Enfrentando o mal.

Com certeza a ideia não foi inventada agora, mas estamos numa fase especialmente perigosa de pessoas acreditando que estão numa luta importantíssima do bem contra o mal. Esquerda, direita e afins certos de que estamos no limiar da derrota para as forças malignas, e que precisamos fazer alguma coisa. Precisamos?

Se você acha que eu estou falando sobre algum tema específico recente, não é à toa, o cenário político mundial ficou infestado de pessoas declarando o fim do mundo cada vez mais próximo. Praticamente qualquer notícia que nos chega está politizada, infestada pela ideia de que tem alguém tentando destruir tudo o que achamos bom no mundo. E que é hora de lutarmos com todas as forças para defender o futuro.

Defender contra o mal. O mal comunista, o mal fascista, o mal da religião diferente, o mal da ganância, o mal da degeneração dos costumes… mas no final do dia, quando a gente vai ver os dados do que realmente acontece no mundo, indicadores de qualidade de vida e liberdade pessoal estão aumentando. Sim, existem exemplos de pessoas passando por situações horríveis, mas contra tudo e contra todos, o ser humano consegue dar um jeito de gerar um pouco mais de riqueza, de aumentar um pouco expectativa de vida, de aumentar acesso à educação.

É lento o suficiente para não percebermos, mas acontece. Digo mais, é lento o suficiente para não acharmos suficiente, e tudo bem sentir isso. Eu também quero um mundo onde as pessoas possam ter no mínimo a minha qualidade de vida (não sendo rico, mas não sofrendo com o básico), e para ontem. Entendo achar pouco, entendo querer que façamos mais. O Desfavor é focado quase que exclusivamente nisso, com tangentes eventuais para escatologia e humor de baixo nível.

Agora, tem algo sutil na diferença entre querer um mundo melhor e acreditar que está lutando contra o mal. A primeira coisa é ser humano e ter um coração; a segunda é uma distorção da realidade que frequentemente sabota qualquer objetivo nobre da pessoa. Uma ilusão de propósito cósmico, como se você estivesse dentro de um videogame querendo completar objetivos quantificáveis. Quantos argumentos contra fascistas você precisa ganhar para vencer o mal? Quantas memes hilárias contra lacradores para chegar lá?

O problema fundamental é que quando você tenta lutar contra o mal, não consegue definir exatamente aonde quer chegar sem uma boa dose de limitação intelectual. Um exemplo comum dos tempos modernos são defensores de esquerda e direita pleiteando poder absoluto para evitar a tirania do outro lado. Não tem nem lógica interna consistente. Porque onde entra o “mal”, sai o ser humano.

E para surpresa de ninguém, é tudo sobre o ser humano. Somos bilhões seguindo pela vida em diversas direções, e uma das coisas mais complexas na nossa história é justamente fazer muitas pessoas seguirem um mesmo caminho. Bem e mal não costumam ter essa lógica interna bem definida, o bem do passado já virou mal, o mal do passado já virou bem. E pode ter certeza de que o mais santo dos seres humanos modernos ainda vai ser revisto como alguém problemático passado tempo suficiente.

O mal que tantos dizem combater não é estático, não é algo que pode ser vencido. O mal é o ser humano. Tanto que em muitas obras de ficção científica, a inteligência artificial chega à conclusão de que precisamos ser exterminados. É um caminho lógico para acabar com o mal. Se todos nós desaparecermos, o mal desaparece junto.

Lutar contra o mal não deixa de ser lutar contra a humanidade. Parte-se do princípio de que podemos eliminar essa parte ruim e ficar apenas com a boa. Não parece ser possível, porque o mal sempre vai existir junto conosco. Se você acreditar que alguma pessoa é má, ela é. Se matarmos todo mundo que compartilha uma opinião que você acha ruim, em pouco tempo vamos descobrir que existem outras opiniões ruins dentre o resto. E assim, sucessivamente, até não sobrar mais ninguém.

Você cria o mal onde quiser. Basta uma disputa simples por recursos para alguém se tornar o mal. Alguém que pega algo que você acha que deveria ser seu é do mal. E se a outra pessoa também pensa assim, temos duas pessoas malignas que juram estar certas. E não adianta nem ser alguém desapegado de bens materiais, somos muito sensíveis em média, relações sociais são muito complicadas e fatalmente você vai se ressentir de algo que outra pessoa disse ou fez. A outra pessoa é o mal assim que se choca com o seu querer, físico ou emocional.

Quando o cidadão moderno entra nessa paranoia de luta contra o mal, nem percebe o pacote que está comprando junto: o de criar separação entre pessoas. O mal se espalha infinitamente em sociedades muito divididas. As pessoas precisam de união para reduzir a quantidade do mal no mundo. Porque como dito antes, o mal é uma percepção sua projetada no outro. Quanto menos você tem em comum com os outros, mais vetores de mal vai enxergar. E o mundo fica cada vez mais assustador.

Talvez seja um resultado direto de menos interações pessoais. Lembra quando as pessoas conversavam na fila? Lembra quando conversa era algo que ocupava toda sua atenção naquele momento? A natureza humana é sábia: tem algo de reconfortante em reclamar da fila junto com outra pessoa. Nos sentimos menos malucos por compartilhar uma percepção ou sentimento com outro ser humano.

O segredo desse tipo de relação no nosso bem-estar, argumento eu, é que o mal fica menor no mundo. No segundo que você faz uma conexão real com outro ser humano, ele vai sendo trazido para o seu conceito do que é o bem, que de forma bem fria, nada mais é do que uma medida de quanto o outro concorda com você. Se duas pessoas olharem para o mesmo objeto e tiverem a mesma impressão dele, a tendência é que o outro fique mais transparente e seguro por definição. O outro começa a entrar na sua definição do que é ser do bem: ser você.

Paradoxalmente, quanto mais você se esforça para lutar contra o mal, mais mal começa a enxergar no mundo. É aquela conclusão sobre o problema das mídias online atuais ser mais sobre as pessoas verem muita informação contrária ao que acreditam do que necessariamente viver na bolha. Você vai enxergar uma quantidade imensa de coisas malignas se estiver no modo de luta contra elas. É natural para o ser humano aguçar sua percepção quando se sente ameaçado.

A necessidade de lutar contra o mal pode muito bem ser um dos motivos pelos quais mais e mais pessoas vivem à base de remédio tarja preta, engolidos por ansiedade e crises de pânico. De repente a pessoa volta para a idade da pedra, tendo que olhar por cima do ombro o tempo todo para evitar predadores. E pior, sem a confiança na tribo de pessoas próximas e parecidas para dar algum alento na hora de descansar.

O cérebro humano não foi treinado nessas sutilezas de modelos políticos, se você começar a ficar com medo de comunistas ou fascistas vindo te pegar o tempo todo, vai ativar o mesmo tipo de reação que nossos antepassados tinham com leões e tigres. Excelente para dar uma corrida rápida para um lugar seguro, mas péssimo para trabalhar na frente de um computador sem nenhum perigo natural à quilômetros de distância.

A luta contra o mal é a antítese do que fizemos para melhorar o mundo de verdade. As pessoas que tiveram mais sucesso lutaram pelo bem, pela união, pelos pontos comuns entre nós. Seja em direitos humanos universais (muita ênfase em universais), seja na criação e popularização de tecnologias e ideias que facilitam a vida de todo mundo ao mesmo tempo. Agregar mais pessoas no seu grupo é aumentar a quantidade de bem no mundo. Sim, às vezes o seu bem pode ser um conceito bem distorcido, mas em grandes escalas, é o fator crítico de sucesso da espécie.

Macaco junto é macaco forte. Macaco sozinho é macaco morto. Sei que filósofos podem ir muito mais longe que isso, mas é uma das análises mais básicas da nossa espécie até hoje. O bem se espalha na união, o mal na divisão. Se a sua luta contra o mal nos divide, adivinhe quem você está ajudando a vencer?

Para dizer que achou o texto bem do mal, para dizer que mal achou do bem, ou mesmo para dizer que união é coisa de comunista: comente.

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