A casa da mentira.

Que o mundo é cheio de mentiras, Sally e Somir não discutem; só que muitas delas são passadas de pais para filhos, e nessas eles discordam de verdade sobre qual é mais danosa. Os impopulares passam a informação.

Tema de hoje: qual a pior mentira que os pais contam para os filhos?

SOMIR

Deuses. Seja lá a religião ou o lugar do mundo, a imensa maioria dos pais são os grandes responsáveis pela perpetuação da crença irracional em divindades. Na mesma fase da vida que ensinam a criança como o mundo funciona de forma prática, empurram junto essa ideia maluca de espiritualidade e religião em geral.

Se você é religioso ou se “acredita em força maior”, provavelmente foi arrebatado nessa fase da vida por incentivo, pressão ou exemplo vindo dos pais. Não é à toa que as pessoas tendem a seguir a mesma religião que a maioria das pessoas em sua região. E depois que essa ideia fundamental é colocada na cabeça de uma pessoa, é muito difícil sair.

“Só é problema para você que é ateu!” – diria uma pessoa que não está enxergando o quadro geral.

Em tese, eu não tenho nada contra deuses. Primeiro que seria irrelevante ter algo contra um deus, e segundo que no final das contas não são os deuses que causam os problemas, e sim as pessoas. O problema da religião são as pessoas que usam a fé para fazer coisas ruins. Um deus não pode ser ruim para uma pessoa que nem acredita na existência de um deus.

O problema é que a ideia de hierarquia religiosa é incutida na cabeça da criança por causa da forma como a crença em divindades é passada para ela. Não foi uma escolha de verdade. A criança só derivou do ambiente que tem gente que manda e gente que obedece com base nas vontades de um ser invisível todo poderoso.

E é aí que o deus em questão vira religião organizada. O problema nunca foi o pobre coitado pedindo aos céus por uma chuva na sua terra seca, nunca foi nem a ideia de que tem alguém observado o que se faz e julgando. O ser humano tem essa tendência de criar consciências externas e se comunicar com elas. É quando pessoas entram no meio do processo e começam a fazer coisa errada.

Se você aprendeu religião dos seus pais, é muito mais vulnerável a aceitar opiniões alheias como se fossem mensagens diretas dos céus. Ser humano enganando outro ser humano. Se religião fosse proibida para menores de 18 anos, seria um pouco mais fácil controlar os estelionatários, porque as pessoas não estariam tão dispostas a escutar discurso de autoridade religioso, a pessoa não teria a memória da infância onde a ideia foi colocada na sua cabeça para achar normal que um qualquer consiga acessar essa memória de subserviência que vem do aprendizado através dos pais.

E sim, eu sei que na prática não funcionaria proibir religião para menores, é mais sobre a ideia de só colocar religião em cabeças já formadas. Tem muita gente que consegue escapar depois de mais velho, mas na média é gente que não quer mais pensar sobre religião, ou aqueles que ficam saltando de uma para outra sem entender por que nenhuma funciona (spoiler: nenhuma funciona se você não funciona), o estrago está feito. A pessoa já está vulnerável e quase não existe incentivo no mundo para sair da religião.

Muito pelo contrário: quem lucra com a fé alheia quer manter todo mundo com aquele medo infantil de desaprovação, agora centrado na figura de autoridade da fé prevalente na região. Aqui no Brasil são os cristãos, católicos ou protestantes em sua maioria. Querem ensinar religião na escola, querem pegar as ovelhinhas o mais cedo possível.

No caso de religião com fins lucrativos, quanto mais cedo se conquista o cliente, mais lucrativo ele é. E esse sistema de crenças só é tão explorável porque a crença vem de casa. Quando a criança não tem defesa nenhuma contra a ideia de deuses e rituais aleatórios que agradam esses deuses. Quando ela está fisiologicamente disposta a aceitar o que adultos dizem como verdade. A mesma evolução que fez a mente do jovem ser uma esponja de sabedoria dos adultos para todo tipo de conhecimento prático sobre a vida fez com que qualquer superstição passasse junto.

Ainda bem que a criança tende a acreditar piamente quando dizemos que um monstro vai morder a mão dela se ela encostar no fogão, mas nesse pacote vem a crença sem questionamento quando dizemos que tem que ir na igreja para não acabar queimando eternamente no fogo do inferno. Eu tive a sorte de ser criado sem religião, poderia ter ido para basicamente qualquer lado sem sofrer represálias. Poderia ser cristão ou não. Não tinha pressão nenhuma de seguir a religião da família.

E aí, um belo dia, a ficha simplesmente caiu. Ninguém nunca tinha me dito nada sobre ser ateu. Eu não me lembro nem de ouvir a palavra “ateu” antes disso. E o mais bacana: eu não tive que chamar a família para fazer a revelação sobre a minha descrença. Porque eu sabia que ninguém ia se incomodar com isso. Essa é a liberdade que eu gostaria que mais pessoas tivessem, de saber como pensariam se não tivessem ouvido que precisavam acreditar em deuses na sua fase mais vulnerável.

Que se tornassem cristãos, muçulmanos, budistas ou seja lá o que for, não me importa que você acredite exatamente nas mesmas coisas que eu, mas me importa que você seja suficientemente resistente a um estelionatário dizendo que você precisa obedecer às regras dele para não ser punido por um ser mágico que nunca viu.

Essa mentira que os pais contam para os filhos gera consequências terríveis para a sociedade no longo prazo. Uma hora ou outra a criança precisa saber que não existe monstro no fogão, que o problema era o fogo. Mas com religião, a alegoria nunca se dissipa, mantendo uma população confusa pelo resto da vida, frágil contra golpistas e muito mais disposta a agir de forma incrivelmente irracional (e até violenta) por causa da sua fé.

Para dizer que eu vou para o Inferno (ok), para dizer que não é mentira porque seu pastor disse que não é, ou mesmo para dizer que o ser humano é uma bosta com ou sem fé: comente.

SALLY

Qual é a maior mentira que os pais contam para os filhos?

Contam muitas, mas a maior é que se você estudar vai ser bem-sucedido, quase sempre se referindo a esse “bem-sucedido” como algo de caráter financeiro. No Brasil isso não é verdade.

Eu sei que fazem na melhor das intenções, mas essa crença gera uma enorme camada de desfavores. É possível conscientizar as crianças da importância do estudo sem mentir. Existem outros milhões de argumentos verdadeiros para incentivar o estudo que não envolvem garantir sucesso.

E, veja bem, não estou dizendo que quem estuda será pobre. Estou dizendo que apenas estudo não garante que alguém seja bem-sucedido no Brasil, a pessoa precisa reunir uma série de outros atributos.

Quando, na melhor das intenções, os pais dizem que você tem que estudar “para ser alguém na vida”, estão pisoteando a autoestima de seus filhos. Você JÁ É alguém na vida, e alguém de muito valor, independente do que faça para ganhar dinheiro e do quanto ganhe. A atividade que você monetiza para pagar suas contas é apenas uma pequena (muito pequena) parcela do que você é.

O que você é, sua essência, seus valores, sua personalidade, vai muito além disso. E não depende de estudo para receber aplausos. Por sinal, o que mais tem é filho da puta estudado. E o que mais tem é gente que não ocupa cargo alto, não ganha muito, mas todos os dias faz do mundo um lugar um pouquinho melhor.

O fato é que estudar não te garante sucesso profissional. Conhecimento teórico não te garante sucesso profissional. Quem acredita que é só mergulhar no estudo que tudo vai se encaixar vai se frustrar. E essa balela continua a ser repetida por muitos pais.

Como diz meu eterno curador de conteúdo Murilo Gun, tudo que você faz contém você. Se você não estiver com uma boa saúde mental, se você não for uma pessoa criativa, curiosa, inovadora, proativa e com muitos outros atributos, apenas estudo não vai bastar. Você vira um mero repetidor, que em nada acrescenta ao mundo, à empresa ou a você mesmo.

Ainda mais quando pensamos no que é o “estudo” no Brasil. Salvo honrosas exceções, é decorar, repetir, memorizar sem qualquer senso crítico ou exercício de inovação ou criatividade. Isso, meus amores, não leva ninguém a lugar nenhum que não seja um enorme vazio e depressão.

Na real, o próprio atrelar o conceito de bem-sucedido a profissão e dinheiro já é um desfavor enorme que os pais cometem sem perceber. Uma pessoa é bem-sucedida por muitos outros motivos mais relevantes. O que mais tem é gente rica, em cargo de poder, extremamente infeliz e deprimida.

Sabe o que é ser bem-sucedido? Se conhecer, se compreender, se respeitar e saber utilizar seus pontos fortes a seu favor, seja sendo um neurocirurgião, seja inventando um aplicativo inovador que vai encher seu fiofó de dinheiro.

Eu realmente acredito que felicidade não é meta, é resultado, A meta tem que ser se observar, entende aquilo que sabe fazer bem, aquilo que gosta de fazer, aquilo para que se tem aptidão. E a vida te dá todos os sinais que você precisa para perceber o que é ou o que são esses dons com os quais você veio de fábrica. A vida aponta para onde ir através dos seu prazer em fazer certas coisas.

Coisas que você faz facilmente, faz melhor que os outros, faz com prazer, faz e perde a noção de tempo de tão legal que é. Todos nós temos qualquer meia dúzia de aptidões que vem conosco de fábrica e que provavelmente estão diretamente ligadas com nosso propósito, com o bem que podemos fazer ao mundo. Como recompensa, a vida acopla a essas aptidões uma sensação de prazer e recompensa enorme.

Identificá-las e descobrir como explorá-las da melhor forma é o que vai te fazer ser bem-sucedido. Identificá-las e explorá-las da melhor forma é o que vai te dar sensação de completude, de realização e, por consequência, felicidade. Quem persegue felicidade está fadado a ser infeliz. Felicidade não é meta, é o resultado que advém de perseguir uma meta correta: se conhecer e saber como explorar seus potenciais.

E sim, se você estudar muito qualquer meta fica mais fácil de realizar e mais bem realizada. Estudo é fundamental, é essencial, é imprescindível e insubstituível. Mas está longe de ser uma fórmula isolada para ser bem-sucedido nessa vida.

Infelizmente a maior parte das pessoas não está preparada para essa conversa e, por mais que concorde comigo que estudo não garante que você seja bem-sucedido, acaba substituindo estudo por qualquer outra estratégia insuficiente, como networking, força de vontade e outras balelas.

Estudo é ferramenta, não fim em si mesmo. O fim é você, se conhecer, identificar seu propósito e ir nessa direção fazendo o melhor que você pode. Não estamos aqui para “ser felizes”, estamos aqui para evoluir, para melhorar, a nós e ao mundo. Felicidade é uma mera consequência disso. E dinheiro também. Parem de correr atrás das consequências.

Se você morresse hoje, você teria contribuído com algo para deixar um mundo melhor (não precisa ser nada grandioso, ok?) ou sua existência seria irrelevante? Pense nisso. Mire nisso. Foque nisso. Dinheiro e felicidade serão consequência.

Para dizer que você deixa o mundo pior, para dizer que eu deixo o mundo pior ou ainda para dizer que se emocionou com o texto: comente.

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Comments (10)

  • A mentira que mais me prejudicou foi que estudo no sentido de notas boas me garantiria um bom futuro financeiro. Sempre fui uma excelente aluna, mas nunca consegui trabalhar na minha área com remuneração. E trabalhar de graça pra ganhar experiência também não funcionou, mas o importante é ter percebido isso a tempo e correr atrás do prejuízo. É melhor ensinar a fazer bons contatos e estudar para aprender.
    Acho que a questão religiosa se torna nociva quando prende demais a pessoa ou causa algum malefício na vida dela, é algo bem inofensivo quando só se ensina a orar antes de dormir e acreditar em um ou mais deuses. Tive uma fase ateia na adolescência e ninguém me incomodou muito por isso na época, nem mesmo no colégio de freiras em que estudei, mas as pessoas que são muito tolhidas por questões religiosas costumam ser extremamente problemáticas até depois de adultas.

  • A pior mentira é “Na volta a gente compra”. Os pais que falam sobre deuses acreditam neles e não estão mentindo. Podem estar enganados ( equivocados), o que é outra coisa. Isso também acontece com os pais que dizem que estudar dá futuro. Equívoco é quando você acredita que algo é verdadeiro, mas objetivamente não é. Mentira é quando você sabe que não é verdade, mas finge que é (segundo o livro “Um monte de mentiras: para uma sociologia da mentira”, de J. A. Barnes) . Dizer que na volta a gente compra é mostrar que os pais não são confiáveis e que dizem qualquer coisa pra não ter que aturar a frustração do filho/filha/filhe/filhx. Isso é um puta mau exemplo. Cria um modo escroto de se relacionar que vai adiante em comportamentos de manipulação.

  • Concordo com a Sally que estudar não é garantia de ser bem sucedido financeiramente. Basta ver eu, que desisti de um doutorado por uma série de questões, e mesmo com toda uma erudição que carrego comigo, vejo que não tem lá muita serventia no dia a dia, ainda mais trabalhando fora do que é na minha área… Triste fim.

    • Estude aquilo com que você trabalha hoje. Seja o melhor naquilo que você faz hoje. Tenha um diferencial no que você faz hoje.
      Diploma, infelizmente, não garante nada a ninguém, mas excelência no que faz sim.

  • Deus e suas hipotéticas punições e recompensas é uma coisa vaga demais pra fazer o caboblo despirocar; já a história do estudo é bem mais concreta: te ensinam isso desde a mais tenra idade, que estudo é o caminho obrigatório e garantido pra ter sucesso (claro, financeiro) na vida, aí você vai e vê uma dessas bundas falantes ganhar num dia de OnlyFans o que você ganha num ano de trabalho ou então um Luva de Pedreiro da vida ganhando mais dinheiro do que você vai ganhar na vida chutando uma bola e gritando RECEBA!

    • Outro dia vi uma menina que tem um Only Fans de pé, ela só mostra o pé dela, nada mais, ninguém nem conhece seu rosto.
      Ela ganha mais de meio milhão de reais por mês.
      Podemos defender o estudo por muitos caminhos, mas dizer que ele é a única forma ou a forma garantida de sucesso profissional não se sustenta.

  • Em ambos os casos eles não fazem por mal, eles realmente acreditam em deuses e antigamente quem estudava muito seria bem sucedido. Hoje em dia, mais de acordo dizer, se vc for influencer e gravar dancinhas fúteis no tiktok vai ganhar dinheiro e ter sucesso. O pior ainda é falar de deuses, porque no final das contas quem lucra vai ser o pastor.

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