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Pequenas bombas.

Pequenas bombas.

| Somir | | 6 comentários em Pequenas bombas.

Ontem, terça-feira, uma série de pequenas explosões atingiu o grupo Hezbollah no Líbano. Os pagers que carregavam explodiram todos ao mesmo tempo, às 15:45 da tarde no horário local. Até agora, 12 mortos e milhares de feridos. Vou falar sobre como isso pode ter acontecido, mas também sobre o ângulo que poucos mencionam: ataques menos letais tendem a ser mais desumanos.

Israel não assumiu a autoria, provavelmente nunca vai, mas a combinação de motivo e meios aponta diretamente para os israelenses. Vou fazer como quase toda a mídia e explicar para o público mais jovem o que é um pager: um aparelho que só recebe mensagens, pequeno, durável e com pouca coisa para dar errado.

O grupo libanês começou a usar pagers por suas qualidades “low-tech” justamente porque não é aconselhável se comunicar por smartphones por perto do exército e da polícia de Israel. O mundo todo vai comprar aparelhos deles para espionar contatos por telefone ou mensagens pela internet. Pagers são mais difíceis de rastrear, porque não exigem conexão direta com a internet, nem ficam mostrando sua localização.

Não há comprovação de como foi feito, mas sabemos mais ou menos o que é plausível nesse cenário. Em primeiro lugar, a teoria de que fizeram as baterias dos pagers explodirem é furada. Primeiro que por mais perigosas que sejam baterias sobreaquecidas, elas não explodem da forma como vimos nos vídeos do momento e nem causariam os danos que causaram aos corpos das vítimas.

Pagers são tão simples que normalmente usam apenas uma pilha pequena, daquelas que você compra em qualquer lugar. E mesmo que usassem baterias de lítio (aquelas que explodem em celulares), a quantidade de energia numa bateria de um pager jamais chegaria aos níveis registrados nas explosões. Não foi um grupo hackeando os pagers para explodirem.

A única coisa que faz sentido é que explosivos foram instalados dentro dos aparelhos em alguma etapa entre o pedido e a entrega dos produtos para o Hezbollah. É aqui que começa a ficar bem claro que o único grupo local com tecnologia e capacidade logística de tocar o projeto é a inteligência militar israelense.

Quem instalou os explosivos sabia do pedido e tinha meios de interceptar a carga (ou as cargas) para abrir e colocar as bombas, além do sistema de detonação. Conseguiu fazer isso sem chamar atenção, e fez com que chegasse às mãos do grupo terrorista. Existe a teoria de que a fabricante e/ou a distribuidora foram coniventes, mas eu não vejo como.

Primeiro que uma empresa nunca ia se permitir entrar numa guerra e deixar o público sequer imaginar que poderiam colocar bombas dentro de seus produtos. No máximo os israelenses coloram uma empresa de fachada no meio do caminho, oferecendo preços mais baratos para ter um ponto de sabotagem confiável em mãos. Mas eu nem acredito que precisava de tudo isso.

Se souberem em que navio ou caminhão o produto vai estar e tiverem pelo menos um infiltrado na cadeia de entrega, consegue extraviar uma ou duas caixas para fazer a troca. Podem ter pegado a carga e ido mexer em pager por pager, mas eu apostaria que já tinham prontas as caixas com os produtos na hora que chegou o carregamento e só trocaram a original. Até porque a demora estranha na entrega poderia levantar suspeitas.

Com a miniaturização dos componentes eletrônicos, é cada vez mais comum ver aparelhos recobertos por uma carcaça plástica grande, mas muito vazios por dentro. As pessoas têm expectativas de tamanho e formato de produtos, e por mais que você consiga fazer um pager do tamanho de uma moeda hoje em dia, os moldes já estão prontos, o sistema de produção também. Custa mais caro mudar o formato do que deixar o produto vazio por dentro.

Deve ser por isso que os israelenses conseguiram colocar carga explosiva e um mecanismo de detonação sem mexer nas funções básicas do produto. Tinha espaço. E falando em mecanismo de detonação, por mais que seja possível que tenham colocado um timer interno em cada um deles para não depender de receber um sinal externo, eu apostaria que colocar um receptor simples e disparar um sinal de detonação é mais simples e com menos pontos de falha hoje em dia. Está todo mundo debaixo de alguma rede de dados mesmo.

E não é como se fosse muito necessário acabar com as evidências, mesmo se algum não explodiu, não passa de um receptor de sinal ligado a um detonador. Tecnologia que de nova não tem nada. E como quase todas as partes extras devem ser chinesas mesmo (os pagers vieram de Taiwan), duvido que dissesse alguma coisa sobre o perpetrador.

Como não temos ninguém assumindo, não temos informações sobre a taxa de sucesso das explosões. Sabemos que foram muitos, centenas pelo menos por causa do número de vítimas, mas não quantos explodiram em relação a quantos deveriam ter explodido.

O que sabemos é que o resultado foi sangrento.

E aqui, um pouco sobre a estranha lógica sobre o que configura tratamento humanitário em guerras. Se você joga uma bomba em cima de 100 soldados inimigos e mata todos na hora, o exército inimigo tem 100 pessoas fora da guerra. Se você joga uma bomba em cima de 100 soldados inimigos, mas fere gravemente os 100 ao invés de matar, o exército inimigo perde 100 pessoas incapacitadas, mais umas 300 para cuidar dos feridos, sem contar todos os recursos.

Se você estiver pensando só em causar problemas para o outro lado, é mais eficiente ferir gravemente sem matar. Vai jogando areia nas engrenagens do exército inimigo até ele travar. Sem contar que isso ainda devasta a moral dos companheiros do ferido. Vingar um soldado morto é uma coisa, ver seu companheiro de batalha sem as pernas e agonizando é outra completamente diferente. Ataques menos letais podem ser muito mais eficientes se você quer ganhar a qualquer custo.

Prevendo que o ser humano otimizaria a guerra até destruir sua alma, foram implementadas algumas regras de como lutar uma. A Convenção de Genebra é a mais famosa delas. Não á toa, tem várias restrições focadas nesse tipo de ataque de sofrimento: armas químicas e biológicas também estão lá porque causam esse efeito secundário de torturar o adversário. Matar pode. Bizarro se você parar para pensar, mas pode-se entender de onde vêm essas ideias.

Quando Israel faz essa ação, está subvertendo a lógica. Eu duvido e muito que eles vão assumir porque é crime de guerra, não só porque as bombas foram ativadas perto de civis, como o tipo de explosão que um pager entrega dificilmente vai matar uma pessoa. Milhares de feridos e dezenas de mortos? Isso não é um ataque letal tradicional.

Esses aparelhos explodiram em bolsos, ou nos piores casos, bem no rosto de quem estava lendo uma mensagem. Os relatos de mortes de crianças sugerem que estavam perto desses adultos na hora. Pense onde fica a cabeça de uma criança próxima de um adulto e você vai perceber o horror. Surgiram vídeos de pessoas com mãos, rostos e torsos dilacerados. Não totalmente ao ponto de ser letal, mas sempre daqueles ferimentos que com sorte vão deixar cicatrizes.

É o meio-termo mais escroto entre matar e ferir, foi um ataque para dilacerar, para torturar, para traumatizar. O fato de eu sequer discutir o direito de Israel se defender não quer dizer que isso seja tolerável. Mas eles não vão admitir que fizeram e o amigo poderoso deles vai fazer vistas grossas. Nesse caso faz muito sentido sim repudiar. O Brasil condenou o ato e eu realmente acredito que está certo em fazer.

Zero simpatia por terrorista, e o Hezbollah é um grupo terrorista. Agora, ou temos regras para a guerra ou não temos. Se esse ataque passar em brancas nuvens, concordaremos com terrorismo por causa de quem fez. Estou sendo bem honesto aqui: se Israel derrubasse mil bombas em cima do território do Hezbollah e transformasse o deserto em vidro, seria mais humanitário do que explodir esses pagers.

Em um mundo ideal não temos guerra, em um mundo menos ideal a guerra segue regras básicas de evitar tortura, no mundo que vivemos as pessoas esquecem de mencionar que esse tipo de ataque é abjeto e imperdoável se não estiverem criticando Israel de olhos fechados para começo de conversa.

Sinceramente, não acho que seja polarizável: foi muito abaixo do nível já baixo da guerra. Assim como o que o Hamas fez atacando civis desprotegidos foi horrendo, o ataque dos pagers também. E o pior é que nada compensa nada. Só gera mais ódio. O que você vai dizer para uma pessoa da região que viu o que Israel acabou de fazer para diminuir o ódio dela? O Hamas se colocou numa posição indefensável quando massacrou e torturou civis, Israel acaba de fazer algo muito parecido, mesmo sob a ilusão que só atacou combatentes inimigos.

Explodir sua cintura e deixar um buraco onde era o seu rim sem te matar é se igualar a terrorista. Especialmente se você faz isso sem critério nenhum de proteção de civis que possam estar ao redor do inimigo. Se o Hezbollah revidar de forma cruel, vou continuar a sequência lógica de não ser justificável ou defensável, mas a cada dia que passa podemos ver que toda essa gente se odeia por um motivo.

E aqui de fora, achamos que é normal. Que é uma guerra como qualquer outra. Não é, é sub-humano para qualquer lado que se olhe. Israel parece ser o único lugar minimamente civilizado capaz de quebrar o ciclo, mas está claro que não vai. Talvez por não querer, talvez por não poder.

Não vou concordar com a retaliação, mas vou entender.

Para me chamar de antissemita, para dizer que pode ter sido outro país da região que odeia o Hezbollah, ou mesmo para dizer que o segredo é não assumir o que faz: comente.


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