
Escala 0x7
| Somir | Somir Surtado | 2 comentários em Escala 0x7
Já que escala de trabalho está na boca do povo, pode ser interessante pensar sobre como o trabalho deve mudar no futuro. Começamos um processo irreversível de trocar esforço humano por ferramentas e máquinas… há uns 2 milhões e meio de anos atrás.
Essa é a data estimada da produção das primeiras ferramentas pelos nossos ancestrais. No minuto que um de nossos antepassados resolveu arrancar lascas de uma pedra para deixá-la afiada, começou a era da máquinas. Essas pedras trabalhadas são o registro mais antigo de manipulação do ambiente para criar ferramentas, mas é provável que estivéssemos usando fibras vegetais e madeira muito antes disso. É que ao contrário das pedras, esses materiais degradam e desaparecem rapidamente.
Claro que desde então a gama de ferramentas e máquinas que usamos cresceu imensamente, feitas com materiais mais eficientes e em níveis de complexidade incríveis como o computador ou celular que você usa para ler este texto. Eu começo por esse ângulo porque substituição de esforço de macacos como nós não é uma novidade, não é algo da era dos robôs e da inteligência artificial, é o padrão há mais tempo do que a história escrita.
A fricção entre oferta e demanda sempre esteve lá, a gente pode até puxar exemplos recentes de profissões que desapareceram por causa dos computadores (“computador” era literalmente o nome da profissão que a máquina substituiu) e da internet, mas o processo se repete a cada avanço tecnológico. A arma de fogo acabou com soldados especializados em arco-e-flecha, a eletricidade acabou com os acendedores de lampiões…
Toda substituição é baseada em uma vantagem que a ferramenta ou a máquina entregam além da capacidade do ser humano. Quase sempre é sobre velocidade, padrão de qualidade ou custo de produção. Se algo aparece para substituir um trabalho humano, assim que ele fica melhor nos três quesitos, a profissão praticamente desaparece.
O meu ponto aqui é que não parece existir algum trabalho humano imune à substituição. Desde o trabalho mais braçal ao mais intelectual, o objeto criado para uma função sempre vai ser melhor que um ser generalista como o humano. Se você precisa apertar parafusos, não precisa desenvolver uma maravilha da engenharia como a mão humana, não? O ser humano existe para sobreviver, não para trabalhar. Somos uma coleção de partes e conceitos baseados em redundância e adaptabilidade, não uma para realizar apenas uma função muito bem.
E o que vale para a mão, vale para o cérebro: se você quer diagnosticar doenças, precisa mesmo de uma pessoa inteira no trabalho? A parte da pessoa que está pensando no valor do dólar ou no decote da enfermeira não tem relação nenhuma com a função de analisar padrões de sintomas e fazer uma previsão correta sobre a causa do problema de saúde no paciente.
Somos todos muito substituíveis em nossas funções, não porque nos falta esforço ou aprendizado (embora falte em muita gente), mas porque não somos uma ferramenta ou uma máquina desenvolvidas para aquela função. O robô da fábrica sempre vai ser melhor em colocar uma peça do que um humano. Pode até ter resultados parecidos com alguém muito competente e experiente, mas pode manter esse nível por meses sem parar.
De alguma forma o ser humano vai perder na comparação. Pode ser em resposta rápida, em força, em precisão, em durabilidade, em consistência, em capacidade de memorização… não existe função garantida enquanto houver tecnologia e criatividade na produção de ferramentas e máquinas. Foi curioso ver a IA vir direto na jugular dos criativos, muito antes de incomodar o cidadão que tem trabalhos “robóticos” e repetitivos.
É uma lembrança de que o futuro pode ser previsível em grandes tendências, mas não nos detalhes. O homem das cavernas afiando uma pedra estava começando o processo que desembocou em óculos de realidade virtual, mas evidente que não tinha sequer condições de imaginar isso. Sabemos por milhares de anos experiência que a humanidade vai otimizar o humano fora do funcionamento da sociedade.
Porque ninguém melhor do que nós para saber como somos complicados. Não é eficiente depender de outras pessoas para suas necessidades. Pessoas quebram de formas que ninguém sabe arrumar. A máquina humana, de tão complexa que é para realizar essa infinidade de tarefas, também passa muito do limite de compreensão do cidadão médio quando dá algum defeito.
Tudo o que depende de outro ser humano é menos previsível. A bomba que traz água para o seu encanamento só faz aquilo. Ou ela está funcionando ou não está. Podemos montar toda uma estrutura ao redor dela, porque sempre sabemos o que está acontecendo. Mas quando falamos de política, por exemplo, vai saber o que se passa na cabeça do líder eleito? Ele existe em mil estados paralelos de possibilidades, o que torna o processo frustrante no mundo todo.
Se você pensar direito, vai entender que mesmo nas profissões que parecem mais complicadas de passar para ferramentas e máquinas, como enfermeiros e psicólogos, eventualmente algo focado nisso vai se tornar mais valioso do que uma pessoa. Quando um elemento artificial consegue entregar resultados parecidos, o ser humano volta a ser uma pilha de incertezas; construído para ser hábil em tudo, mas mestre em nada.
Meu ponto aqui é que substituição é algo fundamental na nossa história. Cada passo da espécie é substituindo esforço humano por esforço mecânico. Não precisamos contratar uma pessoa inteira para bater um prego, basta um martelo.
Até por isso eu continuo acreditando que o ser humano precisa começar a transição para uma vida sem trabalho. A sequência lógica que começamos com as primeiras ferramentas de pedra dita que vamos terminar num mundo onde nos eliminamos do trabalho. Nem sei se isso acaba com o capitalismo, porque ainda vai ter interesse de muita gente de ter mais que o outro, mas a tendência é a escala 0x7, onde a maioria de nós simplesmente não é necessária, nem mesmo para se sustentar.
Pode nem ser uma era de abundância, onde todo mundo tem o que quiser, pode ser simplesmente uma era de desimportância: se nossas máquinas estiverem fazendo o suficiente e nenhum vilão decidir bloquear a luz solar, o mundo tem energia e calorias suficientes para muito mais do que a população atual. E meio que da mesma forma como máquinas fizeram o grosso da abolição da escravidão no mundo moderno, elas provavelmente vão fazer o mesmo com a necessidade de trabalhar.
Sim, eu aposto que vamos ter incontáveis profissões inventadas para saciar o senso de propósito do ser humano médio, mas salvo um outro ser humano como última linha de defesa contra defeitos das máquinas, vai ser propósito inventado mesmo.
Pensando por outro ângulo, para visualizar melhor meu ponto: se a humanidade tivesse 8 bilhões de pessoas uns dois séculos atrás, teria trabalho de sobra para todo mundo. Você estaria recebendo vinte cartas por dia com propostas de emprego (ou escravizado se não fosse de família rica), porque para acomodar tanta gente com pouca tecnologia, precisa de muita mão de obra. Só existe fricção entre oferta e demanda de trabalho humano porque as máquinas tiraram bilhões de empregos possíveis nesse tempo.
E vão tirar mais. Ainda somos a melhor máquina conhecida para funções generalistas, mas quanto menos espaço sobrar para um ser que consegue fazer de tudo um pouco, menos demanda pela sua… existência. É objetivamente melhor ter um trator do que ter dez funcionários numa fazenda. Por isso que tanta gente saiu do ambiente rural e veio para as cidades. Não tem demanda por gente lá. E francamente, cada vez menos nas cidades também. Isso vai precisar de resolução.
E eu não vejo como escapar dessa conversa: o que você vai fazer quando não precisarem mais de você? Porque essa é a pergunta do futuro. Com tanto da nossa mente dedicado à questão de sermos necessários num grupo, faz muito sentido ir preparando o povão para não ter o que fazer. A tecnologia só para em caso de desastre como um meteoro ou uma tempestade solar imensa. Extrapolando o futuro a partir do nosso presente, é mais do que necessário achar um jeito de reduzir jornadas de trabalho sem pedir nada em troca, nem mesmo eficiência.
Porque eficiência sobe com nossos substitutos em ferramentas e máquinas. Isso vai acontecer, com ou sem esforço do cidadão médio. A produtividade do funcionário preguiçoso do século XXI é maior do que o mais esforçado dos esforçados em séculos anteriores. O uga-buga que quebrou a primeira pedra para fazer um machado de mão já resolveu o problema da produtividade milhões de anos atrás, só estamos continuando o processo.
Temos que resolver o problema da utilidade das pessoas num mundo em que nem elas precisam mais do próprio trabalho. E eu acho que isso passa muito por aceitar nossa inutilidade como uma vitória. A mentalidade “LinkedIn” de se matar pela empresa não é o caminho, porque ela presume que o ser humano vai se tornar mais importante com o passar dos anos, e não vai. Talvez alguns que estejam lendo este texto já vivam o suficiente para ver o mundo começando essa transição para a aceitação da inutilidade.
Tem algo maior por trás dessas ondas de discussão sobre quanto trabalhamos hoje em dia, uma percepção talvez até inconsciente que a hora está chegando. Que estamos ficando bons demais em passar nossas tarefas para máquinas e ferramentas, e sem nenhum plano B para a humanidade senão uns 10 bilhões de influencers…
Eu acredito que quem estiver mais preparado para ter uma população que não trabalha vai sair na frente. E infelizmente, preparação intelectual e educação são os caminhos mais eficientes para isso. Eu não quero nem imaginar o brasileiro médio sem nada para fazer…
Para dizer que o texto foi preguiçoso, para dizer que os ricos não vão deixar (eles vão continuar sendo ricos e não vão precisar mais de você), ou mesmo para dizer agora entende que é uma pessoa do futuro que nasceu no tempo errado: comente.
Não acredito que chegará o dia em que ninguém mais vá precisar trabalhar. Sempre haverá alguns serviços essenciais, muitos dos quais, braçais, que terão que ser executados por alguém. E, Somir, já assisitiu ao clássico expressionista alemão “Metropolis”? Você não teme que, no futuro, a Humanidade fique dividida como a sociedade apresentada nesse filme? Na obra-prima dirigida por Fritz Lang, anônimos empobrecidos escondidos nos subterrâneos operam as máquinas que fornecem energia pra um mundo altamente automatizado, enquanto uma elite ociosa vive no luxo e na esbórnia. E, a propósito, a história de “Metropolis” é ambientada em… 2026 (!), que para nós, já está logo ali…
Este texto está um dos mais importantíssimos da história tão bacana desta RID, principalmente com os desde anteontem. Hiper semana por aqui!
Agradecido e talvez tão animado, porém não sei muito o que fazer além de geralmente vir a me afastar + d”o brasileiro médio sem nada para fazer”.