesperados com essa realidade, tentam passar informação em redes sociais. O Brasil precisa disso. De mim só terão aplausos.
Esse vídeo hediondo dizendo que câncer de mama não existe e desaconselhando mamografia, por exemplo, teve milhões de acessos e, não importa o que seja feito daqui para frente, ele já causou seu estrago.
Para quem não sabe, a mamografia não é um exame gostosinho de se fazer, eles apertam o peito da mulher como um hamburguer na chapa. Muita gente, se puder, vai se apegar a qualquer coisa para evitar. O que de fato já está acontecendo.
Em diversas redes sociais vemos centenas de comentários de pessoas dizendo que não vão mais fazer mamografia, e pior: pessoas já com câncer de mama que estão parando a quimioterapia ao “descobrir” que “câncer de mama não existe”. Ninguém quer fazer quimioterapia, é um dos piores tratamentos que existe. Se a pessoa não estiver muito convicta que é sua única chance, ela provavelmente vai desistir.
Então, não é só pedir punição para quem publicou esse vídeo. O estrago está feito. Mesmo que esses médicos sejam punidos, mesmo que se façam campanhas de informação, essa “verdade” muito mais agradável já entrou na cabeça de muita gente e dificilmente será trocada por outra “verdade” muito mais desagradável: câncer existe, te mata de forma lenta e dolorosa e o tratamento é muito sofrido.
Tem que revisar os filtros que se usam para soltar médico no mercado de trabalho e apertar os filtros punitivos. Não têm nada a ver com redes sociais, regular redes sociais não vai resolver, pois seria impossível fiscalizar e punir a quantidade de conteúdo criminoso colocada no ar diariamente.
Regular redes sociais de forma eficiente é impossível, pois, uma vez liberdade o conteúdo, ele já fez estragos. Tem que focar nos controles preventivos (ensinar e filtrar) e coercivos (punição exemplar para quem faz, perdendo a licença para exercer medicina, para que outros tenham medo de fazer).
A você, querido leitor, a gente deixa aquele conselho recorrente: se proteja, se cuide, se resguarde, pois nem o poder público, os órgãos de classe ou o Judiciário estão conseguindo te proteger. Se informe muito bem antes de ir a um médico e escute várias opiniões antes de começar um tratamento.
Redes sociais são apenas o sintoma. A doença é o Brasil. Melhorem o Brasil.
Para dizer que nesse caso teria que ser via violência física mesmo (o pior é que eu concordo), para dizer que o Brasil está voltando à Idade Média ou ainda para dizer que nunca foi pela ciência já que a ciência continua sendo pisoteada: comente.
SOMIR
Faz tempo que eu estou com isso engasgado, mas não escrevia porque tinha preocupação com as maçãs que não eram podres… mas sabe do que mais? Quanto mais cedo colocar essa ideia no mundo, melhor: quanto mais seguidores na rede social tem o profissional, MENOS você tem que confiar nele.
MENOS. Quem está focado no seu trabalho e em entregar qualidade para os clientes não tem tempo de fazer conteúdo “bombado” na rede social. Confie MENOS no profissional com muitos seguidores, curtidas e alcance em geral. Porque fama e capacidade técnica não são diretamente relacionados. Talvez isso fosse mais realista em tempos passados, mas a rede social mexeu de vez com essa questão.
Conteúdo tecnicamente competente não só é muito difícil de fazer, como dificilmente é divertido ao ponto de engajar a massa. A Sally discordou de mim porque existem exceções, mas eu já tinha preparado o território para o meu argumento nos últimos textos: o conteúdo que você gosta não tem obrigação nenhuma de ser cientificamente preciso. A maioria de nós simplesmente não tem conhecimento de causa suficiente para separar clickbait e conspiração de ciência consolidada.
Sally é uma pessoa que tem interesse genuíno em questões de saúde, ela sabe separar joio de trigo e obviamente acha um absurdo que eu diga que é para confiar MENOS em influencers se tiverem muitos seguidores. Você não é a Sally. Eu não sou a Sally. Você e eu provavelmente temos interesses diferentes e capacidade de reconhecer melhor a qualidade técnica do conteúdo nas áreas relacionadas.
Se você estuda medicina ou realmente se interessa pelo tema, pode ser que nem a Sally e escolher seus comunicadores científicos sem medo. Você estuda medicina ou realmente se interessa pelo tema? Eu não. Eu tenho que usar outros mecanismos para me proteger de medicina merda. Um deles é usar o meu conhecimento de publicidade e produção de conteúdo para redes sociais modernas para ter uma linha base.
E é esse conhecimento que eu estou compartilhando aqui: só alguns poucos seres iluminados nesse mundo conseguem ter carisma, habilidade de comunicação e tempo de bombarem na rede social ao mesmo tempo que mantém experiência e conhecimento no seu trabalho. Se fosse minimamente fácil equilibrar as duas coisas, eu não teria emprego. Não é fácil, ocupa muito tempo, dá muito trabalho para o profissional tocar sua carreira de forma decente e ainda sim conseguir cativar a massa de analfabetos funcionais que é o público tupiniquim.
A média é de pessoas que abandonam a qualidade do seu trabalho para focar em divulgar o trabalho. É por isso que existem tantos casos de pessoas caindo na mão de cirurgiões plásticos que só sabem deformar os outros. Porque eles passam muito tempo fazendo videozinho para rede social prometendo coisas absurdas que encantam o cidadão ignorante médio.
Eu quero que o meu médico não tenha disponibilidade mental de pegar um celular e falar merda para os retardados médios da rede social. Eu quero que ele esteja trabalhando de forma apaixonada em medicina, focado em aprender mais e tratar bem seus pacientes. Esses arrombados que postam dez vídeos por dia fazem o algoritmo feliz, mas de onde eles estão tirando disponibilidade física e mental para esse esforço? Do trabalho!
Tempo é um recurso limitado. É impossível não fazer escolhas sobre onde você aplica o seu. O campo da publicidade só existe porque as pessoas perceberam que não dava para fazer o seu trabalho e o trabalho de divulgação nas mesmas 24 horas do dia. E nem é corporativismo meu por ser publicitário: eu acho bacana quando meus clientes conseguem espremer um tempo da sua agenda para aparecer um pouco e trocar ideias com a agência de publicidade, não é que eu quero que sejam todos ermitões digitais, mas… porra, tem o trabalho deles para fazer também. Eu cobro pelo uso do meu tempo para pensar nisso por eles. Não tem atalho, alguém tem que pagar essas horas de dedicação.
As pessoas entram nessa fantasia que você vai postar um vídeo por semana quando tiver um tempinho sobrando e vai explodir de atenção na rede social, e isso não tem fundamentação nenhuma na realidade. Quer ser popular na rede social? É um emprego. Um emprego que você pode achar bacana ou ridículo, mas é dedicação prioritária do mesmo jeito.
Profissional muito popular na rede social que ainda sim dedica a maior parte do seu tempo em se aperfeiçoar no trabalho que faz e entregar qualidade para seus clientes é um unicórnio. Se achar um, parabéns, mas não é a média. Na média, você confia MENOS em quem tem um milhão de seguidores do que quem tem mil. MENOS.
Nunca é de graça a popularidade, e a desonestidade vai além de trabalhar pouco e se divulgar muito: existem mil maneiras de turbinar o seu alcance comprando seguidores e engajamento, um milhão de seguidores não quer dizer um milhão de pessoas reais que gostam e respeitam o profissional. Custa menos de 100 reais para ter um perfil cheio de seguidores e com muitas curtidas. Não quer dizer nem que a pessoa investiu pesado.
E aqui onde eu finalmente entro na notícia: uma das formas mais eficientes de gerar engajamento na rede social é compartilhar conteúdos absurdos, conspiratórios e provocativos em geral. Quanto mais merda, melhor, estilo Pablo Marçal. Falar uma merda gigantesca como “câncer de mama não existe” é o típico conteúdo bizarro que gera muita atenção. Talvez esses médicos tenham ido longe demais para você e pareçam inofensivos por isso, mas se falarem alguma besteira sutil demais para o seu conhecimento e você não tiver a segunda camada de defesa que é ver se a pessoa tem muitos seguidores e muitas postagens, pode cair em papo furado.
Eu sei que muita gente vai achar que eu sou radical, que estou generalizando demais, mas é acúmulo de conhecimento da minha área com diversos exemplos de péssimos profissionais enganando pessoas com a ilusão de qualidade pela sua popularidade na rede social. Não precisa ficar paranoico e achar que todo mundo está mentindo, nem é esse meu objetivo com o texto, é só para você prestar atenção nessa questão prática: quem passa muito tempo fazendo conteúdo para Instagram e TikTok está indo para a carreira de comunicador. E isso exige um foco totalmente diferente do de acumular experiência e conhecimento aprofundado que profissionais que realmente fazem o trabalho precisam.
Não é para achar que é mentira só porque a pessoa é famosa, é para confiar MENOS quando ouve algo estranho vindo de alguém com muitos seguidores. Infelizmente tanta gente cai nas garras desses irresponsáveis porque o ser humano médio enfiou na cabeça que era para confiar mais…
Fama custa caro, como a pessoa pagou por ela?
Para dizer que eu estou semeando a discórdia, para dizer que achou curioso o mix de duas colunas, ou mesmo para dizer que o câncer foi inventado num laboratório (faz vídeo sobre isso na rede social e você vai ficar popular): comente.
Desfavores relacionados:
Etiquetas: educação, medicina, negacionismo, redes sociais
Ge
Eu fico com uma sensação horrível de angústia, sabe? De perceber que o mundo está cada vez mais involuindo, ao invés de evoluirmos, e tem tanta baboseira sendo dita e espalhada aos quatro cantos, e ainda tem também tanta gente burra que cai fácil nessa…
Sally
É triste. É isso que acontece quando se democratiza conteúdo e voz sem antes educar.
W.O.J.
Sei bem como você se sente, Ge…
Ana
Uma das maiores bostas que estou vendo ultimamente também é no meio de dentistas. Maioria dos dentistas que me consultei ainda têm noção da realidade e não me recomendaram nada sinistro, mas no Youtube mesmo tem algumas frutas podres que “ain canal vai destruir seu corpo”, “tratamento de canal ataca o coração”, “canal não funciona, o certo é arrancar e colocar implante”. Ler os comentários desses vídeos é deprimente, inclusive.
Claro que um tratamento de canal é desagradável, mas ele é necessário sim. Extração dentária para colocar implante é a última solução quando não tem como mais preservar um dente, e às vezes nem isso pode ser feito (depende do que resta do “osso” onde ficava o dente). E é claro que esses dentistas criminosos não recomendam um implante simples, e sim aquele de zircônio, que são os implantes mais caros.
Ge
Que horror ler isso, Ana! Parece que é geral mesmo esse movimento de burrice, mas as vezes, como no caso aí do dentista, não parece ser gratuito, e sim proposital, pra fazer vender mais implantes, enfim.
Wellington Alves
Tem esse ótimo vídeo do embrulha pra viagem sobre médicos influencers:
https://youtu.be/Lr7EW0GtJ8k?si=JHlGfCLo4Eh60lpv
Anônimo
Concordo com Somir. Aliás, a Dra Ana Beatriz Barbosa enfrenta processos de plágio de seus livros (deem um Google e vejam as notícias e processos) e muitas críticas da comunidade científica por banalizar diversos conceitos de psiquiatria. Uma coisa antiética que ela faz é sair distribuindo diagnósticos de psicopatia para os bandidos midiáticos do momento sem nunca ter examinado essas pessoas, apenas pela audiência, pelo corte. Ela também já foi acusada de divulgar pseudociência, especialmente relacionada às bobagens pseudocientíficas da física quântica dos gratiluz. Ela é uma ótima comunicadora, mas se um dia eu precisar de psiquiatra, jamais confiaria nela
Sally
Pelo amor de Deus
Nem vou responder