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Colunas

Pode falar?

Não existe liberdade de expressão irrestrita, isso é, pelo menos nas legislações ao redor do mundo. Mesmo nos EUA, conhecido pela sua defesa do conceito, existem limites. Você não pode usar sua expressão livre para pedir para outra pessoa cometer um crime, por exemplo. Existem sequências de palavras criminosas em todos os países. A minha curiosidade aqui é pensar o que aconteceria se realmente liberássemos toda forma de expressão (ideológica, por fala ou escrita) numa sociedade…

É um exercício de imaginação, nem estou julgando a qualidade da ideia, apenas o que poderíamos esperar numa sociedade que realmente acaba com qualquer obstáculo para expressar suas ideias.

Acho que a primeira coisa a ficar complicada seria toda a ideia de mandantes de crimes. Numa liberdade absoluta, você poderia ir na frente de uma plateia e dizer que deveríamos matar pessoa X ou Y. Falar isso não é igual a matar a pessoa, então em tese não estaria proibido. Você fala o que quiser, os outros fazem o que você pediu se quiserem.

Talvez fosse necessário provar que a pessoa fazendo o ato criminoso a mando de terceiros não tinha escolha para fazer o crime “subir” para o mandante. Se o chefe de uma organização criminosa diz que é para matar uma pessoa ou morrer por não obedecer a ordem, não poderíamos tratar apenas como uma fala solta. Agora, nesse mundo imaginário de liberdade irrestrita, se a pessoa cometendo o crime tinha uma escolha realista de não o fazer, volta a ser liberdade de expressão.

Porque se você resolve tratar todo mundo como capaz de tomar suas próprias decisões independentemente do que tiver ouvido, parte do princípio de que entendemos as consequências. Se alguém chegasse para mim dizendo que eu tenho que cometer um crime, não vejo como ela seria capaz de me convencer sem alguma ameaça séria. Se é só pela ideia, eu me sinto muito bem protegido com meu estado mental atual.

Por uma série de fatores relevantes para minha vida, essa parte não me incomodaria. Eu não acho que preciso de proteção legal para que não me sugiram ideias criminosas. Mas podemos argumentar que muita gente não se encaixa nessa categoria, e que se você sair perguntando por aí se a pessoa acha que é influenciável, a maioria vai dizer que não é. O que claramente não combina com a realidade: o que não falta por aí é gente influenciável, mesmo que a influência seja obviamente negativa para a vida.

Posso muito bem estar na mesma ilusão coletiva que meus pares, a de que de alguma forma sou imune a ideias perigosas e/ou criminosas por “ser inteligente e uma boa pessoa”. Historicamente, pessoas foram convencidas a defender ideologias terríveis certas de que estavam do lado certo. Difícil pensar em liberdade irrestrita se as pessoas têm esse tipo de tendência.

Mas o que aconteceria? Digamos que a internet se torne 100% livre e o nazista possa defender seu ponto da mesma forma que o ambientalista. Que preconceito não tenha limites e que nenhuma entidade pública ou privada tenha capacidade de controlar o que as pessoas dizem. Como essa tendência de seguir as piores ideologias se organizaria na prática?

Eu vivi uma parte da era da internet sem lei. Era um tempo em que a maioria das pessoas ainda não estava conectada, que a maioria dos governantes, juízes e policiais nem sabiam por onde começar na grande rede. Boa parte da moderação feita em fóruns e locais do gênero onde as pessoas se encontrava era autoimposta. Para não virar um muro pichado, algumas pessoas assumiam esse papel.

Comunidades que se moderavam conseguiam se manter, comunidades totalmente livres viravam caos absoluto e espantavam o público rapidamente. Não tinha padrão de moderação, cada ambiente tinha suas regras, e mesmo sabendo que “não ia dar nada”, as pessoas meio que concordavam em alguns temas que passavam do ponto. Mesmo nos piores lugares que eu frequentei no passado, as pessoas rejeitavam violência extrema e pedofilia, por exemplo.

Em tese, não tinham como pegar quem estava fazendo isso, mas mesmo os jovens rebeldes como eu ficavam putos com quem passava dos limites. A comunidade se formava ao redor de até onde o grupo queria ir. Existe uma diferença séria entre quem faz uma piada idiota sobre bebês mortos e quem filma abuso contra um bebê. Sem estar escrito em nenhum lugar, as pessoas tinham alguma noção de linha a se cruzar.

E quem queria cruzar essas linhas se juntava em outras comunidades, onde a linha estava mais longe. E nessas outras comunidades, havia uma barreira de entrada baseada no tipo de conversa e conteúdo distribuídos. Era uma espécie de funil da degeneração: cada vez que você piorava o tipo de conteúdo que estava disposto a ver e comentar, menos pessoas participavam.

E mesmo que as leis tenham demorado bastante tempo para começar a entender a internet, a lógica do funil meio que estabeleceu as divisões da internet das redes sociais. Se a sua rede é bem moderada, seu número de participantes aumenta. Bem moderada não quer dizer que você concorde com os conteúdos permitidos, mas que você entenda que eles estão dentro dos seus limites. A maioria das pessoas não vai querer estar num ambiente que frequentemente abusa de suas sensibilidades.

As comunidades mais exageradas ficam limitadas no tipo de pessoa que atraem. Até porque não concordamos quase que totalmente nos tipos de ideias e conteúdos que temos horror à toa: eles nos fazem mal. Ambientes de liberdade de expressão irrestrita ainda obedecem a uma lógica de interesse e conforto do público exposto. Não é só porque é livre que você vai ficar vendo vídeos de animais sendo torturados…

Um mundo de liberdade de expressão irrestrita seria um excelente teste para a hipótese do ser humano buscar essa automoderação. Eu digo que acho provável que o mundo não descambe para nazismo e guerra interminável por causa de liberdade de expressão, mas é realmente complicado bater o martelo sobre isso. Às vezes basta um líder carismático numa conjuntura social problemática.

O que eu penso é que existe um ponto entre proibir e incentivar. Um ponto que talvez seja mais difícil de entender e gerenciar. Deixar o racista falar livremente é a mesma coisa que defender o racismo? Eu acredito que não, que existe um ganho secundário em deixar a pessoa que tem ideias horríveis se expressar: ela se expõe e testa as linhas de todo mundo. A lógica de proibir gera dificuldades para quem tem esse tipo de ideia negativa, mas a minha sensação é que essas dificuldades acabam tornando o discurso mais persuasivo.

Porque ao ficar preso numa linha aceitável pela lei, o verdadeiro horror da ideia fica camuflado em ideias mais palatáveis. “Proteger o povo alemão” e “matar todos os judeus” desce completamente diferente goela abaixo do cidadão médio. O nazista esperto planta uma semente e vai manipulando a pessoa aos poucos. O nazista burro sai berrando que tem que matar todos os negros. É a diferença entre pedir licença para entrar e arrombar a porta.

O discurso livre, gostemos dele ou não, é muito mais explícito no seu lado ruim. Táticas de manipulação e discurso de propaganda política são coisas complexas de produzir e divulgar. É muito mais fácil soltar a sua ideia podre numa pancada só do que ficar dando voltas para fazer o outro chegar na mesma conclusão. A tendência é que sem limites, o ser humano tenda a ser mais direto e menos manipulativo.

O que boa parte das leis sobre o que se pode falar ou não fazem agora é forçar as piores ideias que temos a achar caminhos melhores para divulgá-las. Naquele exemplo das comunidades horríveis de internet que eu mencionei, seria como se as pessoas que queriam empurrar a linha do aceitável começassem a disfarçar seu conteúdo exagerado para continuar na mesma comunidade. Na internet “sem lei” eles iam embora para fazer um lugar que toparia o conteúdo horrível. Na internet “controlada” eles ficam mais tempo próximos do cidadão médio tentando passar suas ideias por baixo da moderação, e por tabela, atingindo muito mais gente no processo.

Evidente que tirar todas as regras de um sistema cria confusão. Comecei com o exemplo de mandantes de crimes justamente para explicar como eu vejo onde liberdade de expressão irrestrita vai causar problemas sérios, mas será que o modelo atual está fazendo um bom papel para evitar isso? Ainda existem muitos crimes incentivados na rede social e na vida real. Se não tiver ninguém para denunciar, não tem como descobrir.

As regras modernas criam consequências para quem pegar um megafone e diz que tem que matar tal pessoa ou grupo de pessoas (megafone real ou conceitual), mas quanto crime tem represado atrás dessa proibição? Porque muita gente faz isso dando a volta nas leis. Discurso de ódio tem para todos os lados hoje em dia. São os limites da liberdade de expressão que estão evitando o pior? Ou será que são eles que estão tornando os malucos e raivosos tão eficientes em espalhar ideias horríveis?

Eu realmente acredito que só vamos ter a resposta quando resolvermos testar a sociedade moderna sem regras de expressão. E repito, pode dar errado, e pode dar errado rapidamente. Mas já tem algo errado acontecendo na polarização que se espalha mundo afora, com o crescimento de movimentos políticos cada vez mais radicais.

Pode ser que tenhamos mais medo de descobrir quanta gente é horrível de verdade do que das coisas horríveis que podemos ler, ouvir e ver. Porque uma coisa alimenta a outra: quanto mais medo da opinião do outro, mais medo do outro.

Será que somos tão horríveis ao ponto de não conseguirmos lidar com o que somos de verdade? Ou será que é isso que as pessoas que sonham com controle querem que pensemos? Bom, enquanto não estivermos dispostos a correr o risco da liberdade de expressão sem limites, vai ser apenas conjectura.

Para reclamar que censuramos você (já pensou que você pode não ser uma pessoa agradável?), para dizer que ia dar merda muito rápido, ou mesmo para dizer que tem saudades da internet sem lei (eu não, era lento): comente.

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liberdade de expressão, sociedade

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