Poder corrompido.

Todo mundo tem alguma fantasia de poder absoluto. Nem que seja de uma forma humorística, dizendo as maluquices que faria se fosse ditador do mundo. Tanto que é normal ter a ideia de que tem como dar um jeito nas pessoas e na sociedade em geral se alguém realmente puder mandar sem limites. Basta que seja uma pessoa boa, fazendo as coisas certas. Qual é o problema com essa ideia?

Segundo eu e muitas pessoas mais bem estudadas das quais aprendi, o problema é fundamental: poder é incompatível com igualdade. O cobertor sempre vai ser curto demais, quanto mais igualdade, menos poder; quando mais poder, menos igualdade. Ou, numa analogia mais mecânica, quanto mais forte o motor, menos direção o carro tem. O motor é a igualdade, a direção é o poder.

Sociedades muito desiguais perdem força econômica e começam a estagnar, caso clássico do Brasil. Sociedades muito igualitárias começam a ficar confusas para onde ir, mesmo que tenham muita força para acelerar. Vemos isso em boa parte do primeiro mundo. É uma função de quanta gente pode direcionar o futuro de uma nação. Se sua sociedade é rica e cheia de pessoas educadas, tem muita capacidade cerebral e tempo livre para discutir política e pensar em questões filosóficas sobre o que é bom, o que é justo, o que é nobre…

Se sua sociedade é composta basicamente de criminosos ricos e uma massa paupérrima, não tem muita gente para dar pitaco de verdade, mas mesmo com direcionamentos claros, faltam recursos e material humano para chegar lá. Não é à toa que mesmo num país totalmente controlado pelo governo como a Coreia do Norte, as coisas não saem do lugar. É um país com umas duas ou três décadas de atraso em relação ao resto do mundo. O tempo simplesmente anda mais devagar por lá.

O que eu argumento é que não é que ainda não achamos o tal do ditador iluminado, é que simplesmente não vai funcionar. Para chegar ao ponto de tirar vantagem de uma visão única para o povo, o povo precisa estar numa desgraça tão grande que não consegue entregar competência ou esforço.

Ao invés de ficar pensando se um ditador seria uma pessoa boa ou ruim, que tal pensar em como ele faria um país funcionar, na prática? O sistema autocrático faz sentido para os objetivos que temos como espécie? Porque me parece que mesmo inconscientemente, o ser humano sente quando não tem liberdade nem capacidade de crescimento na vida, e naturalmente desacelera sua criatividade e ânimo de trabalhar.

E eu digo inconscientemente por que mesmo em sistemas que tinham defensores ideológicos ferrenhos como o comunismo soviético, o país ainda ficava girando em falso, apinhado de corruptos e incompetentes. A pessoa pode acreditar que está no sistema perfeito e que o bem venceu, mas isso ainda não a faz agir com o mesmo ânimo que um cidadão livre de um país em que não se gosta dos líderes.

Mesmo quem vive no mundo de fantasia onde ditaduras não reprimem violentamente os dissidentes (todas fizeram e fazem isso), podemos argumentar que o golpe na livre iniciativa é tão ou mais incapacitante que cacetetes, balas e salas de tortura. Só não é tão explícito. Tem algo de “mágico” na crença da liberdade, algo que faz as pessoas darem um pouco mais de si para construir algo.

E quanto mais poder você exerce sobre essa pessoa, menos ela consegue acessar esse lugar especial da mente que cria e vai além do obrigatório. Talvez seja até um aspecto evolutivo, passaram os genes para frente aquelas pessoas que souberam aceitar um poder maior e se organizar em sociedades. Somos programados para valorizar esse tipo de paz que vem de ter um líder forte, mas é sempre uma troca. Menos expressão, menos amor pelo que se faz.

Nem estou fazendo juízo de valor aqui, mesmo que eu tenha uma rejeição forte a ser controlado por líderes, eu entendo que existe uma compensação de estar livre da responsabilidade. Você não é maluco de querer que alguém finalmente bote ordem nessa bagunça, mesmo que mate algumas “pessoas problemáticas” no caminho. Deve estar no nosso pacote de fábrica mesmo.

O que eu estou dizendo é que salvo alguma invenção que eu não consigo prever, sempre vamos estar presos nessa dualidade entre desenvolvimento e controle, igualdade e poder. Uma sociedade bem resolvida acha formas de dosar as duas coisas e ir arrumando as medidas de acordo com o passar do tempo, mas não acredito que seja possível correr só para um lado ou só para o outro para alcançar uma vida melhor.

O ditador tem vantagens automáticas enquanto piora a qualidade de vida da população. Não é à toa que líderes como Maduro não se importam de destruir a economia do país e ter quase todos os cérebros fugindo para longe: se você já está numa boa posição de poder, gente pobre e ignorante é muito mais simples de controlar. Que os inteligentes e esforçados que conseguirem fugir fujam! Você precisa de uma economia pujante para sustentar uma população rica que se desenvolve rapidamente, mas qualquer fontezinha de renda serve quando só os líderes querem ser pagos.

E as coisas vão se retroalimentando: quanto mais o povo é esmagado, menos capaz se torna de ser uma alternativa. Vemos isso em vários países africanos assolados por guerras civis, mesmo que exista alternância de poder, é entre uma gente tão brutalizada que só troca o nome do senhor da guerra. Não se forma uma classe de pessoas capazes de mudar o rumo do país. O poder corrompe o poderoso e apodrece o país ao seu redor.

Ditaduras provavelmente nunca vão funcionar tão bem quanto democracias para desenvolver a população porque elas estragam o capital humano do país. Pode ser um alívio nos primeiros meses e anos, mas a deterioração vai se instalando, porque quanto mais dinheiro e educação as pessoas têm, mais elas começam a enxergar os erros do ditador e querer fazer as coisas de uma forma diferente.

Ou a ditadura apodrece, ou o povo apodrece. Não é um sistema sustentável, com bons ou maus líderes. Já deveria ter sido percebido pela maioria da humanidade depois de tantas tentativas frustradas, mas eu imagino que democracias apodrecem também. Quando você vê polarização interminável e candidatos cada vez mais ridículos, é comum ficar desanimado com o processo todo.

É normal olhar para esse povão e achar que não tem condição de decidir nada. Ou mesmo achar que perdemos se tivermos no poder representantes dessa gente. Mas se a alternativa é ir para um sistema que precisa manter o povo subjugado o tempo todo, o pouco que temos de inteligência nesse país vai começar a diminuir. Quem pode fugir foge, quem não pode vai se apagando lentamente como resposta ao poder absoluto.

Sem igualdade e liberdade, tem algo no ser humano que vai morrendo. E é justamente o algo que nos faz dar saltos de qualidade de vida, tecnologia e felicidade. Pode não morrer imediatamente, mas é como uma planta enfiada num quarto escuro. Definha. Se a democracia não for a resposta, com certeza o autoritarismo não é.

Pode parecer uma conversa bem óbvia, mas eu estou plantando uma semente: muita gente que é contra a ditadura não sabe articular essas questões na hora de conversar com quem acredita em soluções mágicas. Não é pensamento colorido acreditar que a democracia é melhor que a alternativa oferecida, é realismo. É ver como historicamente os povos controlados por déspotas são mais lentos para evoluir, e eventualmente chegam num grau de estagnação tão horrível que não tem mais para onde ir.

Foi a troca entre poder e igualdade. A maioria das pessoas tem alguma noção do perigo que seria se não tivéssemos lei nenhuma, igualdade teórica plena, mas poucos pensam sobre como poder teórico pleno também leva para um buraco. Ditadura e anarquia são dois problemas terríveis para o futuro de qualquer povo. E não à toa, a maioria das ditaduras termina em anarquias e a maioria das anarquias terminam em ditaduras: os extremos se encontram do lado oposto do equilíbrio.

Se você é contra uma, provavelmente deveria ser contra a outra. Os dois lados ignoram a natureza humana, com a nossa capacidade inata de formar sociedades. Se apenas um manda, não tem o aspecto social de verdade. Não tem trocas, não tem cooperação, não tem nem confiança, igualzinho os piores tipos de anarquia. Mesmo os libertários mais libertários defendem pelo menos organizações menores que um Estado entre vizinhos e pequenas comunidades.

Mas o autoritário ou defensor de autoritário ainda teima que sua visão de mundo é baseada na nossa natureza, e que no final das contas só quer uma sociedade melhor para todos nós. Quanto mais poder perdemos ou cedemos, menos humanos nos tornamos. Quanto menos liberdade e igualdade enxergamos ao nosso redor, igualmente.

Ditaduras não são ruins simplesmente porque eu não quero obedecer, são ruins porque elas desumanizam e matam nosso espírito inovador. Se for para ser lentamente transformado em bicho, eu prefiro político retardado mesmo…

Para dizer que agora já sabe que argumento usar para acabar sendo chamado de viadinho do mesmo jeito, para dizer que eu poderia ser seu ditador, ou mesmo para dizer que o ser humano nem merece liberdade: comente.

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Comments (2)

  • – Antes: “Este país está uma zona! Chega de bagunça! Precisamos de um governante forte, de pulso firme!”
    – Depois: “Ninguém aguenta mais tanto totalitarsimo! Chega de ditadura! Esse cara acha que é dono do país?”

    • Saudades de quando os temas “para aquele meme 23:59” poderiam ser com certeza dos mais leves…Mesmo assim foi uma síntese talentosa! hahahahaha

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