Perdão.

Vamos conversar sobre perdão?

Quando falamos em perdão, normalmente, as pessoas vinculam seu conceito à ideia religiosa, virtuosa ou moral da palavra. Perdoar é passar por cima de tudo, relevar, esquecer. E esse perdão, meus queridos, é um enorme desfavor e nós até chegamos a fazer um texto sobre ele em um passado remoto do Desfavor. Hora de tentar entender o real significado de perdão.

Para começo de conversa, o perdão é interno. Não tem absolutamente nenhuma participação do outro. Você, no seu interior, perdoa ou não algo ou alguém. É você com você mesmo.

Não tem rituais, não tem regras e, acima de tudo, não pode ter barganha: “eu perdoo o Fulano, mas só se ele…” (complete a frase como quiser). Isso não é perdão. Isso é negociação: você suspende sua putez pois o outro te ofereceu algo que te interessa o suficiente para fazer essa transação.

Perdão não é fingir que nada aconteceu ou apagar o ocorrido. Perdão é não guardar sentimentos negativos e compreender que o outro fez o que fez pois não tinha a consciência/capacidade de fazer diferente.

Isso quer dizer que, se perdoar, você não é obrigado a voltar a falar com o outro como se nada nem a mantê-lo na sua vida. Apenas não vai guardar sentimentos negativos dele. Então, se uma pessoa te faz mal, é perfeitamente possível perdoá-la, mas não querer retomar contato com ela.

Perdoar significa que você não vai carregar essa raiva, não vai permitir que isso te desperte emoções negativas, não vai se deixar afetar. Mas, se partindo desse lugar de consciência, você entender que o convívio com o outo te é nocivo, é sagrado direito seu de perdoar porém não querer mais contato. Uma coisa não exclui a outra.

Não guardo raiva, não quero te punir, não quero me vingar, eu simplesmente concluo que a sua presença na minha vida não é do meu interesse. Está perdoado, porém não fará mais parte da minha vida. Isso é perdão com consciência e autopreservação.

Diferente de: “vai ficar sem mim e vai sofrer para aprender!”. Isso não é perdão. Quando o que fizeram conosco de alguma forma nos ativa, nos impacta com sentimentos ruins, nos desperta uma reação, seja ela de sofrer ou de querer ver o outro sofrer ou punido, não há perdão. Ainda que não seja dito, se é sentido, não há perdão. Se você tem essa sensação dentro de você, você não perdoou. E tá tudo bem também, sagrado direito seu não perdoar.

Perdão não é sobre ser nobre, magnânimo e superior ao outro vil mortal que cometeu um erro. Esse “Eu te perdoo” com uma aura de superioridade moral ou caridade é ego puro.

O perdão nós damos por nós mesmos, ou seja, pela consciência de que faz mal entrar em contato constantemente com sentimentos negativos. Pela consciência de que estamos todos em um processo de evolução e se o colega está um pouco atrás de você no processo e não faz coisas muito legais, não faz sentido nutrir raiva dele, pois ele não pode fazer diferente. Pela consciência de que não vale a pena permitir que um erro do outro impacte nossa vida dessa forma, se o outro é tão ruim, a melhor coisa é esquecer que ele existe, retirar toda a importância e relevância que ele tenha na nossa vida.

Perdão não se comunica em público, isso também é ego puro: vejam como sou bondosa, eu estou perdoando esta pessoa. Perdão é interno e pode ou não ser comunicado, mas com privacidade, para a pessoa à qual se destina.

Perdoar não é motivo de orgulho nem te torna melhor do que ninguém, é apenas uma escolha sua para com você mesmo que tende a ser mais saudável para a sua mente. Perdão não coma pontos com ninguém, não garante pedaço no céu e certamente não merece aplausos. É obrigação de qualquer pessoa decente.

Perdão e medo não são compatíveis. Achar que perdão vai ter tornar mais vulnerável é medo: “se eu falar que perdoei a pessoa vai fazer novamente comigo”. Se você acha que a pessoa vai fazer novamente, perdoe e afaste-se. Perdão e medo nunca poderão andar de mãos dadas, se o medo entra, o perdão sai.

Perdoar não é jogar toda a culpa do ocorrido no outro, passando um pano para a sua parte: “ok, eu perdoo a minha mãe por todos os estragos que ela fez na minha cabeça que me tornaram a pessoa com problemas que sou hoje”. Não. Perdoar é entender que o outro errou pois não tinha a possibilidade de fazer diferente. E se fazer responsável pela sua parte: o que você é hoje não é o resultado dos erros de X ou Y e sim de como você lidou com esses erros.

Perdoar não é colocar o outro em dívida: “eu te perdoei por aquilo, então agora você me deve uma, é bom fazer o que eu quero, me tratar bem e me deixar escolher qual filme vamos ver no final de semana”. O perdão com qualquer outro propósito que não seja poder virar essa página e não se deixar afetar pelo que aconteceu não é perdão, é manipulação, é barganha, é um escambo emocional.

Perdão também não pode ser justificativa para tolerar abusos: “é que eu sou muito boa, sabe como é, fulano me cobre de cacete e eu sempre perdoo, afinal, é o que Jesus faria”. Não, não é o que Jesus faria e você não é boa, é dependente emocional que não consegue se afastar de uma pessoa claramente abusiva e reveste isso com o manto nobre do perdão. Não estamos dizendo que é para guardar rancor, não guarde, mas afaste-se. Perdoar não implica em continuar se sujeitando a abusos.

Perdão não é condicional, nem moeda de troca: “eu perdoo o Fulano mas só se ele pedir perdão ou só se ele mudar tal coisa ou só se ele prometer tal coisa”. Esquece, isso não é perdão. O perdão nada tem a ver com o Fulano ou com as suas exigências, o que você está oferecendo não é perdão e sim um afago na consciência pesado do outro, fazendo um acordo de parar de culpá-lo por um erro em troca dele te dar algo que faça seu ego se sentir melhor.

Perdão não é aval para fazer o mesmo que perdoou e cobrar reciprocidade: “quando você gritou comigo, eu te perdoei, então agora que eu gritei com você, você tem que me perdoar”. Não, não. Isso se chama projeto de sofrimento casado. Isso se chama relação abusiva. Isso se chama insanidade. Perdão é desinteressado, incondicional e de coração. Perdão não contabiliza pontos ou créditos para fazer ou deixar de fazer nada.

Perdão não é vinculado a outros sentimentos. Não existe perdoar o Fulano “porque o amo muito” ou perdoar o Fulano, mas ainda sentir ódio do que ele fez. Perdão significa precisamente o contrário: deixar ir qualquer sentimento que aquele feito te ative, te desperte, te traga.

Dizer que perdoa alguém porque ama a pessoa é um equívoco, a gente perdoa por querer perdoar, por nós mesmos e pelo mal que aquilo vai nos fazer, não por amar, tanto é que tem muita gente que jura que perdoou e depois joga na cara, fica ressentida ou volta no assunto infinitas vezes. Repito: o perdão não é sobre o outro e sim sobre ser o melhor para você mesmo.

Perdoar não significa eximir a pessoa que errou da responsabilidade pelos seus erros. Se um pai perdoa o assassino da filha não está implícito que ele esteja autorizando o não cumprimento de pena pelo crime de homicídio. Erros tem consequências e elas não deixam de existir pelo perdão. O perdão é apenas sobre como aquela pessoa se sente, como ela resolveu lidar com o erro e as consequências desse erro dentro dela.

Perdão é irrevogável, já que significa virar aquela página e que aquilo não signifique mais absolutamente nada para você. Perdoar é escolher que aquele erro não te afete, não tenha relevância, não esteja mais na sua vida. E se de fato sua existência foi removida da sua vida, o perdão não pode ser desfeito, pois o que lhe deu causa não existe mais.

E, numa última instância tão abstrata que eu nem teria a petulância de tentar explicar como funciona, pois nem acho que possa ser traduzida em palavras, o perdão acaba sendo sempre para nós mesmos e para a nossa visão errada da situação.

Para o nosso esperneio. Para a nossa birra em não aceitar colher o que plantamos. Para a nossa não-confiança de que existe um motivo para tudo. Para a nossa arrogância de olhar para tudo como perda e não como aprendizado. Para a nossa pequenez de pensar que nossa opinião medíocre corresponde a 100% da realidade e de tudo que existe.

Para dizer que devemos perdoar as pessoas banidas (não guardamos nenhum rancor, internamente estão todos perdoados, mas as consequências do erro persistirão), para dizer que esse perdão que eu narrei é impossível (não é não) ou ainda para dizer que perdoar é para os fracos os fortes se vingam (saúde mental mandou um abraço): comente.

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Comments (20)

  • Esse é um daqueles textos assim que descem rasgando, difíceis de engolir e de praticar. Até porque, como lidar quando se trata de perdoar parentes, como a mãe, que só te foderam a vida inteira, só te puxaram pra baixo, só te deram trabalho e dor de cabeça? As vezes não é tão simples engolir a ideia de que “ahh porque o outro errou pois não tinha a possibilidade de fazer diferente.” Tá, eu faço a minha parte, eu tenho consciência do processo, mas ainda assim, é difícil, ainda mais considerando que os erros alheios dos outros no passado ainda tem consequências no presente e no futuro.

    • Acho que no seu caso a forma mais fácil é entender que o outro tem uma deficiência. Assim como você não ficaria chateado por um paraplégico não conseguir andar, não deve ficar chateado por uma pessoa com um problema de saúde mental não conseguir se comportar de forma normal.

      Existem dois caminhos possíveis: arrumar uma forma de se blindar e impedir que essa pessoa te faça mal (não dando importância ao que ela diz ou faz) ou, se isso não for possível, se afastar, afinal, é perfeitamente possível perdoar mas não ter mais contato pelo fato da pessoa ainda assim nos causar um dano.

  • Sem duvida, perdoar não implica obrigação de interagir novamente, por mais próxima(s) que seja(m) a(s) pessoa(s) objeto desse perdão.

    Perdão é concedido, mas não dou nem bom dia, seja na rua, morando no mesmo prédio ou em festas de família…Simples assim.

    Com 7 bilhões de habitantes nesse planeta, é uma libertação tanto para quem perdoou qianto para o perdoado. Sacaneou aqui, sem problema, tem mais outras 7 bilhões de pessoas nesse mundo para tentar acertar na próxima. Assim como posso descartar esse relacionamento a favor de vários outros em potencial. Ou mais nenhum.

    • Sim, perdão é sobre você com você mesmo e como você se sente.
      Se a pessoa não te traz coisas boas, não conviva.

  • Eu tinha muita dificuldade em perdoar anos atrás. Agora melhorei, embora ainda não tenha chegado no grau de indiferença que gostaria em relação a algumas pessoas que erraram comigo de uma forma que as consequências ainda repercutem na minha vida. Acho que é importante deixar acontecer naturalmente e não forçar, mas sem me agarrar ao que aconteceu. Creio que fica mais fácil depois de lidar com as consequências, que podem não ter sido causadas por minha culpa mas agora são minha responsabilidade.
    Enxergar o perdão como algo que faço por mim mesma e não pelos outros realmente mudou muito as coisas. Eu perdoei e tento perdoar mais porque acho que mereço viver melhor, sem esse peso me incomodando. Fora que, mesmo cortando contato com as pessoas que nos magoaram, ficar remoendo o que elas fizeram as mantém em nossa vida da pior maneira possível…

    • Sim, ficar remoendo não gera nada de bom para nós nem faz qualquer diferença para a situação ou para a pessoa, que nem vai saber que ficamos remoendo. É como tomar veneno e torcer para o outro morrer.

  • Descobri que não sei perdoar. Essa semana mesmo tô muito puto com um colega de trabalho. A gente discutiu e depois ele ficou falando mal de mim nas costas. Não consigo perdoar quem fala por trás em vez de vir se resolver comigo na cara.

  • Não é a primeira vez que encontro Cristo e iluminação espiritual mais em conteúdo ateu ou cético do que com os próprios religiosos, em especial os cristãos.

    Esse é um daqueles conteúdos que vai direto ao ponto, sem firula, sem “contexto x ou y”, sem um “entretanto”. É um texto que traz liberdade, não mais aprisionamento ou incentiva a pessoa se violentar, como no caso quando distorcem o sentido de “dê a outra face”, ou “seja submissa ao marido para ele mudar”, etc.

    Se o Juízo Final da mitologia cristã acontecesse, não me espantaria ver irreligiosos, céticos ou ateus se salvando mais do que gente religiosa.

    • Certamente. Bondade por barganha, por medo ou por interesse não tem qualquer valor. Quando um ateu é bom, ele o é por escolha, por refletir o que tem no seu interior, não por seguir regras.

  • O perdão é importante não para livrar quem o recebe das consequências de seus erros, mas para retirar o ressentimento da alma de quem o concede.

  • Ótimo texto, Sally. Perdoar, no fim das contas, é se livrar de um peso desnecessário que não nos deixa seguir em frente com a vida. Mas, infelizmente, eu tenho conhecidos que já me disseram mais de uma vez com todas as letras e em alto e bom som que JAMAIS PERDOAM nada de quem quer que seja, alegando que isso é “coisa de gente fraca” e que perdoar seria meramente dar sinal verde pro ofensor fazer de novo. Na primeira vez em que ouvi isso, fiquei tão desconcertado que nem consegui responder nada…

    • Talvez conceito de perdão deles seja diferente, seja esse perdão de permitir que o outro te pise ou te explore. Muitas vezes a origem das discordâncias não está na opinião e sim nos conceitos

      • A pessoa tem que estar muito ruim da cabeça e de mal com a vida para guardar rancor até a morte! Ter mágoa durante algum tempo é compreensível, mas depois é preciso, em nome da sanidade, seguir em frente e deixar o passado onde é seu lugar: no passado.

        • Sim. E eu conheço tanta gente que não faz outra coisa na vida além de ficar se remoendo por coisas acontecidas muito tempo atrás…

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