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Combatendo desinformação.

Outro dia desses fiquei sabendo sobre uma comoção na comunidade terraplanista: uma pessoa se prontificou a pagar para um deles ir até a Antártida e fazer um experimento que provaria de uma vez por todas se o planeta é plano, como eles dizem. A viagem nem aconteceu ainda, mas já conseguiu explicar muita coisa sobre o movimento.

Um pastor americano resolveu criar um experimento, pagando do próprio bolso para levar terraplanistas até o extremo sul do planeta para que verificassem com os próprios olhos o fenômeno do “Sol da meia noite”. A lógica é a seguinte: como o planeta é uma esfera, de acordo com a estação do ano, o Sol não se põe na proximidade dos polos. Você tem dias com 24 horas de luz solar.

No modelo normal de planeta, tudo certo com isso. Mas para quem acredita que o planeta é um disco estático e o sol é uma pequena bola luminosa pouco acima do chão, o polo norte é o centro de tudo e o polo sul na verdade é uma enorme parede de gelo nas extremidades.

Tanto que era um argumento comum dos terraplanistas: segundo eles era impossível que o Sol continuasse visível por um dia inteiro na Antártida. Existem vários registros de pessoas famosas nessa comunidade dizendo que era só viajar até lá e provar que o planeta era plano ao ver o Sol se pondo no verão. E esse experimento sempre foi muito bem aceito pelo conhecimento científico vigente: de fato se o Sol descesse abaixo do horizonte nessas condições, o planeta não poderia ser um globo.

Parecia o experimento perfeito. Ambos os lados concordavam que bastava ir até o continente mais ao sul do mundo durante o verão e filmar o céu por 24 horas para resolver toda a questão. O cidadão que se prontificou a pagar pela viagem chamou várias “celebridades” do terraplanismo e vários comunicadores científicos famosos por argumentar contra o terraplanismo.

O que aconteceu a seguir foi um show de horrores. Os terraplanistas que tinham gravado em vídeo o argumento que esse experimento de fato resolveria a questão foram chamados, um a um. E um a um, começaram a arranjar mais e mais problemas. Alguns simplesmente negaram a viagem grátis, dizendo que obviamente era um plano da NASA para matá-los quando estivessem longe de tudo.

O que, dentro da lógica deles, até que tem sinergia. Pelo menos é loucura consistente: eu acredito de coração que um terraplanista teria esse tipo de desconfiança, é maluquice verdadeira e a pessoa fica bem definida pelo que é. O interessante foi a reação de quem não estava nesse nível, os terraplanistas que tentavam passar algum semblante de racionalidade, para esses ficava meio feio dizer que não iriam porque os illuminati, globalistas ou judeus queriam uma chance de ficarem sozinhos com eles.

Então, começou uma divisão na comunidade. Primeiro, os terraplanistas convidados começaram a colocar mais e mais condições para aceitar uma viagem grátis até a Antártida. Quase todos disseram que precisavam receber mais dinheiro para pagar as despesas, que só pagar a viagem não cobriria seus gastos, que não queriam ir sozinhos… e quando o cidadão que propôs o experimento perguntava quanto dinheiro precisariam então, todos deram valores absurdos. O engraçado é que o proponente do experimento topou todos os valores e condições bizarras deles.

Sabe quando você não quer fazer uma coisa e coloca um preço exagerado para cortar o outro sem negar na cara dura? Pois é. Não contavam que o pastor americano tivesse como pagar por isso. Quando começou a ficar claro que não escapariam pela via das exigências excessivas, a coisa ficou mais maluca ainda.

Ah, o experimento também contaria com comunicadores científicos famosos no YouTube e outras redes sociais, certo? O primeiro que foi convidado aceitou na hora e disse que cobria o resto das despesas sozinho. Os outros escolhidos que não ganharam a viagem grátis trataram de levantar o dinheiro sozinhos e disseram que iriam também. Em questão de dias, o time “terra redonda” estava completo sem nenhuma dificuldade. Só aceitaram e começaram o preparativos.

O time “terra plana”, no entanto, continuava vazio. Os que não correram na hora chamando um fuckin’ pastor protestante de enviado do demônio ou assassino da NASA, inventaram todo tipo de condição para aceitar, e quando tinham as condições cobertas, criavam novas, e novas…

Na comunidade terraplanista, assustadoramente grande especialmente nos EUA, alguns já começaram a dizer que na verdade esse experimento não era suficiente para descreditar a teoria da terra plana. Criaram novos modelos de como o Sol poderia ficar no céu o dia todo com o planeta sendo um disco. Ao mesmo tempo, outra parte começou a explicar para o seu público como a NASA tinha equipamentos que poderiam simular a luz do Sol, e que obviamente usariam eles para enganar os terraplanistas lá na Antártida.

Mas alguns dos terraplanistas convidados pelo experimento estavam ficando sem desculpas que achavam razoáveis para não ir. Dois deles, com plateias numerosas, pareciam cada vez mais tentados a ir. E por não se negarem categoricamente a ir fazer o experimento que poderia resolver de uma vez por todas a questão, começaram a ser expulsos da comunidade terraplanista.

Sim, pessoas que passaram anos explicando para seu público que a Terra era plana foram abandonados pela comunidade por considerarem a possibilidade de fazer o experimento. Foram taxados de agentes do governo infiltrados por ousarem ir até a Antártida confirmar uma teoria usada por virtualmente todos os terraplanistas modernos. Não só a comunidade abandonou o argumento assim que percebeu que ele seria testado, como abandonou as pessoas que pareciam dispostas a descobrir a verdade.

Em tese, a viagem aconteceria em dezembro desse ano, o pessoal da terra redonda já está todo confirmado e financiado, mas nenhum dos terraplanistas está. Uma mulher terraplanista disse que iria, mas era uma meio aleatória que nem tinha seguidores, os outros dois que tinham plateia ainda não confirmaram, com a maioria das pessoas achando que eles vão pular fora no último minuto. Ou seja: os terraplanistas já decidiram que esse experimento não serve para nada, e já chutaram do ninho qualquer pessoa que ainda acredita na validade dele.

Se a viagem acontecer e filmarem o Sol da meia noite como já se filmou inúmeras vezes antes, não vai convencer NENHUM terraplanista. Talvez a moça que topou ir diga que se convenceu para ganhar seguidores do povo da ciência, mas ela não tinha nada a perder, só ganhou uma viagem grátis para ver a Antártida e uns pinguins.

E para quem já sabe que a Terra é redonda, o experimento é inútil. Talvez gere umas imagens bonitas do Sol dançando no horizonte, mas não adiciona nenhum conhecimento novo. Quem deveria aprender alguma coisa com a viagem já decidiu que não vai aprender nada.

É assustador e fascinante como informação não combate desinformação. Não sem o fator psicológico (e econômico) da coisa. Acreditar em algo cientificamente errado é vantajoso para essas pessoas, e mesmo os que não ganham dinheiro com doações e vendas de conteúdo terraplanista ainda tem uma vantagem pessoal em se sentirem mais inteligentes e mais conectados com outras pessoas defendendo o terraplanismo.

Não existe prova científica que mude isso. O valor percebido de ser terraplanista não tem nada a ver com estar certo, está com o que vem a partir da crença. Meio como religião (e acredito que não seja surpresa para ninguém que virtualmente todos os terraplanistas sejam cristãos), informação sobre conhecimento científico não é o que tapa o buraco.

Desde os antivacinas até as velhas que acampam na frente do quartel, é todo um povo que provavelmente quer mais a comunidade do que qualquer outro resultado prático das suas causas. Os terraplanistas viram uma ameaça à comunidade que criaram e agiram de acordo para eliminar o perigo. Eu imagino que a única forma de combater esse tipo de crença danosa para a sociedade seja atacar direto na fonte: conexão humana.

Tem quem queira essa conexão para ganhar dinheiro, poder, status… tem quem queira apenas um lugar para ir e conversar com gente parecida. Gente com esse tipo de crença pode ser perigosa, podem se radicalizar e partir para violência, mas isso tem muito mais cara de quem está protegendo sua tribo do que protegendo uma ideia.

O quanto um terraplanista bem inserido na comunidade perderia de valor próprio e socialização se perdesse essa crença? Quanto custa enxergar o formato do planeta? Quem acredita em bobagens conspiratórias do tipo tem um investimento social pesado que fórmula matemática ou evidência experimental jamais poderiam compensar. Conhecimento perde para socialização na escala de valor da maioria das pessoas. E eu nem acho que seja imune a isso, por mais curiosidade e interesse sobre ciência que tenha.

Essas coisas agem na gente numa camada mais básica que a racionalidade. É fácil ser incoerente no racional se a recompensa é se sentir parte de uma comunidade. Aliás, pensa bem: é uma delícia encontrar gente que pensa parecido com você e conversar horas sobre temas que interessam o grupo. Muitas vezes a parte mais divertida de aprender é compartilhar o aprendizado com o outro. O próprio Desfavor não teria graça sem uma comunidade. Aposto sem medo de perder que só estamos aqui há tantos anos porque mesmo na pior das hipóteses, Sally e eu ainda achamos graça de compartilhar conhecimento mesmo que entre nós dois.

Texto que vai dar zero comentários, mas que interessa o outro? Vale. O social é muito pesado na escala de prioridades humanas, inclusive na parte de aprender e compartilhar. Pode ser numa escala pequena como dois coautores de um blog, média como ter uma plateia de nicho como o Desfavor ou boa parte dos influencers com um pouco de cérebro por aí, pode ser numa escala global de receber atenção por algo que estudou profundamente e virou notícia.

Não é obrigação da ciência criar senso de comunidade sobre o que estuda, obrigação é seguir método científico para oferecer conhecimento comprovável e replicável, mas para que a ciência combata desinformação, vai precisar de um senso de comunidade muito maior. Tem que ter alternativa ao ambiente viciante de comunidade e aceitação dos terraplanistas, antivacinas, etc. Se você começar a falar sobre um desses temas pela ótica deles nas redes sociais, vai tomar pedrada de alguns, mas vai receber um amor e aceitação incríveis dos que já estão na comunidade.

Imagina só, mudar uma opinião sua e ganhar um monte de aliados instantâneos? Gente que vai demonstrar felicidade verdadeira de te aceitar num grupo, que vai te encher de atenção, que vai te dar objetivos do que fazer e te recompensar por isso? A verdade é que é muito mais gostoso ser terraplanista do que ser “normal”. É claro que eles não querem lidar com experimentos e fatos que possam mudar sua crença, quem vai querer jogar fora uma comunidade de reforço puramente positivo nos dias de hoje?

Se mil pessoas te chamarem de imbecil e dez estiverem segurando sua mão e dizendo que estão juntas com você, vale a pena. Para um macaco pelado, compensa. E ninguém é imune a isso, acho que nem psicopatas, porque ter aliados é uma vantagem prática muito maior que estar… certo.

Pode parecer frescura o que eu vou dizer, mas eu realmente acredito nisso: quem vai combater desinformação são comunidades amorosas de pessoas que compartilham informação de qualidade. O problema da desinformação tem raiz social, não técnica. Nem educação consegue resolver esse problema (boa parte dos terraplanistas estão em países ricos e desenvolvidos), o ângulo de resposta tem que ser igualmente social.

Não é uma competição de quem está mais certo sobre o formato do planeta ou qualquer outra questão científica, é uma competição sobre qual comunidade traz mais felicidade para a pessoa. Com tanta gente vivendo em cidades onde mal se conhece o vizinho, tem um vácuo de socialização querendo ser preenchido. Desinformação é um atalho assustadoramente eficiente para gerar comunidades emocionalmente saudáveis. Sério, emocionalmente saudáveis: ninguém fica bem da cabeça no tiroteio de negatividade da rede social normal, a gente precisa conversar com gente que pensa parecido para estabilizar nossa visão de mundo, o que ajuda a reduzir ansiedade e insegurança.

Eu sou nerd, eu gosto de conversar com nerds, mas somos uns escrotinhos que se divertem até demais corrigindo os outros. Se alguém aparece dizendo que tem interesse por ciência e diz alguma bobagem (e Gezuiz me livre se for mulher), esmagamos a pessoa debaixo da burrice percebida dela. Se essa pessoa disser uma bobagem vagamente compatível com terraplanismo ou antivacina, as comunidades vão pegar essa pessoa pela mão, dizer que ela é inteligente, querida, importante e oferecer um lugar na mesa com eles.

A desinformação é uma máquina de atrair gente, a informação é cheia de obstáculos. Porque sim, é mais difícil viver no mundo da informação pelo trabalho extra de estudar e proteger conhecimento consolidado de imaginação; mas também porque não existe um esforço consciente de tornar a comunidade um lugar agradável de se estar. A ciência precisa disso? Não, não precisa. O combate à desinformação precisa? Sim, e muito.

Como resolver isso? Bom, eu não consigo controlar o mundo, só consigo controlar o meu comportamento. O que eu tento (e nem sempre consigo) é controlar o grau de deboche e estresse com quem repete desinformação. Não sei se vai dar certo, mas acho que vale a tentativa. Porque claramente tentar convencer alguém investido emocionalmente na desinformação com fatos e lógica não está funcionando.

Talvez dizer para ficar que tem bolo ajude.

Para dizer que não consegue não ficar puto(a) da vida, para dizer que só a violência resolve, ou mesmo para dizer que o bolo é uma mentira: comente.

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ciência, desinformação, sociedade, terra plana

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