Psicopatinha.
Uma tragédia ocorreu na cidade de Nova Fátima, no norte do Paraná, na noite do último domingo (13/10), quando uma criança de 9 anos invadiu um hospital veterinário e matou 23 animais de pequeno porte. A fazendinha do local, que havia sido inaugurada um dia antes, foi alvo de ação brutal, registrada pelas câmeras de segurança. LINK
E não vai acontecer nada, nem com a criança, nem com os pais… e nem com o brasileiro médio, que resolveu só procurar culpados. Desfavor da Semana.
SALLY
Uma criança de nove anos de idade entrou desacompanhada em um hospital veterinário, torturou e matou 23 animais indefesos. O ato foi premeditado, já que ela havia visitado o local no dia anterior. O que pode ser pior do que isso? A forma como o Brasil lidou com isso. É um desfavor com muitas camadas.
Nas camadas mais superficiais, o julgamento raso de redes sociais. Pessoas atribuindo esse tipo de ato a uma criança mal-educada, a seus pais terem votado em X ou em Y e até pessoas invertendo seus papéis típicos: esquerda pedindo pena de morte, direita passando pano e dizendo que eram “só animais” e que não precisava de tanta comoção (vai ter esse tipo de gente aqui nos comentários, com certeza).
É claro que nessas horas aparecem os especialistas leigos, todo mundo é psicólogo e psiquiatra, dando diagnóstico e solução. A culpa é de comer soja, é das vacinas, é falta de porrada na infância, é possessão demoníaca, falta Jesus no lar dessa criança. Tem também os psiquiatras e psicólogos leigos, que, entre outros “diagnósticos” afirmaram que foi uso de drogas, Transtorno Desafiador Opositivo e outras bobagens.
Segundo profissionais que consultei antes de escrever este texto, o diagnóstico mais provável seria um possível Transtorno da Personalidade Antissocial (TPAS), psicopatia para os íntimos. Porém eles mesmos deixaram claro que é um diagnóstico que deve ser feito pessoalmente, dentro de um contexto e que é bem questionável que se possa afirmar com total certeza nessa idade.
Porém, a certeza idiota do brasileiro médio é apenas uma parte do problema. Saindo desse aterro sanitário moral que são as redes sociais, temos questões um pouco mais relevantes, como por exemplo, o que fazer com uma criança que pratica qualquer coisa do tipo. Desculpa a riqueza de detalhes, mas é necessário para meu ponto: a criança não apenas matou, ela também torturou, segundo divulgado, sem qualquer sinal de empatia ou remorso, rindo do sofrimento dos animais enquanto os mutilava lentamente. Como lidar com isso?
Eu sei que o primeiro instinto de muitas pessoas é pedir pena de morte, mas, se queremos falar sério sobre o assunto, precisamos falar dentro da realidade do Brasil: pena de morte não é possível. Nem mesmo uma prisão longa é possível, já que o tempo máximo de encarceramento é de 30 anos e a lei oferece inúmeros subterfúgios para encurtar esse tempo. Não gastem energia discutindo o impossível.
A verdade, senhoras e senhores, é que pela lei brasileira não há nada que se possa fazer contra essa criança criminalmente, pois ela tem menos de 12 anos, nem as penalidades mais brandas de menor infrator ela vai experimentar. Isso passa uma mensagem bem complicada para outras crianças que estão sentindo esse tipo de instinto: pode fazer, nada vai acontecer.
Mas mesmo que essa criança fosse mais velha, mesmo que fosse um adulto, as dificuldades continuam. O sistema penal brasileiro não está preparado para lidar com esse tipo de realidade. É um sistema que pressupõe a ressocialização do preso (mesmo que nunca aconteça e que o Brasil tenha um dos maiores índices de reincidência criminal do mundo).
Até existe, no papel, essa distinção entre o criminoso comum e o criminoso que possui alguma condição/doença mental que não pode ser ressocializado através de pena de reclusão. Nesse caso, a lei não recomenda prisão e sim internação em uma instituição que afaste a pessoa do convívio social, mas a trate de acordo com sua doença. Mas, na prática, isso não está bem implementado e psicopata vai para cela com ladrão de galinha. Isso significa que, cedo ou tarde, psicopata volta às ruas.
Ou seja, vocês estão desamparados de uma proteção estatal eficiente.
Não temos a pretensão de resolver esse problema, nem seria possível que dois Zé Ninguém o fizessem. Porém, não vamos cruzar os braços por causa disso. Alguma coisa sempre dá para fazer. E o que está ao nosso alcance é te avisar dessa falha na lei e te pedir que você se proteja sozinho, da forma que acreditamos ser mais eficiente: a informação.
Pouca gente sabe o que é realmente um psicopata, a maioria está presa a estereótipos de filme americano que geralmente pendem mais para o serial killer do que para o psicopata. Muitos não saberiam reconhecer traços de psicopatia no próprio filho ou no coleguinha dele que vai brincar na sua casa.
Como reconhecer um psicopata deveria ser ensinado nas escolas. Para os alunos. Para os professores. Para todo mundo. E não estamos falando só de risco de vida (a maioria dos psicopatas nunca chega a matar ninguém), estamos falando de inúmeros outros danos físicos, morais e emocionais que eles podem provocar.
Estima-se que entre 1 e 2% da população mundial seja de psicopatas. Pense que duas pessoas em cada cem têm grandes chances de ser. Ao longo da vida, convivemos com muito mais do que cem pessoas, então, é quase certo que vamos acabar esbarrando em um deles. E eles estão por todas as partes: chefes em empresa, funcionários na sua casa, ou até familiares. Não seria bom aprender a reconhecer e, consequentemente, não confiar e manter uma distância saudável?
Se todos soubessem reconhecer traços de psicopatia, empresas contratariam menos psicopatas, pessoas se envolveriam emocionalmente com menos psicopatas, pais poderiam perceber o problema ainda na infância e, se não ajudar, ao menos tentar impedir que causem um mal social contundente e, o mais importante: você poderia proteger melhor seus filhos.
Não precisa virar expert, até porque, para diagnosticar, é necessário ter um diploma e isso não é à toa. Mas seria bom ter uma ideia para, caso exista uma desconfiança, recorrer a um profissional que oriente ou diagnostique. Não demanda muito estudo e pode salvar vidas.
Desde já indicamos o livro “Mentes Perigosas”, da Dra. Ana Beatriz Barbosa Silva como indicamos todos os livros, palestras ou vídeos dela. É uma excelente curadora de conteúdo. Nós mesmos vamos fazer um texto sobre o assunto na semana que vem, obviamente, bem mais superficial.
O brasileiro médio está interessado nisso? Claro que não. O brasileiro médio está interessado em ter razão em redes sociais, em brigar, em polarizar, em ter certezas tiradas da bunda. Mas, felizmente, vocês não são o brasileiro médio. Ao contrário dele, em vez de procurar por detalhes sórdidos desse caso bizarro, vocês vão buscar informação e compreender o problema, para poder lidar melhor com ele, caso um dia cruze suas vidas.
As piores tragédias podem te acrescentar algo de bom se você colocar o foco correto. Nunca se esqueçam disso. Menos foco nos detalhes sórdidos, mais foco no que você pode fazer a respeito.
Para dizer que quer os detalhes sórdidos (então você está no lugar errado), para dizer que isso é coisa de filho de bolsominion (novamente, lugar errado) ou ainda para dizer que isso é coisa de filho de petralha (mais uma vez, lugar errado): comente.
SOMIR
Eu acho que o Brasil já mexeu com a minha cabeça de vez: quando fiquei sabendo sobre o caso, fiquei tentando calcular quanta burrice seria necessária para fazer isso sem nenhum traço de psicopatia. Está virando um hábito: toda vez que vejo o brasileiro médio cometendo esses atos violentos, eu faço esse exercício mental. Quantas premissas básicas de vida em sociedade uma pessoa consegue ignorar por pura estupidez?
Quão inteligente é o nosso pacto social? Digo, o quanto dele vem de instintos e o quanto depende de parar e “fazer as contas” sobre custo e benefício? O cérebro tem várias recompensas internas para comportamentos sociáveis. Ajudar e demonstrar afeto são ações que costumam nos deixar felizes por conta própria. Até mesmo as pessoas mais brutalizadas tem seus momentos agradáveis, o cidadão que matou alguém de forma totalmente desnecessária numa discussão besta de bar com certeza tem alguém na família ou nos amigos que vai dizer que era uma ótima pessoa.
O ponto aqui é que você pode conviver de forma agradável com outras pessoas por puro acaso. Seja por causa dessas recompensas internas para comportamentos sociais positivos, que a pessoa faz sem nem pensar direito; seja por confluência de fatores, às vezes alguém faz algo que ajuda nossos objetivos sem necessariamente querer ajudar.
O brasileiro é um dos povos mais violentos do mundo. E ao mesmo tempo, é considerado um dos mais calorosos. Especialmente em países do norte global, as pessoas ficam até assustadas como o brasileiro é sociável e muitas vezes até afetuoso. O que é claro, não é uma coisa ruim por si só. De todos os problemas que você pode ter, lidar com uma pessoa meio invasiva do seu espaço pessoal e muito focada em agradar com certeza está no fim da fila. Essa parte do brasileiro é no máximo chata.
Só que ela costuma vir com um contraponto, o que cria essa violência toda. O lado mais agradável vem de comportamentos muito instintivos de socialização, o que já começa a nos indicar que tem pouca racionalização nesse processo. Da mesma forma que o brasileiro tende a te tratar como se fosse seu melhor amigo em questão de minutos, a coisa muda de sentido rapidamente se ele for contrariado. Num estalar de dedos, a pessoa que te tratava como se morasse na mesma casa há décadas pode querer literalmente te matar por discordar dela.
E isso vem do mesmo lugar da mente. Assim como comportamentos sociais são baseados em instintos, os antissociais também. Não tinha cálculo na aproximação, não tem cálculo na resolução de conflitos. A pessoa te ama e te odeia com a mesma facilidade, na mesma intensidade, sem fazer nenhuma pausa mental para analisar a situação.
Quem vive cercado de brasileiros acaba se acostumando com isso. Muitos falam da passionalidade latina, mas eu não consigo “desver” o comportamento irracional na base de tudo. Quanto mais você vai conhecendo outros países do mundo, mais vai percebendo que o padrão não é necessariamente latino, mas sim de populações empobrecidas por desigualdade social. Quanto mais tempo você passa ao redor dessa “passionalidade”, mais natural te parecem essas mudanças de personalidade entre social e antissocial.
E é aqui que se cria uma armadilha que nos deixa especialmente vulneráveis aos psicopatas. Psicopatas, como a Sally bem disse, não são apenas serial killers com inteligência acima da média, são um produto natural da humanidade. O psicopata médio tem inteligência média. Se a maioria da população tem 83 pontos de QI, o psicopata médio também. Ele não vai se destacar automaticamente como alguém frio e calculista. Ele não vai dar uma “sensação estranha” em quem está por perto.
Ele é um cidadão médio sem as travas comportamentais que a maioria de nós temos. O problema é que numa sociedade onde as pessoas parecem incentivadas a agir dessa forma intempestiva, até quem não é psicopata age como um de tempos em tempos. O psicopata nunca vai entender por que o que fez é errado, porque literalmente não é na cabeça dele, mas o brasileiro médio “que não leva desaforo para casa” eventualmente entende e até se sente culpado por surtos de violência física ou psicológica.
A ação do psicopata e a ação do brasileiro passional se misturam de tal forma que realmente fica complicado separar os dois senão pelo remorso. E remorso só acontece depois da ação indesejada. No sentido oposto, o psicopata pode ser extremamente sociável quando quer, o brasileiro até quando não quer. Você não vai perceber a diferença quando estiver lidando com uma pessoa se jogando em cima de você para te abraçar ou para te enforcar. Essa é a armadilha da passionalidade.
Todas as sociedades vão ter que lidar com psicopatas, mas algumas vão sofrer mais por terem dificuldade de perceber um deles no meio de um povo escravizado por instintos, onde racionalidade é vista com desconfiança, onde não comprar brigas estúpidas é visto como covardia, onde descontrole emocional é sinônimo de amor… é nesse ambiente que o psicopata mediano se esconde, e o psicopata inteligente faz o que bem entender, normalmente chegando a posições de poder e riqueza.
Por isso eu achei muito útil o ângulo que a Sally sugeriu para falar dessa notícia. Ao invés de discutir em quem os pais votaram, que tal a gente começar a se informar melhor sobre psicopatas? Raramente vamos ter exemplos tão públicos como o da notícia para nos guiar. O psicopata médio se parece demais com o brasileiro médio, e é muito saudável começar a perceber quando a coisa passa do padrão passional irracional do povão e começa a entrar no campo do distúrbio mental.
Num país como esse, é importante saber perceber diferenças sutis, porque o seu vizinho pode agir de forma extremamente parecida com um psicopata, sendo ou não sendo. E por mais que o risco de ser assassinado por alguém muito burro para entender as consequências de seus atos também exista, são pessoas um pouco mais acessíveis para negociar e em último caso manipular.
Eu tenho medo de psicopata e de gente burra quase que na mesma proporção.
Para dizer que vai me matar por não ter gostado do texto, para dizer que me ama incondicionalmente porque gostou de um parágrafo, ou mesmo para dizer que acha mais fácil negociar com psicopata do que com brasileiro médio: comente.
J.M. de S.
Tecnicamente, a tortura de animais é um precursor do TPAS, mas o diagnóstico só é fechado na vida adulta, por conta dos critérios diagnósticos dos Transtornos de Personalidade. Nesses casos, ainda não se conhece solução que não seja o Pedrinho Matador. Porém, desde 2023 ele é Pedrinho Defunto. Aí tem que pagar um Tatá da quimbanda pra encomendar o serviço do Pedrinho Kiumba.
Sally
A Dra. Ana Beatriz Barbosa diz que o diagnóstico pode ser feito na infância, com ressonância magnética funcional, para constatar se tem uma parte do cérebro que está “desligada”. Eu imagino que boa parte da população não tenha acesso a esse exame, mas a parcela com plano de saúde poderia realizá-lo…
Paula
Eu já convivi com duas psicopatas diagnosticadas e eles dão sim sinais reconhecíveis, mas geralmente é o tipo de coisa que você poderia passar como “ah, talvez seja só o jeito dela de ser, eu devo estar exagerando.” O que me fez perceber que uma delas era de fato perigosa e não apenas digna de pena foi justamente crueldade contra animais. Pouco tempo depois disso vir à tona, ela matou uma moça e foi presa. Uma moça com quem tinha feito amizade do mais absoluto nada, com quem não tinha nada em comum, e era bem frágil fisicamente. O fato delas não terem nada em comum inclusive foi explorado como prova da premeditação, então vale a pena prestar atenção em quem tenta virar seu melhor amigo mesmo não tendo nada a ver com você. O melhor é dizer apenas oi e tchau se você for obrigada a conviver, mas desviar sem bater de frente quando a pessoa tenta se aproximar.
E Mentes Perigosas é um livro excelente, a Ana Beatriz Barbosa é maravilhosa.
Sally
Amanhã tem texto para ajudar a reconhecer psicopatas!
Ligia
Eu fiquei espantada com advogado falando, a sério, que a clínica/fazendinha deveria ser responsabilizada por não ter tomado medidas de segurança eficazes. Fui até olhar no IBGE a população da cidade e tive vontade de gritar com esse dotô Leôncio. É uma cidadezinha de 7200 habitantes, quando a dona da clínica achou que precisava fazer mais que um muro e um portão com cadeado? Quando que qualquer pessoa normal prevê que uma criança vai invadir sua clínica e torturar seus coelhinhos?
Tem gente que parece que, se não falar, explode. Aí solta qualquer porcaria.
Sally
Também estou de saco cheio desse “o mundo tem que se adaptar a quem destoa da maioria”.
Felizmente já estou sentindo um movimento rebote das pessoas rejeitando esse tipo de argumento.
De qualquer forma, é o tipo de coisa que talvez a gente pudesse esperar de pais desesperados, mas de um profissional remunerado é muito preocupante. Direito virou abrigo para a escória incompetente da sociedade.
Paula
Caracas, que fala absurda. É quase o mesmo que dizer que mulheres e crianças deveriam se isolar de homens e nunca confiar completamente em nenhum, dadas as estatísticas de violência por parte de parentes e conhecidos.
De fato é preocupante ver um advogado falando isso, dá um desespero ver gente teoricamente bem instruída falando tanta bobagem.
GILCO COLHOS
“De fato é preocupante ver um advogado falando isso, dá um desespero ver gente teoricamente bem instruída falando tanta bobagem.”
Concordo, Paula.
Anônimo
Eu li o Mentes Perigosas há alguns anos para entender os comportamentos de uma pessoa que era próxima. Tem o Personalides Perigosas do Joe Navarro também. Não vou dizer que a pessoa era psicopata mas deu para entender vários comportamentos nocivos e me afastar.
Aliás, eu nunca gostei desse jeito amigão e “entrão” do BM. Do nada vira seu melhor amigo e já quer frequentar sua casa, saber da sua vida, conta segredos que eu não quero saber e te acha chato se vc não faz igual.
Sally
Pois é, como bem disse o Somir, independente de psicopatia, quem do nada vira seu melhor amigo, do nada vira seu pior inimigo. É o outro lado da moeda dessa rapidez e intensidade.