Mentiras sobre mentiras.

A Inglaterra passou por dois momentos distintos de comoção popular recentemente: após um ataque de um maluco com uma faca que matou 3 crianças, grupos locais de igualmente malucos começaram a atacar imigrantes muçulmanos, acreditando que tinha sido um crime cometido por um deles. Uma semana depois, protestos se espalharam pelo país contra esses malucos e o ódio contra imigrantes em geral.

Os fatos conhecidos: o maluco que matou as crianças não teve sua identidade revelada (mais sobre isso depois), o que gerou um rumor sobre a pessoa ser uma imigrante do oriente médio, muçulmana. E para colocar mais gasolina no fogo, o rumor dizia que o crime tinha sido cometido por motivos religiosos.

Sem informações das autoridades, o rumor se espalhou até gerar uma reação raivosa de grupos locais já furiosos com imigrantes e muçulmanos. Só precisavam de uma desculpa, e a tempestade se formou: vários ataques de bandos contra muçulmanos, mesquitas e basicamente todo mundo cuja pele fosse um pouco mais escura.

A onda de ataques racistas e xenófobos gerou uma reação no sentido oposto: muita gente foi para as ruas protestar contra esses malucos que saíram atacando gente por esses motivos absurdos. A gente fala muito sobre os erros da política de imigração europeia, mas não tem como eu chegar aqui e dizer que não estou do lado de quem protestou.

Evidente que é barbárie e injustiça sair atacando todo mundo que você acha que é imigrante. A sociedade inglesa deu uma prova de saúde social ao repudiar os atos. Pode ter mil defeitos na forma como os imigrantes/refugiados são integrados na sociedade local, mas é a derrota total do sistema juntar bandos de hooligans para jogar pedras em mesquitas. Não só não resolve como piora a situação.

Agora, é importante olhar de volta para como as autoridades inglesas lidaram com o ataque brutal contra as meninas. Depois dos ataques contra imigrantes, eles finalmente revelaram quem era o assassino: um inglês. É o tipo da informação que acabaria com a desculpa dos grupos de malucos para cometer os atentados contra imigrantes.

Por que não revelaram quem era logo no começo? Por que esconder a informação? Quando o boato de ser um ataque muçulmano se espalhou, os ingleses tinham a bala de prata contra esse monstro. Mas esperaram muito para usar. Bom, a verdade era que sim, era um inglês, mas filho de imigrantes de Ruanda. Isso importa? Tecnicamente não, tecnicamente sim.

Por que tecnicamente não? Porque é claramente a ação de uma pessoa maluca. A descrição do ataque é típica de adolescente assassino covarde. Como foi no Reino Unido, foi com uma faca, se fosse nos EUA, seria com um rifle. Por mais que o histórico de Ruanda seja de um massacre violentíssimo, isso aconteceu há mais de 30 anos. O jovem tem 17 e viveu a vida toda na Inglaterra.

Por que tecnicamente sim? Porque você pode imaginar a cor de pele de um filho de dois imigrantes de Ruanda. As autoridades inglesas previam uma reação racista e xenófoba do mesmo jeito, como se a cor de pele e a criação por dois estrangeiros fosse o motivo do ataque. Não estavam errados, não falta gente que pensa assim nesse mundo, e cada vez mais gente assim na Inglaterra. Mas o silêncio já é uma escolha política nessa altura do campeonato.

Para proteger negros e africanos em geral de uma reação raivosa da parcela mais descontrolada da sua população, acabaram deixando o alvo mudar para cima dos muçulmanos. Eu entendo o tipo de escolha trágica que autoridades tem que fazer depois de um caso desses. Alguém vai pagar “por tabela” depois de um crime horrível do tipo. Escolheram quem.

E sim, se fosse um rapaz branco, inglês da gema, teriam liberado a informação na hora. Sabemos que quase todo mundo respira aliviado quando é um branco local fazendo essas coisas, porque fica muito mais difícil colocar a culpa em alguma coisa. Vão falar mal das redes sociais e dos videogames, e o assunto morre pouco tempo depois.

O fato de ser um rapaz negro filho de ruandeses fez com quem poderia divulgar a informação tenha segurado até o último minuto, e se você for pesquisar pelo caso, vai perceber que a maioria dos jornais não fala sobre cor de pele ou família, uma escolha com a qual a maioria dos europeus já se acostumou depois de casos do tipo.

Novamente, entendo a preocupação de autoridades e veículos de mídia, mas será que tem função prática? Como vimos, o povão vai achar essa informação de alguma forma, mesmo que tenha que inventar. Depois que vira padrão mostrar quem fez quando é branco e local e esconder quando é de outra cor e/ou relacionado com imigrantes, até mesmo os mais imbecis racistas e xenófobos conseguem ligar os pontos.

A Europa tem um histórico recente de abafar casos de crimes cometidos por islâmicos e africanos, e mesmo que as intenções pareçam nobres, eventualmente isso começa a jogar contra. Se todo mundo sabe que dependendo da cor do criminoso a cobertura muda, todo mundo começa a pensar sobre qual grupo estão tentando proteger dessa vez.

O que seria uma decisão humanista de tentar proteger várias pessoas de reações injustas por causa das ações de um indivíduo começa a ter todo o jeito de uma escolha política. Como se as autoridades estivessem com medo de lidar com as consequências de décadas de políticas exploratórias de imigrantes e séculos de colonialismo. Não é mais sobre proteger o imigrante e a minoria, é sobre se proteger das repercussões das péssimas decisões tomadas até aqui.

Povão não sabe articular isso, mas sente que tem algo errado. Sente que esse controle da informação está contaminado por políticos incompetentes que aceitam estragar a vida dos mais pobres em troca de mais mão-de-obra e votos baratos. Novamente, as pessoas produzindo conteúdo sobre o tema podem até ter uma ideia bonita ao querer proteger os imigrantes escondendo dados sobre o criminoso, mas depois de décadas da mesma estratégia, todo mundo percebeu!

E aí as notícias falsas assumem o controle. Porque elas tem uma ilusão de veracidade: falam sobre as pessoas que a grande mídia não fala. A pessoa tende a acreditar mais em quem diz que foi um imigrante muçulmano do quem diz que que um carro explodiu, que Trump caiu, que uma arma matou 20 pessoas… uma escolha de autoridades e mídia profissional que até fazia seu sentido anos atrás, mas que já caducou.

E a alternativa a lidar com os malucos que querem matar imigrantes só por terem a cor de pele errada é dar força para notícias falsas que só alimentam as crenças prévias desses malucos. A estratégia não funciona mais. O mundo girou ao redor dela e começou a criar situações como as que vimos na Inglaterra.

Muitas vezes o que parece certo é só isso, uma ilusão. Ou a Europa lida com os imigrantes com a realidade, ou a mentira toma conta de vez. O que achavam que ia acontecer depois de tanto tempo omitindo a informação do povo?

Para dizer que eu estou preocupado demais com a Europa, para dizer que temos que banir facas de assalto, ou mesmo para dizer que estou passando pano para racista e xenófobo (quer saber como eu sei que você não leu o texto?): comente.

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Comments (8)

  • E tudo isso começou por acreditarem que divulgar o nome do Mohamed no noticiário era “discurso de ódio”.

    O problema é que, a essa altura do campeonato, não adianta mais voltar atrás e começar a dar nomes aos bois. As pessoas estão com ressentimento dobrado em relação aos imigrantes – pelo aumento na criminalidade, e pelo acobertamento por parte de um governo que deveria proteger os locais da violência, e não o contrário.

    Creio que o clima já azedou para além da possibilidade de reparo.

  • MEI Precarizado

    E a alternativa a lidar com os malucos que querem matar imigrantes só por terem a cor de pele errada é dar força para notícias falsas que só alimentam as crenças prévias desses malucos.

    Por incrível que possa parecer, já existe um plano B pra lidar com essa situação. Usar os Sleeping Giants pra fazer patrulha em cima dessa turma e endurecer penas sobre a “desinformação” nas redes sociais, fazendo com que as mesmas doam também no bolso.

    Claro que isso não vai minar a insatisfação coletiva, mas torna a situação mais administrável.

    • Multas não sei, mas pena já existe. Coleguinha ficou ofendido com sua piadinha no Twitter? Lá vem a puliça. Seu filho pre adolescente falou algo “edgy”? Vem os gambé junto de assistente social.

      Não é piada.

  • Na verdade, isso foi o estopim. Assim como em outros países (em especial o Canadá), crimes brutais cometidos por imigrantes são abafados (estupros coletivos até de crianças, latrocínio, espancamento, etc.), políticas públicas que visam imigrantes e ignoram a população local (como o centro de apoio que incendiaram, enquanto a população pobre inglesa mal tem o que comer, fazem de tudo para os imigrantes), a diferença no tratamento legal (por mais de uma vez, que rouba e quem se defende de assalto tem a mesma pena – sim, ridículo) e aquela lei bizarra que entrou em vigor que podem denunciar “discurso de ódio” (esqueci o termo específico – a polícia já declarou que ou atende o telefone pra pegar as denúncias ou patrulha as ruas, não tem efetivo pras duas coisas). Isso pra não falar das merdas que o primeiro ministro fala e a forma como os partidos vem agindo.

    Ainda que não concorde com a violência, a população enxergou nisso como forma de deixar clara sua insatisfação. Quem planta colhe…

    • Quando violência é a única forma que o povo tem de ser ouvido, é ao que vão recorrer.

      Muito provavelmente tentaram dialogar, propor soluções ou medidas, ou mesmo apelaram à política de forma pacífica antes de culminar na balbúrdia.

      Só lamento por quem é inocente que não tem nada a ver com guerra cultural ou coisa do tipo, e vai pagar por isso, seja nativo ou imigrante.

      • MEI Precarizado

        Quando a violencia aumenta, o viés de confirmação dos polarizados se reforça ainda mais e o circulo vicioso só cresce.

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