Histórias de Vida – Macaco

Macaco, candidato a vereador em Ferreira Gomes no Amapá

Enivalto nasceu numa comunidade ribeirinha às margens do rio Araguari; o pai pescador, a mãe dona de casa, responsável pela criação de seus oito irmãos. A infância humilde deu poucas possibilidades de estudo, interrompido por necessidade financeira antes mesmo do término do ensino médio. E a família teria sido obrigada a tirar as crianças da escola muito mais cedo se não fosse a intervenção de um benfeitor estrangeiro: o Capitão Hanz.

Dono de uma criação de gado talhada no meio da floresta, claramente ilegal, Capitão Hanz conseguia desviar dos olhos do poder público com uma série de presentes para a população local. A cidade de Ferreira Gomes sequer existia no auge de sua influência, então poucos realmente se importavam com o que acontecia no local. Capitão do quê? Ninguém sabia de verdade, mas o fato de ser alemão e ter vindo para o Brasil depois do final da Segunda Guerra criava algumas teorias entre os mais estudados da região.

Nada que sequer entrasse no radar de Enivalto ou sua família. Para eles, era apenas um gringo estranho que comprava a produção local por um preço inflacionado, e ainda gerava empregos na lida do seu grande rebanho bovino. Uma das excentricidades do Capitão Hanz era a paixão por ter animais selvagens em sua propriedade. O clima amazônico não colaborava, matando boa parte das suas importações. Deixou um legado de girafas, hipopótamos e até mesmo leões enterrados em sua propriedade, todos trazidos ainda filhotes. Não ajudava em nada o desdém pela língua nativa, que falava pouco e em frases curtas, o que frequentemente criava confusões entre os locais contratados para tratar dos animais.

Mas um dos animais que trouxe teve um pouco mais de sorte. Chimpanzés trazidos de climas tropicais africanos tinham a capacidade de se desenvolver na região. Começou com um par, e durante mais de três décadas, trouxe mais meia dúzia para viver em sua propriedade. O primeiro casal, talvez por uma falha de comunicação, conseguiu fugir. O macho se chamava Tarzan, e a fêmea Jane. O povo local nunca percebeu a brincadeira, mas Tarzan e Jane se tornaram celebridades símias na região depois da fuga.

Enivalto e diversos outros jovens locais se divertiam procurando pelos chimpanzés soltos na selva amazônica. Capitão Hanz tinha prometido uma boa soma em dinheiro para quem os trouxesse de volta, mas o que faltava em cultura pop sobrava em sabedoria animal para o povo: ninguém em sã consciência tentaria capturar um chimpanzé adulto, a não ser que quisesse ser enterrado num caixão fechado.

Tarzan e Jane viviam livres, e com o tempo formaram uma relação de confiança com o povo ribeirinho. Era comum que as crianças procurassem pelo casal para oferecer frutas, e muitos adultos se divertiam com a propensão de Tarzan de aceitar uns goles de pinga. Capitão Hanz até tirou a recompensa depois de alguns anos, aceitando que os animais agora faziam parte da população local.

Tarzan e Jane logo deram conta de gerar uma descendente, que as crianças locais chamaram de Xita (os poucos que escreviam, escreviam com X), e curiosamente, por pura coincidência, já que poucos conheciam a história de Tarzan naquela região. Dizem que foi por causa de uma macaca num circo que visitou a capital, essa sim nomeada pela história. Xita herdou muito do pai: a tendência e se aproximar de humanos e principalmente o gosto pelo álcool. Xita era vista frequentemente em bares de beira de estrada, circulando até que alguém oferecesse uma cerveja.

Enivalto era um dos que mais se divertia com o alcoolismo da chimpanzé, com o passar dos anos Xita até aprendera a procurar por ele, sabendo que a chance de se embebedar era maior. Apesar de incentivar um comportamento insalubre, Enivalto era dos mais respeitosos com o bicho. Outros frequentadores dos bares locais perceberam uma oportunidade maior: ensinar Xita a fazer pequenos furtos.

Com o tempo livre que só bêbados profissionais de bares sujos tem, conseguiram fazer a macaca entender que ganharia cerveja se trouxesse coisas brilhantes para os bebuns. O animal até tentou oferecer frutos e outros pequenos animais, mas apenas relógios, joias e eventuais pepitas de ouro roubadas de garimpos ilegais locais rendiam bebida alcoólica.

Numa tarde quente e úmida de verão, Enivalto, agora vivendo em sua própria casa, cuja garagem tinha transformado em oficina mecânica, recebe a visita de um dos jagunços de Capitão Hanz. Amarelo era um homem atarracado, mas conhecido pelo temperamento curto e pistola de cano longo. Sem muita explicação, pede para que Enivalto o acompanhe. Conhecendo Amarelo, que nem a Malária conseguia vencer apesar das dezenas de tentativas, ele obedece sem questionar.

Chegando no casarão do velho alemão, que do alto dos seus 80 anos de idade já não saía mais para interagir com os locais, Enivalto tem várias lembranças da infância, quando ele e vários amigos vinham até a fazenda para ver que animal exótico o gringo tinha trazido dessa vez. As jaulas agora todas vazias, o jardim abandonado e a casa cheia de rachaduras demonstravam a redução do poder e da renda de Capitão Hanz, cortesia do crime organizado que tomou conta da região e escolheu outros para tocar os negócios da cidade.

Lá dentro, é mandado ao quarto onde o velho alemão estava, agora com uma máscara de oxigênio, entrevado numa cama de hospital num quarto sem ar-condicionado e cheiros dos mais diversos, nenhum deles agradável. Hanz demora alguns segundos para perceber a presença de Enivalto, e com alguma dificuldade, retira a máscara.

Ele diz que tem um pedido final, que sua vida estava acabando e sentia isso. Queria ver seus macacos uma última vez. Enivaldo diz que Tarzan e Jane já tinham morrido. Hanz responde algo em alemão. Amarelo diz que viu ele dando cerveja para um macaco, e que sabia que ele tinha como pegar o bicho. Enivaldo tenta explicar que aquela era Xita, e que não ela não viria com ele, só trazia coisas brilhantes, pegava a cerveja e sumia de volta na floresta. Capitão Hanz continua falando em alemão. Amarelo diz que Hanz prometeu deixar o que tinha de herança para ele se pudesse ver os seus macacos de novo, e que ia ficar muito bravo se não conseguisse.

Enivalto entende a indireta, muito direta. Mas reforça que não tinha como pegar um chimpanzé à força. Amarelo diz ter um plano. Enivalto atrairia Xita e daria uma cerveja batizada para o bicho. Quando Xita desmaiasse, eles trariam ela para o alemão, que assinaria o testamento. Enivalto pensou em pedir uma parte, mas… novamente, Amarelo não era do tipo com o qual se negociava.

A noite já caía quando Amarelo e Enivalto se juntaram num bar às margens da estrada, ainda meio vazio. Amarelo joga um líquido estranho num dos copos de cerveja, diz que é algo que usa sempre para “brincar com as moças” e que não mata. Ele sai de perto e fica numa mesa distante, esperando por Xita. A macaca não demora muito. Vem pulando pelas árvores e desce rápido para a mesa afastada com Enivalto. Ela olha ao redor um pouco, abre uma das mãos e deixa cair um brinco prateado na mesa. Enivalto oferece a cerveja. Xita pega o copo, e antes de virar de uma só vez como sempre faz, toma um tapa na mão.

Enivalto tem um ataque de consciência e tem medo de matar Xita com uma dose de algo que nem sabia o que era. Xita consegue tomar um gole, mas o resto cai no chão, assustando a chimpanzé, que volta correndo para dentro da mata. Amarelo chega na hora, com a arma em punho. Os outros bêbados do bar saem correndo.

Amarelo, com a arma na testa de Enivalto, esbraveja de todos os jeitos possíveis. O homem se defende, dizendo que não sabia nem o que era que estava dando para Xita, que nunca fez mal para ninguém. Amarelo se esforça para não puxar o gatilho, mas tem uma outra ideia. E Enivalto estava obrigado a ajudar nessa se não quisesse morrer. Enivalto aceita, e volta para casa ouvindo que seria buscado logo pela manhã.

Enivalto volta para casa, pensando se fugia dali ou não, mas tudo o que tinha estava na cidade. Na manhã seguinte, Amarelo espanca o portão da oficina. Enivalto atende, e logo recebe uma fantasia de gorila comprada por Amarelo na capital. Obrigado a vesti-la imediatamente, é colocado no banco da frente da caminhonete de Amarelo, sofrendo horrores com o calor e o cheiro estranho da fantasia. Ao reclamar do cheiro, Amarelo ri e disse que era usada, ninguém tinha uma nova. Amarelo diz para Enivalto que o alemão não enxergava bem, e que se ele ficasse de longe fazendo macaquices, o velho assinava o documento e estava tudo resolvido.

Mas no meio do caminho, uma comoção na estrada de terra: vários populares se juntavam ao redor de uma macaca Xita claramente descontrolada, mostrando os dentes e avançando para cima de várias pessoas. Amarelo desce do carro, e sem pensar muito já puxa a arma. Enivalto percebe o que vai acontecer e sai correndo para dissuadir o companheiro. Como estava fantasiado, dá um susto terrível nas pessoas próximas, que começam a correr para todos os lados. Xita faz o mesmo, desaparecendo no meio da mata por ver um macaco muito maior que ela. Quando os populares se preparam para começar a atacar Enivalto, Amarelo dá um tiro para cima. O homem percebe que ainda estava com a máscara.

Ao tirar a máscara, os ânimos se acalmam e muitos até começam a rir. O apelido de Macaco pega na hora. E numa comunidade pequena dessas, não demora mais que alguns dias para todos na cidade começarem a chamar Enivalto de Macaco. Não ajuda nada o fato de Enivalto não ter gostado do apelido inicialmente. E menos ainda que colocou de volta a máscara antes de entrar no carro com Amarelo.

Para o azar de ambos, tudo em vão. Capitão Hanz morreu na cama durante a madrugada e a herança nunca chegou as mãos de Amarelo, sendo captada pelo governo na falta de herdeiros naturais. Muitas misturas de índio e alemão andavam pela região, mas nenhuma delas fora reconhecida. Amarelo culpou Macaco pelo fracasso, e o jurou de morte assim que o povo local parasse de falar tanto dele.

Até por isso, mesmo desgostoso com o apelido, Macaco resolveu se candidatar a vereador para ter algum poder e se proteger do jagunço. Se eleito, promete leis mais duras contra tráfico de animais.

Para dizer que essas histórias estão cada vez mais malucas, para dizer que votaria em Macaco, ou mesmo para dizer que eu ofendi o mundo todo: comente.

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