Histórias de Vida – Cacique Pistola

Cacique Pistola, candidato derrotado a vereador em Bom Jardim, Maranhão.

Antonio nascera em Bom Jardim, cidade maranhense nas margens da Floresta Amazônica, numa pequena propriedade rural voltada à subsistência. Os pais, apesar de manterem o sobrenome Guajajara, pouco se importavam com suas raízes indígenas. Mais preocupados em prover para os filhos, mal tinham tempo para se envolver com a cultura ancestral de outros descendentes da tribo.

E foi assim que cresceu, consciente do sobrenome, mas focado nas atividades agropecuárias que mantinham o sustento dos irmãos. Um dos mais velhos, precisou trabalhar para que os irmãos mais novos pudessem ter uma chance de frequentar a escola. Aos 17 anos de idade, finalmente aprendeu a ler, com ajuda de uma irmã mais nova que conseguiu completar o ensino fundamental.

E mesmo com alguma dificuldade, o acesso ao conhecimento mudou sua forma de enxergar o mundo. Em poucos meses, as raízes de seu povo passaram de mero detalhe para uma verdadeira obsessão: ele não era mais um pobre coitado dependente de caridade alheia, era o dono legítimo de uma terra roubada de seus ancestrais.

Em pouco tempo, começava uma transformação com reflexos até em sua aparência: nada mais de imitar os invasores, Antonio não saia mais de casa sem sua pintura tradicional, e quando as constantes chuvas da região não impediam, um pomposo cocar com penas diversas encontradas no chão da selva. A falta de experiência com a confecção do adereço misturava tamanhos e cores incompatíveis, algumas provavelmente vindas de aves nem um pouco regionais como pombos, mas não importava, Antonio andava por aí como se fosse dono de pedaço. O que, segundo o que aprendera, era de fato.

Na época, informação era um recurso limitado. A biblioteca da cidade não passava de um cômodo na escola pública, frequentemente ocupado por mofo e goteiras que deixavam muitas das páginas dos livros enrugadas e difíceis de separar. E numa região tão remota, centenas de quilômetros longe da capital, qualquer livro que viesse entrava na coleção municipal.

A dificuldade causada pelo aprendizado tardio, a seleção limitada da biblioteca e o pouco contato com os outros Guajajaras da região acabaram causando uma certa confusão em Antônio. Muito da história de seu povo ainda vinha da tradição oral, que frequentemente vinha num tronco da língua Tupi-Guarani falada pelos mais velhos, mas não por ele. O que encontrava escrito de verdade nas suas longas sessões de leitura tinha mais relação com os povos indígenas norte-americanos, especialmente os originários dos EUA.

Numa daquelas misturas que só aqueles com muita imaginação e pouca supervisão conseguem fazer, Antonio acabou convencido que seu povo lutou contra caubóis em enormes planícies, montados em cavalos e rodeados por bisões. Frequentemente sonhava acordado em como lutaria contra os tais dos ianques se estivesse lá naquele tempo.

Mas o tempo já tinha passado, agora Antonio tinha que começar tudo de novo. Recuperar a terra e a liberdade originais de sua terra. Sem conversar com os mais velhos, que atribuíam tudo à rebeldia adolescente, começou a se transformar num típico índio norte-americano. A pintura no rosto, o cocar, até mesmo algumas roupas de couro cheias de franjas que vira em fotos e desenhos sobre as tribos do norte.

Para o cidadão médio da região, é como se ele estivesse fazendo uma mistura inusitada da moda de caubói com as raízes locais. Seja como for, Antonio ainda parecia inofensivo para seus vizinhos, apenas um pouco excêntrico. Palavras estranhas e trejeitos desconexos dos indígenas locais demonstravam claramente a confusão sobre as raízes, mas nada que impedisse seu trabalho e um grau básico de socialização.

Decidira que não ia mais se envolver com o homem branco, por mais raro que ainda fosse na sua região. No máximo alguns sulistas aventureiros que apareceram ali para uma criação de gado. E logo eles viraram fonte de incômodo para Antonio, especialmente quando resolviam usar roupas típicas gaúchas em datas comemorativas.

Aqueles homens montados em cavalos com chapéus de caubói diminutos estavam glorificando o massacre do seu povo. E não sabia o motivo, mas também irritava a forma como tinham descaracterizado os bisões que viviam ali desde tempos imemoriais. Os bois que pastoreavam não tinham mais a pelagem magnífica das ilustrações que tanto vira nos livros.

Esses caubóis faziam isso: acabavam com a identidade de tudo da sua terra. Nunca tinha visto cavalos correndo livres, os bisões domesticados até perder sua aparência original. Pior, até seu povo ficara estranho: os poucos que via com pinturas pareciam estranhos, nada de tendas, cachimbos e tudo mais que vira na história verdadeira da sua gente.

Talvez tudo pudesse ser evitado com uma conversa, mas a volúpia da juventude se impôs: Antonio não ia mais aceitar o massacre de uma cultura. Os caubóis devolveriam o que roubaram. Por semanas, observou o movimento da criação de gado dos gaúchos. Não que fosse discreto com o cocar desalinhado e a pintura facial vermelha brilhante, mas não levantou muitas suspeitas: o comportamento estranho do rapaz já era conhecido na cidade.

Na hora certa, ativou seu plano: apenas uma cerca separava a criação de gado da entrada da floresta fechada. E era só durante a tarde que os caubóis vinham cercar os bois para trazer de volta para o confinamento. Antonio fez uma abertura na cerca durante a madrugada e esperou até os bois virem pastar na parte mais afastada da sede. Correu ao redor dos animais, criando um pânico bovino que os direcionou rumo à falha na cerca. Os animais se embrenharam selva adentro em questão de minutos.

Sentindo-se ousado, Antonio aproveitou a distração dos gaúchos para abrir o cercado dos cavalos e fazer o mesmo, esperando que os animais voltassem ao seu habitat natural. Sucesso. Quando ouviu um grito dos donos da terra, correu como o vento cerca afora. Perseguido por cinco homens desesperados pela perda dos animais, usou seu conhecimento da região para se posicionar de forma vantajosa. Quando um dos gaúchos se distraiu com um dos bois no meio da floresta, Antonio saiu do meio da vegetação, e num movimento rápido, tomou a pistola das mãos do homem.

O homem levantou as mãos e começou a recuar. Antonio apontou a arma. Ele nem sabia se sabia atirar de verdade, mas vendeu bem a intenção de apertar o gatilho. O gaúcho correu dali. Sem intenção de serem alvejados pelo indígena com fama de maluco, os homens saíram, um a um, da região onde Antonio estaria.

Nos dias seguintes, jagunços, policiais e até alguns funcionários da Funai entraram na floresta à procura de Antonio. O homem percebeu que a ousadia dos seus perseguidores aumentava, e resolveu dar alguns disparos para o ar para convencer os locais do perigo de vir tentar resgatar os animais. A história começou a se espalhar na região.

E algumas pessoas, mesmo sem entender exatamente o que Antonio queria de verdade, começaram a simpatizar com o índio enfrentando os pecuaristas locais. A verdade é que os forasteiros haviam incomodado alguns políticos locais que tentavam grilar aquelas terras antes da compra. A polícia parou de se preocupar, o governo local também. Os gaúchos resolveram aceitar a perda e voltaram para sua terra natal.

Antonio, agora certo de um propósito de vida de recuperar os bisões e os cavalos selvagens originais da sua terra, começou uma vida no meio da mata. A história do índio armado que protegia a mata chegou aos ouvidos de lideranças indígenas regionais, e os Guajajara, apesar da surpresa com a forma como ele exercia sua cultura, acabaram simpatizando com a causa.

As balas tinham acabado há meses, mas Antonio continuava protegendo o gado e os cavalos soltos na mata, que deram seu jeito de se adaptar ao ambiente e até começaram a se reproduzir de forma natural. Ele sobrevivia na floresta com ajuda dos Guajajaras, que ensinaram para ele um pouco mais sobre a verdadeira cultura do povo, inclusive várias frases e expressões da sua língua. E claro, traziam comida para complementar sua dieta e remédios quando necessário.

Antonio passou dez anos na floresta. O nome que bolara, Bisão-Livre, não pegou nem entre os mais próximos da tribo, precisou de um pouco de convencimento para entender que estava bebendo da fonte errada de cultura nativa, mas eventualmente adaptou-se à cultura da qual realmente vinha. O nome que pegou foi o que os pecuaristas e fazendeiros da região o chamavam: Cacique Pistola. Alguém que deveria ser evitado, porque era armado e perigoso, mas também porque daria uma confusão enorme com as tribos locais e até mesmo a Funai.

Um deputado local conseguiu passar um projeto de lei criando uma área de proteção na região onde viviam os cavalos e bois, agora selvagens. Mesmo desconfiado, Cacique Pistola aceitou se afastar aos poucos da proteção da região. A pistola tomada do gaúcho já estava enferrujada por falta de uso e a expansão da cidade se deu na direção oposta à que protegia, retirando até mesmo incentivos financeiros em ocupar a terra que defendeu por tantos anos.

Foi reintroduzido à população local com ajuda de parentes e indigenistas, e mesmo que de tempos em tempos ainda regrida para comportamentos baseados em cultura indígena norte-americana, não é mais o elemento estranho na cidade. Agora ele trabalha como guia e ajudante de uma equipe da Funai, além de outros bicos que encontra aqui e acolá.

Convencido por um dos amigos que fizera nos anos de mata, decidiu se candidatar a vereador, apostando que seu histórico seria suficiente para convencer os locais a privilegiar quem lutava pela terra ancestral. Infelizmente, os produtores rurais locais fizeram uma campanha para sujar sua imagem e até ameaçaram seus trabalhadores caso votassem naquele “maluco da floresta”.

Não foi dessa vez. Apesar de uma votação razoável de 295, não foi o suficiente para ser eleito. Mas enquanto os bisões da floresta estiverem vivos e livres, nunca será derrotado.

Para dizer que votaria nele, para dizer que educação é tudo, ou mesmo para dizer que imaginou ele cumprimentando com “Hau!”: comente.

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