Debatidos.

Ontem aconteceu o primeiro e provavelmente único debate entre Donald Trump e Kamala Harris pela presidência dos EUA. A pergunta que a mídia inteira tenta responder é quem ganhou… mas eu acho que em tempos de polarização essa pergunta não é mais tão relevante. Então, o que podemos tirar dessa conversa?

Ganhar debate naquele sentido clássico do candidato que foi mais coerente e se apresentou como pessoa relevante para o cargo que vai ocupar? Claro que foi a Kamala Harris. Donald Trump perderia um concurso de lógica simples na fala até mesmo para uma criança. Não é isso o que ele faz. Trump usa frases curtas, repete sem parar as mesmas coisas para gerar o máximo de impacto possível.

Kamala fala como uma pessoa “normal” bem treinada no seu discurso. É a diferença entre a apresentação do nerd da classe e do bagunceiro da turma do fundão. Tem uma diferença clara em qualidade de conteúdo e capacidade de entretenimento aí. É uma barbaridade atrás da outra quando Trump fala, mas todas são interessantes, seja para o cidadão que acredita no que ele diz ou no que não acredita que ele disse isso.

Então, é claro que a maioria dos jornalistas e comentaristas de política desse mundo vão dizer que Kamala ganhou. Montar uma frase com mais de cinco palavras já é suficiente para vencer Trump nesse sentido. Faz diferença? Provavelmente não. Não é como se o povo americano estivesse conhecendo o Trump agora. Todo mundo sabe como ele se expressa, todo mundo sabe mais ou menos o conteúdo dele, seria até estranho se ele fosse muito coerente sobre planos de governo.

O que estava em jogo de verdade era a forma como ambos se portavam quando em confronto direto. Pode falar o que quiser de Trump, mas ele é consistente. Ele tem sua própria vibe de desinteresse no outro, narcisismo de altíssimo nível. Durante o debate, Kamala escolheu a estratégia de abordar Trump mais diretamente, foi até ele para cumprimentar, o que deixou o laranjão sem graça. E durante todo o debate, ela olhava para ele, e ele evitava o olhar.

Os democratas interpretaram isso como ela sendo forte e ele com medinho de mulher, os republicanos interpretaram como ela desesperada por atenção ele sendo “alfa” não dando a mínima para ela. Até por isso eu digo que as coisas são mais relativas hoje em dia, como boa parte do público americano já sabe em quem vai votar, vão entender o que acharem mais conveniente para seu candidato preferido.

Como pessoa que desconfia de ambos os candidatos, eu senti que Trump realmente sentiu um pouco a intensidade de Kamala, que deve ter planejado até os mínimos detalhes de como se apresentaria ao lado do adversário. Nesse ponto eu acredito que ela entregou boa parte do que se esperava dela: não amarelou, gaguejou um pouco (porque o Trump NUNCA gagueja, é o superpoder dele falar sem pensar), mas era um ser humano atento e ligado, ao contrário do desastre que era Biden gagá.

Trump não teve a vantagem incontestável que costumava ter contra candidatos mais envergonhados ou despreparados para seus ataques aleatórios, mas se o povo americano quer alguém que tem certeza de tudo o que diz, ele foi quase perfeito. Quase, e eu já falo sobre isso.

Mas primeiro, as bombas da vez: Trump criou a notícia do debate ao dizer que os imigrantes haitianos estavam comendo os animais de estimação dos americanos. Eu fique embasbacado, mas de um ponto de vista publicitário, foi genial: todo mundo nos EUA está falando disso, concordando ou não. A cena mental do haitiano invadindo a casa das pessoas para roubar o gato ou o cachorro para cozinhar é exatamente o que faz as pessoas reagirem.

Existe um fundo de verdade com um vídeo de um homem carregando um ganso de um parque local pelas ruas americanas, e um vídeo não confirmado de pessoas cozinhando um gato. Pessoas negras e esquálidas, o suficiente para serem chamadas de haitianas. O poder dessa afirmação escalafobética é que faz as pessoas pesquisarem e acharem vídeos e rumores. Os EUA estão sofrendo com uma crise de animais de estimação sendo consumidos por imigrantes ilegais? Não, claro que não.

Mas todo mundo vai achar alguma coisa sobre o tema, e na armadilha moderna de gerar engajamento até mesmo desmentindo a afirmação, isso deixou Kamala em segundo plano, e ela realmente teve uma boa performance no debate. Não se contentando com isso, Trump tinha mais pancadas: disse que se ela fosse eleita, em 2 anos Israel acabaria. O que deve ter deixado muito nazista interessado nos democratas pela primeira vez em mais de século.

E uma bela trollada de Trump em cima dela quando o tema foi para a guerra na Ucrânia: Kamala disse que tinha ido negociar com Zelensky e que estava lá na hora mais perigosa. Trump devolve que ela foi para lá conversar com eles e dois dias depois começou uma guerra, que ela deveria ser muito incompetente. Eu sei que é errado, mas não tem como não rir do espírito zombeteiro dele.

Trump disse que resolveria as guerras de Ucrânia e Faixa de Gaza rapidamente porque todo mundo o respeitava, Kamala devolveu que todo mundo tirava era sarro dele, o que deu para ver que azedou um pouco seu humor. O ponto fraco de Trump é o ego, eu acho que Kamala deveria ter sacaneado ele um pouco mais, dado umas respostas debochadas para deixar o laranjão sem graça, mas não parece ser o estilo dela ter esse tipo de gatilho rápido, fez muito menos do que poderia.

Repito: uma pessoa com mais de dois neurônios sabe a diferença entre uma candidata merda normal (Kamala) e um candidato merda GG Plus como Trump. Isso não quer dizer que a vitória de Kamala seja algo a mais de não ter imitado Trump na metralhadora giratória de excremento ideológico. É que nem parabenizar os candidatos a prefeito de São Paulo por serem menos imbecis que o Marçal. Digno de nota seria ser PIOR que eles.

Mas como eu já disse, é um jogo de imagem, de timing da opinião pública. Por sorte ou por estratégia, a desistência de Biden e a chegada de Kamala na semana seguinte do atentado de Trump roubou a cena. A campanha democrata estava numa bolha de arco-íris de felicidade e esperança por causa da saída de Biden, mas o tempo passa e todo mundo vai buscar a próxima dose de dopamina política.

Kamala estava no fim do impacto do lançamento da campanha, e o debate era essencial para criar novos fatos e manter as pessoas engajadas com sua campanha. O ideal teria sido ela ter dado uma esfregada no Trump ao ponto de ele gaguejar, mas eu não sei se já nasceu alguém capaz disso. Trump conseguiu criar pontos de discussão na sociedade americana, Kamala falou mal dele e falou um pouco de propostas.

Talvez o maior alento da campanha da candidata democrata tenha sido o timing perfeito de Taylor Swift, a popstar americana esperou acabar o debate para declarar apoio explícito a Kamala. Não que tenha sido uma surpresa, mas é um fato midiático que mexe com as manchetes do dia seguinte. Se fosse só o debate, Trump teria vencido a batalha dos “cortes” do dia seguinte, mas eu já percebi na mídia americana que Taylor conseguiu bagunçar um pouco do day after das baboseiras trumpianas.

Porque a minha análise sobre quem vai vencer a eleição americana está diretamente relacionada com quem conseguir o poder sobre o ciclo de notícias por mais tempo. 90% dos americanos já parecem decididos, e provavelmente sem ligar muito para propostas. O que resta a definir é uma minoria menos politizada, seja por ter cabeça-de-vento ou seja por não ter tempo para se importar com isso… esses podem ser impactados até o último segundo por quem virem mais vezes na grande mídia. Ou mesmo impactados por alguma alegação (verdadeira ou não) em seus jornais e timelines.

Kamala ganhou o debate tradicional porque (dãããã) era contra o Trump; Trump parece ter ganhado (apertado) o ciclo de notícias e atenção, mas as coisas estão em aberto. Várias pesquisas e casas de apostas estão indecisas sobre quem está na frente, e isso tem toda cara que vai se definir muito próximo da eleição. Os democratas, com razão, acharam que o debate foi útil e já estão pedindo repeteco mês que vem, Trump parece meio em cima do muro. Na hora disse que topava, mas desde então já deu declarações dúbias sobre aceitar mais um.

Porque teve um momento complicado para Trump: foi questionado pelos âncoras sobre seu plano para a saúde, e porque nunca cumpriu a promessa de mudar o sistema criado por Obama. Ele disse que tinha um plano, perguntaram qual… ele disse que era algo a se ver de acordo com a situação. Foi cobrado de novo por uma resposta, e disse uma frase que vai ser usada para sacaneá-lo: disse que tinha os conceitos de um plano (tradução não literal), para a cara de confusão de todos os presentes. Foi um momento de fraqueza, onde ele não conseguiu esconder que o plano sempre foi não ter plano.

Nada mudou na previsão de que vai ser apertado. O momento de Kamala passou e ela vai ter que continuar tirando coelhos da cartola para manter a base animada e as esperanças em alta. Meio como o brasileiro médio, o americano médio parece não dar a mínima se o governante vai cuidar da economia ou cagar em cima da mesa presidencial, propostas dificilmente resolvem essa eleição.

Vai ser uma batalha puramente midiática até novembro. E como já vimos em 2016, não dá para contar apenas com celebridade rica dizendo que gosta mais da Kamala, tem que achar coisas que gerem conversa entre o povão. E nisso Trump ainda é mestre.

Ficarei com o balde de pipoca jumbo com litros de manteiga artificial (para homenagear os americanos) esperando eles continuarem se cacetando. E que vença o melhor (em fazer barulho).

Para dizer que não vai votar em ninguém, para dizer que eu sou um comunista, ou mesmo para dizer que ficou tentado com a ideia de Kamala destruir Israel em 2 anos: comente.

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