Escalada mentirosa.
A maluquice da vez entre os trumpistas nos EUA é dizer que Biden e cia. estão mandando furacões para os estados com maioria republicana para (de alguma forma) aumentar as chances de Kamala Harris ganhar a eleição. Acredito que os nossos leitores tenham a capacidade de reconhecer a maluquice dessa afirmação, mesmo assim eu acho interessante falar sobre os motivos pelos quais isso é… maluco. Existe um problema de escala na mente humana média.
Em comparação com o planeta, somos minúsculos. Em altura, peso e alcance dos sentidos. A Terra é tão imensa que mesmo sendo redonda, nos parece bem plana. A vida se passa num plano bem limitado pelo nosso tamanho, especialmente numa era onde o mundo é visto pela diminuta tela de um smartphone.
E isso mexe com o senso de escala do cidadão moderno. Na antiguidade as pessoas podiam ter menos informações e imagens sobre o planeta, mas sua experiência era toda ao vivo. A mente de quem vive no século XXI tem a imagem do planeta todo, com países e continentes formatados na nossa memória.
Então, mesmo sem querer fazer essa confusão, fazemos: a imagem do planeta contido num pedaço de papel ou tela confunde a verdadeira escala das coisas. Se você quiser discutir a tecnologia de criar e/ou direcionar furacões, parece algo muito mais realista. Será que o governo tem tecnologias de interferir no clima? Será que países como os EUA escondem suas verdadeiras capacidades? Não existe uma tecnologia que faz aparecerem nuvens carregadas em céus limpos?
Sim, sim e sim. É possível interferir no clima, quase todos os países mais poderosos tem tecnologias escondidas e não é mais novidade usar aviões para despejar substâncias nos céus e forçar uma chuva. Se a sua conversa sobre a lógica da acusação de Trump e cia. sobre manipulação de furacões ficar nesse campo, quase todo mundo que não tem conhecimento profundo sobre física, química e tecnologia de ponta vai ficar com a pulga atrás da orelha.
Mas se você começar a pensar na escala de um furacão, percebe que não faz sentido. Você sabe que a Flórida, por exemplo, é um lugar muito grande na prática. Mas toda a informação que recebe é distorcida pela representação do local e do furacão através de gráficos e fotos de satélite. O furacão Milton ocupava uma área de centenas de quilômetros. Ele “ocupou” um estado inteiro.
Para influenciar os ventos e precipitação numa área tão grande, vocês conseguem imaginar quanta energia é necessária? Quando o próprio Trump falou que estava pensando em jogar bombas atômicas no meio de furacões para dissipá-los, além dos problemas óbvios com a ideia, tinha também a inutilidade: é que nem jogar um estalinho na frente de uma turbina de avião e esperar que a explosão mude a direção do ar expelido por ela…
O planeta Terra é muito grande e o clima é algo muito poderoso. Ele é gerado muito por conta do aquecimento da superfície e da atmosfera pelo Sol, que coloca uma quantidade absurda de energia na nossa direção a cada dia. Toda nossa produção de energia somada não dá uma fração de fração do que o Sol coloca no planeta.
Não precisa achar nada sobre as pessoas no poder ou nossa tecnologia, basta perceber que se você não for o Sol, não tem energia suficiente para fazer quase nada que impacte de verdade o planeta. O aquecimento global tem uma mão humana, eventualmente pode deixar a vida para nós muito ruim, mas a Terra nem está pensando em ligar o ar-condicionado ainda.
É importante ter noção do tamanho das coisas, ainda mais quando as coisas passam essa ilusão de miniaturização tecnológica. Somos formigas tentando empurrar um ônibus quando falamos de processos globais como o clima. A teoria da conspiração (qualquer uma) provavelmente está errada por alguma questão de escala.
Não se move furacão, não se cala milhares de pessoas, não se esconde o formato do planeta… toda vez que você estiver diante de alguma afirmação grandiosa, tem que pensar em como fazer essa coisa grandiosa. Motivos a gente inventa em uma fração de segundos, tecnologia a gente pode imaginar livremente, mas escala é algo óbvio.
Como o macaco pelado vai mexer na direção de uma tempestade que ocupa centenas e centenas de quilômetros? Tem energia de vento lá dentro suficiente para fazer carros voarem como folhas. O que possivelmente poderia ser feito para pegar um furacão e mudar ele de direção? O mundo não funciona por mágica, a natureza usa uma quantidade de energia monstruosa para gerar coisas como ventos, vulcões e terremotos. Até por isso, quando acontece um fenômeno desses, basta a nós sair de perto ou contar com a sorte.
Se qualquer entidade desse planeta tivesse algo minimamente capaz de interferir na rota de um furacão, já teria poder suficiente para entrar no Kremlin, dar um tapa na cara do Putin e fazer ele agradecer o presente. Todo o nosso arsenal nuclear é uma piada perto de quanta energia um processo natural desses consegue mover.
Depois de ler esse texto é claro que você vai revirar os olhos e dizer que é tudo óbvio, mas será que é enquanto não estamos pensando nisso ativamente? Não é o tipo de coisa que costuma deixar o ser humano médio feliz de pensar, no seu tamanho minúsculo e sua incapacidade de enfrentar a natureza. Para muita gente é agradável achar que uma entidade poderosa consegue fazer algo assim, porque cria poder humano por procuração.
Mesmo que você não faça parte do grupo maligno superpoderoso, compartilha com eles a humanidade. E se eles podem fazer isso, de uma certa forma você também pode. É a ilusão de controle influenciando a visão da realidade. De acordo com seu estado mental, pode ser melhor achar que o governo americano consegue manipular furacões do que lidar com a dura realidade que somos grãos de poeira nas costas de um elefante.
E que o planeta Terra pode ficar inabitável para gente sem nem mudar muito as cores vistas do espaço. A gente vive numa era minúscula da história do planeta com condições favoráveis, você morreria sufocado, congelado ou queimado na hora se caísse em basicamente qualquer outra era que não as mais recentes.
A minha ideia aqui é que temos um problema técnico mesmo de não entender a escala de coisas muito maiores que nossa visão, problema exacerbado pela forma como consumimos conteúdo, criando uma ilusão de que as coisas realmente cabem na palma da nossa mão; mas também que no fundo sabemos como somos minúsculos e frágeis, e muitas vezes é mais reconfortante acreditar em conspirações grandiosas, porque isso parece equilibrar um pouco mais o jogo.
Ainda mais nos últimos anos, com os avisos constantes sobre mudanças climáticas sobre as quais temos pouco controle, seja pela escala, seja por interesse genuíno em fazer alguma coisa. Eu vejo uma combinação especial de fatores para essa era de obscurantismo. A tal da “ansiedade climática” (já deram nome) com a ilusão de controle gerada pela nossa tecnologia portátil.
No final do século retrasado, teve uma onda parecida em relação ao paranormal. Muita da nossa cultura coletiva sobre fantasmas e similares vem da explosão desse interesse na Europa e nos EUA naquela época. Tempestade perfeita de começo do processo científico moderno revelando coisas “invisíveis” todos os dias para as pessoas e acúmulo de gente em cidades precisando formar laços por interesse ao invés de laços por atividades compartilhadas.
Normalmente a gente coloca a crença em teorias de conspiração mirabolantes em ignorância, e sim, tem uma boa dose de desconhecimento científico nisso, mas também tem um espírito do tempo no começo do século XXI empurrando mais gente para esse tipo de pensamento. A escala na qual vemos o mundo não faz sentido para o cérebro do macaco, por isso superestimamos nossa capacidade de impactar o mundo. A tecnologia que deixou muitos antepassados vendo fantasmas onde eles não estavam está nos fazendo ver conspirações onde elas não estão.
E é educação científica sobre o que faz sentido ou não faz sentido nas interações tecnológicas com o planeta que vai (eventualmente) nos tirar dessa fase. Não sei quanto tempo vai durar, mas eu sei que você consegue ajudar muita gente indo direto para o argumento da escala: não adianta dizer que não faz sentido usar “antenas Haarp” para criar tempestades e terremotos de um ponto de vista político, temos que repetir a informação que um furacão tem mais energia que todas as nossas bombas e explosivos combinados, que é maior que quase todos os países do mundo, que aquele desenho na tela não é o tamanho da coisa de verdade.
Óbvio, mas muita gente não percebe. Ultimamente eu tento discutir conspirações com escala, se existe jeito real de fazer algo tão gigantesco, e eu percebi que na maioria dos casos acende alguma coisa na cabeça da pessoa que ela não consegue mais apagar. Mesmo que não funcione na hora, tem algo ali que corrói a base da crença conspiratória.
Para dizer que a escala da minha chatice é infinita, para dizer que só eu para escrever parágrafos sobre como um furacão é grande, ou mesmo para dizer que já desistiu de argumentar faz tempo: comente.
GILCO COLHOS
É incrível como tanta gente se aferra aos maiores acintes à inteligência humana baseando-se apenas em viés ideológico e em besteiras ditas por “deuses com pés de barro”! Haja preto-no branco puro e simples… Haja falta de nuance… Haja polarização… Haja falta de noção! Nas cabecinhas maniqueístas dessa cambada de imbecis – dos dois lados – , tudo é ridiculamente simplificado e parece que a coisa funciona assim: “se confirma o que eu já ‘penso’, eu defendo com unhas e dentes; caso contrário, ataco de todas as formas e desejo o seu extermínio”.
Anônimo
Se a moda pega, vão dizer que o Marçal encomendou essa última tempestade em SP que deixou as pessoas sem luz. Ainda tem gente que defende a privatização, que se não der certo corta a concessão, só papo furado, essa Enel é uma desgraça, muito pior que a Light no RJ
Anônimo
Trumpão, manda frio aqui pro Rio de Janeiro que tá um calor do inferno!
Torpe
Está esquecendo de algo humano mais devastador e poderoso que um furacão: nossa estupidez.
Ok, o momento “eu tenho 15 anos e isso é profundo” acabou.