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Jeitinho argentino – Parte 2

Jeitinho argentino – Parte 2

| Sally | | 24 comentários em Jeitinho argentino – Parte 2

Já que vocês gostaram da primeira edição e manifestaram interesse pela continuidade desta coluna, hoje trazemos um pouco mais sobre a cultura do meu querido país, a Argentina.

Como explicamos na edição passada, o jeito argentino de falar é muito enfático, muito exagerado e provavelmente considerado desrespeitoso por pessoas criadas em outras culturas. Mas, o exagero não é para ofender, é para dar ênfase a aquilo que é dito, tanto é que se aplica a toda e qualquer pessoa.

O mesmo vale para o humor: se há uma oportunidade de piada, ela será feita. Por sua mãe, por sua avó, por seu priminho de dez anos. E isso não quer dizer que eles não gostem de você. Na Argentina, nada é sagrado e todo mundo nasce com um passe livre para falar o que quiser em nome do humor, para dar ênfase à fala ou em momentos de raiva.

Quando eu era pequena, no Brasil, e brincava na rua, tinha uma regra que não sei se é aplicada em todo o país, mas que quero compartilhar: Altos. Não importa qual fosse a brincadeira, se você levantasse a mão e falasse “estou de altos”, todo mundo respeitava e sabia que você estava temporariamente imune. Se fosse queimado, ninguém jogava a bola em você, se fosse pique pega, ninguém corria atrás de você.

Altos era uma instituição sagrada, se respeitava e ponto. Não sei de onde surgiu, não sei qual é a explicação para o nome, não sei nada, mas sempre respeitei e tive respeitado meus pedidos de Altos. E ninguém nem ousava questionar: levantou a mão e disse que estava de altos? Era mais do que suficiente. Não havia debate. Era assim que as coisas eram. A sagrada instituição do Altos.

Pois bem, o mesmo conceito se aplica na Argentina, só que sem precisar levantar a mão e pedir Altos. Se você está puto da vida ou se você está com a intenção de fazer uma piada (achem os outros graça ou não), você está de Altos das normas sociais, culturais e de boa educação. É assim que as coisas são. É assim que somos ensinados e observamos desde pequenos. Esse é o nosso normal.

Um exemplo, que talvez a maior parte dos brasileiros nem compreendam a magnitude:

“Excelente
A máquina é muito boa, aguenta o tranco, usa lixas comuns e de cada lixa saem mais duas. Além disso ela aspira como o Diego”

Isto, querido leitor, pode parecer uma besteira para você, mas para nós, Maradona é uma instituição. E o argentino, quando ama, é passional. Pessoas já foram mortas em praça pública por falar mal do Maradona. Maradona está acima de Deus, inclusive temos uma Igreja Maradoniana (sobre a qual já fizemos um texto aqui no Desfavor). Porém, a pessoa estava de altos. Ela quis dar ênfase às características do produto.

“Mas Sally, não pode ser uma pessoa que não goste do Maradona”. Não creio. Primeiro que elas são bem difíceis de encontrar, segundo que a forma como a pessoa se referiu a ele é uma forma carinhosa: “O Diego”. Fosse uma pessoa com distanciamento emocional, o chamaria de Maradona.

Quando todo mundo fala muito intenso, expressa opiniões muito intensas, é muito enfático, quem não o faz não é ouvido ou então passa uma impressão de sem personalidade, de pessoa apagada. “Tíbio”, ou seja, morno. Uma coisa como sem graça, sem sal, sem energia. Por sinal, eu sou considerada “tíbia” pela minha família. Sim, na Argentina, eu sou demasiadamente moderada.

Em sua ânsia por transmitir a atuação do produto da forma mais intensa e impactante possível, a pessoa solta essa: “aspira como ele Diego”. Alguém achou um desrespeito fazer chacota com um dependente químico? Não. Alguém achou que por ser um dos maiores ídolos da história da Argentina ele deveria estar acima de piadas pejorativas? Não. Alguém achou desnecessário, exagerado e de péssimo gosto? Não. A pessoa estava de altos. E todo mundo entendeu. É tácito. Desde que nascemos sabemos essa regra.

Agora permitam-me falar um pouco do senso de estética argentino. Por mais que o país tenha decaído absurdamente nas últimas décadas, o argentino, o argentino mesmo (não o estrangeiro que mora na Argentina), tem um apreço pela estética. Talvez não seja a estética que vocês brasileiros acham bonita, talvez soe como uma besteira, futilidade, superficialidade, mas essa preocupação existe.

Acredito que em parte pela própria decadência econômica do país. É como se tivessem ficado uns últimos pilares de dignidade, que nós argentinos insistimos em sustentar de pé, custe o que custar, pois se isso ruir, perderemos toda e qualquer identidade que nos resta como povo. Um dele é a estética. Não necessariamente a beleza física. A estética.

Então, esse apreço pela estética não é recriminado, ele, no mínimo, muito bem aceito, tolerado como algo normal, no máximo, veementemente aplaudido. Um exemplo:

“Pintor

(…)

Nosso cofrinho não fica visível quando nos agachamos”

Percebam que não se trata de um anúncio de alta complexidade, certamente não foi elaborado por uma agência publicitária, muito pelo contrário, é um panfleto colado em um poste, provavelmente nasceu de baixíssimos recursos orçamentários.

Entretanto, nosso amigo Martín, do alto de sua simplicidade de design, escolheu as informações que ele sabia serem essenciais para ser contratado no país. Deixou claro que faz pinturas de interior e exterior. Deixou claro os materiais com os quais trabalha. Deixou claro que dá orçamento sem cobrar. E, na parte central, que é a área nobre de qualquer panfleto, por ser a de maior visibilidade para o olho humano, deixou claro que ele e sua equipe tem o cuidado com as vestimentas para que o cliente não tenha que ver parte da bunda dos pintores quando eles se abaixam.

Percebem como, no meio de qualificações técnicas, está a estética? É tão importante quanto! Está no mesmo patamar de importância saber que a pessoa é capaz de trabalhar com látex e verniz e saber que quando a pessoa agachar o cliente não verá seu cofrinho. Somos uns fodidos na economia? Com certeza. Mas o senso de estética e a dignidade a gente segura na raça, estes serão os últimos pilares a cair.

Outra coisa que você tem que saber sobre nós é que é muito difícil nos obrigar a fazer o que não queremos. É possível? É. Mas é provável que o preço disso não valha a pena. Faremos? Faremos, inclusive faremos bem feito, mas deixaremos um recado.

Um argentino obrigado a fazer algo, provavelmente não o fará de má vontade (como normalmente acontece no Brasil), aqui fazer de má vontade não é considerado um ato de resistência e sim de burrice, pois sabemos que depõe contra nós. Mas provavelmente o argentino médio deixará uma marca irônica, debochada ou afrontosa do que está fazendo.

É o caso do nosso amigo, que foi obrigado a fazer um review de um aspirador no Mercado Livre (se você não fizer existem penalidades ou perdas de benefícios), mas sua opinião não preencheu o número de caracteres que o Mercado Livre considerava aceitável:

“Excelente produto, um ótimo aspirador, funciona muito bem para aspirar pelos de cachorro. Talvez pudesse ter um pouco mais de potência para executar os retoques, mas, mesmo assim, funciona. Como o Mercado Livre me pede que eu continue escrevendo, recomendo a vocês a minha banda “O Pesadelo de Bob Saget”, estamos no Spotify, tomara que vocês gostem. Também aproveito para contar a vocês que meu cachorro se chama Chuck Norris e, como nos mudamos para um apartamento, ele está um pouco triste, porque tem menos espaço. Além disso, ele está com um pouco de ciúmes, pois recentemente nasceu minha filha. Pronto, já deu, agora o Mercado Livre está satisfeito com a minha opinião”.

Percebam que, ao custo de escrotizar o Mercado Livre pela afronta de cobrar quantidade de caracteres, a pessoa contou boa parte da sua vida pessoal. Ou se deu ao trabalho de inventar um Mini Histórias de Vida. Não importa, o fato é que a obrigação de uma quantidade determinada de caracteres afrontou a pessoa e ela deixou sua revolta bem-humorada registrada.

Não é muito da natureza do argentino confrontar diretamente, este tipo de birrinha infantil é bem mais comum. E digo mais: não é visto como algo errado de se fazer, muito pelo contrário, vocês vão encontrar muitas reviews nessa pegada de “ok, quer me obrigar a escrever? Então toma”. Não é recriminado, é visto como um ato de resistência pacífica bem-humorado.

“Mas Sally, resistência a número de caracteres?”. Sim, somos assim. Tudo é motivo de revolta. Tudo é motivo de protesto. Tudo vira um desafio. O Presidente peida o povo vai para a rua. Eu acabei tendo este traço um pouco atenuado, pois 40 anos de Brasil onde ninguém liga para porra nenhuma, mas o argentino raiz? Ele se sente tentado a subverter as normas respeitando-as, dessa forma passivo-agressiva, o tempo todo.

O que nos leva a outro ponto, que suaviza o anterior: nesse processo é totalmente aceitável e até desejado que a pessoa se auto-esculhambe. Se não levamos nada a sério, nem mesmo uma regra de caracteres, também não nos levamos a sério, e isso torna o argentino muito engraçado. Vejamos:

(review de um celular)
“Comprei para dar de presente e ele o usa todos os dias, então, imagino que ele tenha gostado. Para preencher a quantidade de caracteres exigida, compartilho que em uma tarde de sol com 40 graus à sombra, nos sentamos para tomar um refrigerante em um bar e eu perguntei a ele se ele poderia me emprestar o Samsung Galaxy J2 e ele não quis me emprestar. É bem provável que esteja me chifrando com outra, mas tudo bem, ele está feliz com o novo celular.”

“Me desloquei desde um lugar distante para que, ao chegar, me digam que a quadra que eu aluguei não estava disponível, que o sinal isso, que o sinal aquilo, muito mimimi… Consequência: chego mais cedo em casa e encontro minha mulher fodendo com o vizinho. Nunca mais.”

O mais fascinante é que estas histórias podem ser verdadeiras. Podem não ser, mas também podem ser, pois somos mestres em rir de nós mesmos e jogar merda no ventilador achando graça da nossa desgraça. Percebam que em nenhum dos dois casos há uma narrativa pesada, que denota sofrimento, que de alguma forma expressa dor, ira ou qualquer sentimento que coloque a pessoa em posição de vítima.

Talvez por essa razão seja tão difícil entender outros povos extremamente ofendidos com besteiras como comparação com animais, apelidos pejorativos e cânticos de torcida. O argentino, salvo raras exceções, não apenas não se faz de vítima, como não se sente vítima. Ele encara toda merda que lhe acontece como uma ótima oportunidade para uma piada. É normal. É nosso modo de funcionar.

Não tem nada que o aconteça com um argentino médio que ele não compartilhe nos locais mais improváveis (como nas reviews de um produto ou serviço), rindo de si mesmo e dando riqueza de detalhes e adjetivos, com a maior naturalidade. Na edição passada vimos uma pessoa comparando a morte de parentes com uma milanesa dura. Eu sei que para vocês isso choca, mas para a gente é perfeitamente normal. Essa é a nossa forma de superar nossos traumas, de elaborar o nosso luto, de tentar transcender a situação.

Acredite quem quiser, mas muitas vezes, quando um argentino faz uma piada inconveniente, escrachada ou aparentemente desnecessária com você ou com algo incômodo que aconteceu na sua vida, ele está te dando as mãos e dizendo “reage, anda, começa teu processo de se auto-sacanear para superar isso”. Obviamente, costuma ser visto como chutar quem está no chão, racismo, insensibilidade e coisas piores. Daí, quando o argentino é esculhambado, ele fica puto, pois estava tentando ajudar e levou uma pedrada. Daí ele xinga de tudo quanto é nome.

Spoiler: um argentino não faz piada com quem não lhe desperta algum tipo de emoção. Geralmente esta emoção é o carinho, por incrível que pareça. Pode ser rivalidade futebolística? Pode. Mas geralmente está na ordem do afeto.

Fazer piada sobre uma situação da vida que pareça sofrida, constrangedora, injusta, é a nossa forma de dizer “vamos lá, não dê tanta importância a isso”. Esta forma é compreendida? Nunca, jamais, em tempo algum fora do território nacional, mas, novamente, é nosso jeito de funcionar, somos educados assim, vemos isso desde pequenos. Para nós, soa normal.

Por fim, quero terminar dizendo que todos esses mecanismos, inclusive o exagero como recurso de linguagem, se aplica também na hora de elogiar. É nossa forma de falar, não apenas um recurso para diminuir ou sacanear alguém:

“Sempre imaginei que o descanso eterno ocorreria ao abandonar este imundo plano físico, através da transformação do nosso ser etéreo, livre de preocupações mundanas. Acreditava nisso, até que dormi no colchão de vocês. Mal apoiei minha cabeça no travesseiro, Deus Nosso Senhor me acolheu no seu colo, enquanto um coro de anjos me presenteava com prazerosos sons de instrumentos de sopro. Foi um momento transcendental na minha vida, até que percebi que era apenas o despertador me avisando de que era hora de ir ao escritório trabalhar.”

Esta ficou famosa. Correu o mundo. Foi repetida em diversos países. Nem sei se a original é mesmo argentina (acredito que seja), mas reflete perfeitamente nosso empenho em transmitir a mensagem da forma mais impactante possível.

Para dar o tom da seriedade da sua afirmação, a pessoa usou uma linguagem formal e até incomum, recurso que às vezes usamos aqui no Desfavor também. Além disso, claro, o santo nome de Deus muito em vão, como sempre. Ninguém se importa, ninguém em sã consciência se ofenderia com esta poesia. O que importa é essência: certamente quem lê isso terá, no mínimo, a curiosidade de experimentar esse colchão. A missão foi cumprida.

Eu sei que em um primeiro olhar, nós argentinos parecemos malucos, e provavelmente sejamos, mas por outros motivos. Não é como se a gente realmente quisesse que o outro morra empalado com o salame de má qualidade que nos vendeu, nem que a criança que pulou na balança vire escrava na Ásia.

É apenas uma forma de expressar a intensidade do sentimento, que nós consideramos super ok, pois na Argentina as palavras ditas nesse tipo de ocasião (momentos de raiva, para dar ênfase ou momentos nos quais não estamos falando sério) não tem tanto valor. Estamos de Altos, só não sabemos que no resto do mundo essa regra não vigora.

Tanto não é por mal que fazemos isso desde a primeira infância. Na minha infância no Brasil, frequentemente meus pais eram chamados na escola por causa das minhas redações, ainda que minhas notas fossem boas. Pelos termos incisivos, pela descrição gráfica, longa e inconveniente do que eu usava para tentar provar meu ponto e principalmente pelos adjetivos que eu escolhia usar. Semana sim, semana não, lá estavam eles na sala da diretora.

“Mas está com problema de escrita? A nota está baixa? Tem algo contra as regras da escola?”, meu pais perguntavam. Diziam que não, que estava bem escrito e dentro das normas, inclusive acima da média e que por isso não podiam dar nota baixa. “Então qual é o problema?”, meus pais perguntavam. Eu não sei como não chamaram o Conselho Tutelar.

O que era dito aos meus pais é que não era aceitável ou sequer concebível que uma criança com menos de dez anos se expressasse dessa forma. Não era proporcional a forma como eu descrevia ou adjetivava as coisas. Provavelmente achavam que eu vinha de um lar muito disfuncional. Não, era apenas uma casa de argentinos mesmo.

Uma vez eu estava brincando com minha priminha de três anos (família toda argentina, ok?) de idade e fiz uma piada de que comeria um doce sozinha e não daria nada para ela, ao que ela respondeu, ainda com uma pronúncia deficiente de crianças dessa idade, que se eu não desse metade do doce para ela, ela “fraturaria meu crânio ao meio”.

Não é maldade. Uma criança de três anos não tem maldade. Somos assim. Crescemos ouvindo isso. Isso é valorizado na Argentina. Eu não tinha maldade quando fazia minhas redações (spoiler: em uma delas o tema era o Papa), minha priminha não teve maldade quando ameaçou partir meu crânio ao meio. As palavras têm outro valor, outro peso, outro uso para nós.

Se pecamos por algo, não é pelo falado, é por acreditar que o resto do mundo é como nós em vez de ter alguma preocupação sobre como as pessoas agem, se comunicam e se sentem em outras culturas. Não. Nós achamos que é frescura quem se incomoda com a gente, pois isso é e sempre foi nosso normal. Dentro do país funciona que é uma beleza, mas quando você está fora dele, tem que se adaptar à cultura do local.

Nos falta isso: observar, compreender e fazer algumas adaptações no nosso jeito de falar para uma melhor adequação a outra cultura. Mas é difícil e sobretudo, é chato ficar policiando tudo que se fala. E é muito fácil escorregar. Quem não tem filho sempre acaba soltando uma inconveniência ou palavrão quando está perto de uma criança… o mesmo acontece conosco quando estamos perto de não-argentinos.

E, a quem interessar possa, eu ainda me controlo bastante no que falo e até no que escrevo aqui, pois aprendi que por mais legal que pareça na minha cabeça, vai causar dor. E causar dor não é legal. Seja bom, se não puder ser bom, seja cuidadoso. Se quiserem um dia escrevo um texto 100% argentino sem filtro algum.

Enfim, meus queridos, é isso. Espero que este salpicado da cultura argentina não tenha ofendido a ninguém e desejo de coração que em ao menos um trecho este texto tenha tornado seu dia menos miserável, desgracento e insuportável, arrancando, se não uma gargalhada, ao menos um sorriso do seu rosto.

Não nos odeiem, somos sem noção, mas não somos más pessoas.

Para dizer que quer muito ver essas redações da minha infância (você gostaria mais de ver a reação dos meus pais quando foram conversar com a professora…), para dizer que se continuar com esta coluna periga você se afeiçoar aos argentinos ou ainda para dizer que é por isso que todo o mundo nos detesta: comente.


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