Histórias de Vida – Neli, a Loira do Velório

Neli, a Loira do Velório, candidata a vereadora em Jaú/SP

Era uma daquelas manhãs chuvosas em Jaú. O relógio acabara de marcar nove horas da manhã, mas o céu estava escuro com nuvens cor de chumbo. No Cemitério Municipal de Jahu, o mais antigo da cidade, um pequeno grupo de pessoas acompanhava o sepultamento de Jairo, morto aos 78 anos de idade de um mal súbito. A certidão de óbito dizia falência múltipla dos órgãos, mas até então, o homem não tinha nenhuma doença aparente.

O cortejo terminara numa sepultura familiar, onde o pai do recém-falecido precisou ser exumado para dar espaço. Enquanto os coveiros desciam o caixão, uma das filhas de Jairo percebeu uma figura à distância. Uma mulher idosa observava, silenciosa. Ela tinha cabelos loiros, usava roupas discretas e segurava um guarda-chuva preto sobre a cabeça.

Terminado o sepultamento, ela se aproxima da senhora, que nem ao menos corresponde o olhar. A expressão séria não se abala quando é interpelada.

“A senhora conhecia meu pai?”

“Um pouco.” – ela responde sem desviar o olhar do túmulo distante.

“Pegou todo mundo de surpresa. Você trabalhava com ele?”

“Não.”

A filha de Jairo fica por mais alguns segundos ali, incerta sobre como proceder. Eventualmente se despede e deixa a mulher ali, estática sob a chuva. Antes de se afastar de vez, vira o rosto e pergunta o nome. A senhora responde:

“Neli.”

“Julia. Prazer.”

Julia volta para casa, e com ajuda do marido começa o trabalho de arrumar as coisas do pai, aproveitando o dia livre de licença do trabalho. Ele morava sozinho desde a morte da esposa, madrasta de Julia e segunda esposa. Seu Jairo era daqueles homens fechados, sobre os quais quase não se sabia nada, nem mesmo os familiares mais próximos.

É quando vê uma foto antiga, avermelhada, emoldurada numa das estantes da sala, ao lado de fotos da filha e da madrasta. Na foto, o pai sorria de orelha a orelha segurando o que dizia ter sido o maior peixe que já pescaram na cidade. Um bagre que se lembra do pai dizer que pesava quase cem quilos. Ela nunca quis entrar na discussão sobre como esse peso era impossível. História de pescador. Na foto, também estão mais dois homens.

Julia se lembra do pai mais solto apenas quando estava com seu grupo inseparável de amigos. Seu Jairo, Dr. Emilio, e Zé Segundo. Grupo improvável de homens muito diferentes, mas que sempre se encontravam para pescar nos finais de semana.

Dr. Emílio mal durou o velório. Teve que correr dali por uma emergência no hospital. Julia desconfiava que era dificuldade em lidar com o sentimento, pois viu os olhos marejados do médico, que teimava em dizer que era uma alergia. Coisas desses homens antigos, com mais medo de sentimento do que de arma de fogo. Zé Segundo, um playboy idoso famoso na cidade por nunca ter trabalhado, prestou suas homenagens, mas não quis seguir para o cemitério. Disse para ela que não estava se sentindo bem, e realmente, o rosto estava esbranquiçado e a voz sôfrega.

O dia continua com a casa sendo preparada para retirar os móveis. Filha única, Julia pretendia vender a casa e continuar onde estava com o marido e os dois filhos. Mesmo com a frieza costumeira do pai, ainda consegue puxar algumas memórias felizes e chora algumas vezes, sendo consolada pelo marido.

Uma semana se passa. Julia está trabalhando no escritório da loja de pesca que herdou do pai, sem dificuldades, afinal, trabalhava lá há muito tempo. Uma transição natural. Recebe uma ligação, é o filho de Dr. Emílio, Patrício. Patrício diz, com a voz embargada, que o pai morrera na noite anterior, e que o velório aconteceria durante a tarde. Julia pergunta o que aconteceu, e Patrício diz que ele estava bem e de repente começou a ter dificuldade de respirar. Teimoso, recusou ir até o hospital se tratar com “aquelas crianças de jaleco”, se automedicou e foi dormir. Não acordou.

O velório acontece no meio da tarde, esse bem mais ocupado. Dr. Emilio era pediatra, mas era tão querido que continuou tratando centenas de pacientes na vida adulta. Foi até vereador por dois mandatos nos anos 90. Sabendo do impacto de perder dois companheiros inseparáveis em tão pouco tempo, Julia e Patrício foram direto consolar o último do trio. José Carlos Figueiredo Antunes II nunca foi sério o suficiente para vencer o apelido de Zé Segundo. E não parecia se incomodar com isso. As viagens e as pescarias todas financiadas por ele, herdeiro de uma fazenda que vendera por milhões logo depois da morte do pai.

Zé Segundo estava cabisbaixo. Julia não diz nada, só oferece um abraço. Patrício faz o mesmo. Sozinho, sem sinais de Zé Terceiro que alguém conheça, ele aceita o gesto de carinho. Patrício pergunta se ele quer carregar o caixão, o idoso agradece a honra, mas declina, dizendo que as costas não permitiriam. Mais tarde, todos seguem juntos até o cemitério, onde o cortejo chega ao jazigo da família. Esse mais espaçoso, ornamentando.

O tempo começa a fechar, uma leve garoa salpica o caixão, fazendo com que algumas pessoas abram seus guarda-chuvas. Talvez pela conexão mental com o dia do enterro do pai, Julia começa a olhar ao redor. E sim, a mulher está lá. Longe de novo. Séria de novo. Dessa vez Julia não espera o sepultamento, vai direto em direção dela. A loira estava bem arrumada novamente, segurando o guarda-chuva.

“Neli?”

“Julia.”

“Você também conhecia o Dr. Emilio?”

“O suficiente.” – a expressão de Neli continua fria.

“Desculpa, mas eu estou achando isso estranho… você conhecia meu pai, o Dr. Emilio… mas de onde?”

Neli fica olhando para a sepultura de Dr. Emilio por mais alguns segundos, e finalmente vira o rosto na direção de Julia. O olhar é penetrante, causando um frio que sobe pela espinha.

“Eu conheci eles numa pescaria. Muito tempo atrás.”

“Pescaria? Você pescava com eles?”

“Tem coisas que morrem com a gente.”

Neli se vira e sai sem dizer mais nenhuma palavra. Julia menciona o encontro com o filho do Dr. Emilio, e mais gente parece ter percebido a presença daquela mulher nos dois velórios. O número maior de pessoas atraído pela morte de Dr. Emílio faz com que o boato se espalhe. Muitas teorias começam a surgir pela cidade, algumas até sugerindo que Neli era um fantasma.

Mas não era. Neli era funcionária pública na cidade. Reservada, pouco se sabia dela a não ser que era uma solteirona carola, e que só saia de casa para trabalhar e ir à missa. Entrava muda e saía calada do serviço na repartição. Não era dada a muita vaidade com exceção dos cabelos, sempre loiros apesar da imensa probabilidade de já estarem brancos por baixo da tintura.

O apelido de Loira do Velório começou a ser circulado na cidade. Um tanto de crendice, um tanto de deboche. Julia ainda estava desconfiada da relação entre o pai e Neli, e fez questão de sair perguntando para todo mundo da família se alguém reconhecia a mulher. Uma tia, já com dificuldades de comunicação por causa de uma doença degenerativa, chegou a mencionar algo sobre uma menina loira que os amigos conheceram numa pescaria, mas quando ainda eram muito jovens.

A conversa, infelizmente, não avança muito. A tia rapidamente começa a perguntar sobre pessoas que já morreram e dizer que estava atrasada para o trabalho do qual se aposentara vinte anos atrás. Quando Julia está apenas sorrindo e concordando, pronta para sair, ouve uma frase diferente:

“Vai embora, menina loira, o Jairo disse que não quer te ver mais.”

Julia tenta perguntar mais, mas não recebe nenhuma resposta coerente. Ela começa a trocar mensagens com Patrício, que também ficara fascinado com a ideia de descobrir quem era Neli e o que ela fazia no cemitério. Os dois começam a pesquisar em cartórios e registros médicos sobre Neli e os pais, além de Zé Segundo. Tudo o que descobrem é que Neli não era de Jaú, e que não há registro de quando chegou. Não casou, não teve filhos, apenas fez um concurso e entrou numa função burocrática da prefeitura.

A única coisa realmente estranha foi Patrício que achou em pastas antigas de documentos do pai. Um prontuário médico sobre Seu Jairo, quando ainda era jovem, 17 anos de idade. O papel estava todo carcomido e a letra difícil de entender, mas os dois viram o papel e podiam jurar que dizia que Jairo havia morrido afogado em 1971, o que não fazia o menor sentido.

Isso estreitou os laços entre os dois, gerando até algumas crises de ciúmes no marido dela e na esposa dele. Mas eles se conheciam desde pequenos por causa dos pais, passaram a infância juntos, o que acalmou os ânimos dos cônjuges. Se fosse para namorar, já teriam feito faz tempo. Foi numa dessas conversas que recebeu a notícia fresca: Zé Segundo acabara de morrer no hospital da cidade. Um dos médicos que conhecia Dr. Emílio informou Patrício, até porque a parente mais próxima de Zé Segundo morava em outro estado, uma sobrinha que nem atendia as ligações.

A empregada que cuidava da casa do idoso disse que ele estava vendo televisão, pediu um copo d’água, e quando a mulher voltou com ele, Zé Segundo estava apagado. Levado ao hospital, não resistiu. Zé era o mais querido pelos filhos dos amigos, afinal, era o que trazia os presentes mais impressionantes na infância. Julia e Patricio se lembram de gastar horrores com sorvetes e doces toda vez que o Tio Zé vinha em casa e dava um presentinho.

Um pouco por afeto infantil, um pouco por curiosidade sobre Neli, os dois trataram de organizar o velório. A sobrinha apareceu quase no final, mais preocupada com quanto teria que gastar da herança para pagar pelos trâmites legais do que com o tio. Zé não tinha família próxima e uma fama de beberrão inconveniente, cercado por sanguessugas atrás do seu dinheiro e nada mais. O velório foi simples e vazio, o enterro idem. O mausoléu dos pais e avós era o maior de todos no cemitério. Julia, Patrício e seus companheiros eram metade dos presentes.

Patrício cutuca Julia e aponta. Algumas quadras de distância e lá estava Neli. O guarda-chuva ainda aberto, mas como o dia era de sol, servia como sombrinha. Os dois pedem licença e seguem até a senhora loira.

“Esse é o Patrício, filho do Dr. Emílio.” – começa Julia.

“Prazer.” – ele emenda.

Neli apenas acena com a cabeça.

“Tem muita gente falando de você na cidade.” – Patrício diz.

“Deixa eles falarem. Não muda nada.” – Neli continua inflexível.

“Então você conhecia os três. A gente quer saber o que aconteceu entre vocês… minha tia falou sobre uma menina loira que vinha buscar meu pai… você sabe algo sobre isso?”

Neli se volta para Julia.

“O Emílio me detestava. O Zé também, mas ele era de esnobar. Eu tinha chegado na cidade faz pouco tempo, meus pais viviam numa chácara e eu vivia perto do rio. Eu conheci os três pescando. Seu pai me chamou a atenção. Sempre sério, difícil de ler.”

Os dois escutam atentamente.

“Eu não conhecia ninguém. Seu pai me levou para casa, me apresentou a família. Sua tia brincava que a gente ia casar, seu pai ficava vermelho de vergonha. Eu não tinha nome para ela, sempre era a menina loira. Eu nem nasci loira, eu pintava o cabelo com papel colorido.”

Neli sorri pela primeira vez, abre a bolsa e puxa um maço de cigarros. Patrício oferece o isqueiro, e ela dá a primeira tragada.

“Eu queria ir junto com o seu pai. Ele me levava para pescar com os amigos. O seu pai, Patrício, ele não escondia de ninguém que era a pior coisa do mundo ter uma garota junto. Ainda mais uma tão nova. Eu me esforçava para mostrar para ele que eu não era uma fracote. Eu mexia nas iscas sem medo, não reclamava dos mosquitos, fazia tudo para ser mais um menino com eles. Mas não adiantava. Você sabe como ele era teimoso.”

Patrício dá um riso contido, concordando.

“Um dia, seu pai pescou um peixe enorme, a gente estava num barquinho minúsculo, todo mundo apertado. Ele tirou metade do bicho da água, mas não conseguia avançar mais. Eu quis mostrar como era forte, como era útil… e pulei na água achando que poderia empurrar o peixe para dentro do barco. Mas na minha empolgação, eu esqueci que não sabia nadar direito. Do jeito que caí, afundei e não conseguia subir.”

Julia arregala os olhos.

“O Jairo pulou atrás de mim. Ele conseguiu me puxar para cima, minha cabeça saindo um pouco da água. Mas eu entrei em pânico. Ele começou a afundar junto comigo. Eu não lembro bem o que aconteceu depois, só lembro de nós quatro na margem do rio, o Emilio gritando comigo e o Zé chorando ajoelhado na terra. Eu tossia água sem parar.”

Neli começa a ficar com os olhos marejados.

“O Emilio me disse que eu tinha matado o Jairo antes de sair com o Zé arrastando o seu pai apagado dali. Eu fiquei sozinha, ainda tonta, por sei lá… umas duas horas. Eu só lembrava do que o Emilio tinha dito. Eu rezei pelo seu pai, eu disse que Deus poderia me levar se deixasse ele viver. Era muita culpa. Muita culpa. Eu não queria fazer mal para o Jairo…”

As lágrimas começam a verter do rosto de Neli. Julia a abraça, Patrício se aproxima das duas.

“Eu falei em voz alta, para quem quisesse ouvir, que eu faria tudo para salvar o Jairo. Até hoje eu não sei se eu ouvi alguma coisa ou se imaginei, mas alguém… ou alguma coisa me respondeu.”

Julia se afasta.

“Eu confirmei. Qualquer coisa.”

Patricio também.

“Eu dei os meus dias de vida para ele. Mas… ele disse que precisava de mais. Tinham que ser dias de valor para ele. Do primeiro amor eu tirei dez anos. Da primeira mulher… vinte. Dos pais mais cinco. Dos filhos eu não tive coragem. E dos amigos, o suficiente para nenhum deles ficar sozinho por muito tempo… eu carreguei isso a vida toda. Eu não tirei mais dos meus, eu deveria ter tirado mais dos meus, mas eu fiquei com medo… e com ciúme da mulher com a qual ele casaria…”

Julia dá um tapa no rosto de Neli. Patricio a segura para evitar que a coisa continuasse. Neli não reage, só chora. Patrício leva Julia de volta, dizendo para ela que era só uma superstição de velha, que não tinha nada de real naquilo. Neli fica sozinha ali.

A história que contou nunca saiu dos lábios de Julia ou Patrício, a primeira não queria interferir com o ritual, o segundo se convenceu que era apenas uma bobagem. A fama, contanto, perdurou. A história da mulher misteriosa que assombrava funerais se espalhou, e Neli virou uma espécie de celebridade macabra na região. Tem gente que jura que vê ela em diversos outros velórios, embora Neli diga que nunca mais tenha frequentado o velório público.

A fama, infame como fosse, a fez considerar a carreira política. Sonha em deixar um legado maior e apagar as histórias que contam sobre ela até hoje. O voto de Julia com certeza não terá.

Para dizer que eu estou desperdiçando meu talento e deveria me concentrar em ser pedreiro, para dizer que pensou em coisas muito piores, ou mesmo para dizer que fazer acordo com o capeta é parte do trabalho mesmo: comente.

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Comments (3)

  • Somir, posso te afirmar que você NÃO está desperdiçando seu talento. Este é um texto despretensioso, escrito para o Desfavor, mas eu te digo, sem medo de errar, que é uma história melhor e mais bem escrita que muita ficção de autor metido a besta que anda por aí. E eu assistiria a um filme que a tivesse como argumento….

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