Democracia do ódio.

Pablo Marçal não esconde sua tática: falem mal, mas falem de mim. Ele é o grande fato nas eleições para prefeito de São Paulo, muito por causa dessa forma de agir. Só pancadaria, só “corte de rede social”, causando a todo custo sem se importar demais com a rejeição que possa causar. O que é completamente diferente de como se pensava comunicação de políticos de forma profissional até aqui.

Tem até texto meu falando sobre essa forma de pensar: um dos números mais importantes para qualquer candidato a cargo único, isso é, prefeito, governador ou presidente, é justamente o número da rejeição. Gente que decide que não vai votar no candidato. O que quase sempre é bem mais fácil de resolver na mente do que efetivamente ter um candidato preferido.

Vereadores, deputados e em algum nível até senadores podem jogar com rejeição se tiverem uma base razoável de defensores. Você precisa de muito menos votos, se 90% das pessoas te odiarem e 10% amarem, a chance de ser eleito é excelente.

Em tese, a forma como Marçal se porta faria sentido se fosse candidato a vereador, mas não se quer ser prefeito. Você precisa de um grande volume de pessoas dispostas a votar em você, e a cada polêmica ou baixaria, o volume diminui. Mas, provavelmente até sem fazer esse cálculo, o candidato maluco da vez está tentando chegar lá subvertendo o sistema.

E se… o público começasse a odiar todos os candidatos? Nas duas últimas eleições para presidente, duas pessoas com rejeição acima dos 50% foram eleitas. Tem algo aí para calcular. Como o Brasil tem voto obrigatório e segundo turno, o brasileiro inconscientemente já lidou com o fato de votar em quem não gosta porque gosta ainda menos da alternativa.

Novamente, não acho que Pablo Marçal tenha plena consciência da estratégia, mas está testando-a do mesmo jeito: ao tornar o debate político algo irritante para todo mundo ao mesmo tempo, talvez consiga espalhar sua rejeição por todos os outros candidatos e colocar o paulistano no modo de “quem eu odeio menos”.

Uma pessoa insana no meio dos debates vai estragando o humor de todos os outros candidatos ao mesmo tempo. Marçal cria tanta tensão no processo que todo mundo faz contas sobre valer a pena ir aos debates, ou mesmo interagir com outros candidatos para começo de conversa. O clima fica tão ruim que realmente impacta na forma como os seus adversários agem. Fica todo mundo um pouco mais antipático.

O que não deixa de ser uma tática de negócios: se seus concorrentes estiverem muito desconfortáveis, eles podem cometer mais erros. E, francamente, podem até desistir inconscientemente de concorrer. Imagina aguentar aquele maluco disparando contra você sem parar por meses? A maioria das pessoas tende a ficar cansada rapidamente.

E isso reforça a visão do brasileiro médio que política é baixaria, é lugar de gente ruim, que é um bando de safado… Marçal baixa o nível dele tão baixo, mas tão baixo, que começa a respingar nos outros. Boulos é um exemplo de pessoa que começou a perder a cabeça e ficar menos simpático por causa da pressão. Não que fosse um poço de carisma antes, mas ninguém fica mais agradável aos olhos alheios no meio de um estresse violento como é enfrentar alguém como Pablo.

Talvez fazer uma sujeira grande demais no processo político sirva para sujar todo mundo ao mesmo tempo. E aí, com o povo perdendo o pouco respeito que tinha pelo processo, talvez ele consiga seu objetivo: igualar a rejeição para que seus defensores mais ferrenhos desequilibrem para o seu lado. Quer dizer que eu acho que Marçal vai ganhar? Não. Mas quer dizer que estamos vendo o estudo de caso ao vivo nessas eleições.

Ele pode não conseguir ir até o final desse jeito, mas se provar que dá para derrubar o nível suficiente sozinho ao ponto de afundar todo mundo junto, isso pode virar tendência. Em jogos tem o conceito de “meta”, que são formas de jogar mais eficientes que outras que acabam ficando populares. O meta da política pode muito bem virar para ser o mais desagradável e irresponsável possível para deixar os eleitores em dúvida honesta sobre quem é o menos horrível.

E aí, ao mesmo tempo, esse tipo de intensidade maníaca de pessoas como Pablo Marçal consegue cativar muita gente. Ele não tem simpatizantes, ele tem fiéis de um culto de personalidade. Um povo que gosta dessa coisa de líder de seita suicida que ele emana. Esse povo está um nível acima de fidelidade até que o gado lulista ou bolsonarista. São pessoas que amam até os defeitos de seus ídolos, imutáveis na sua decisão de apoiar.

Se o meta da política virar para espalhar rejeição por todos os lados, sobra apenas esse público fanático com certeza do que fazer. E aí, quem tiver o maior número de fanáticos vence. Parece que já estamos nesse sistema com Lula e Bolsonaro, mas o buraco não é tão embaixo assim, boa parte da população brasileira está mais preocupada com o preço da cerveja do que com a tal da batalha pela alma do Brasil que muitos políticos fingem se importar.

E por mais que pareça divertido ver os políticos se sentindo mal no caos de candidatos-bomba como Marçal, o estresse deles vai se espalhando por nós. Em troca de um debate mais engraçado, vai ficando mais e mais difícil ter sequer esperança que algum deles vá ser uma boa opção. O que é o plano de quem sabe que é uma péssima opção: nivelar por baixo e forçar o cidadão médio a fazer escolhas trágicas todo segundo turno. E lá, encurralados, nós temos que nos convencer de alguma forma que um dos malucos pelo menos é menos maluco que o outro.

A minha dúvida é como profissional de comunicação mesmo – por isso estou usando a coluna Publiciotários e não a Anula Eu! – tem algo mais profundo do que apenas ser tão escroto ao ponto de incomodar todo mundo ao seu redor, tem a questão de como isso começa a definir o que funciona e o que não funciona em comunicação de massa.

Eu acho que o cidadão médio até percebe quando a pessoa passa do tom na sua insanidade de persona pública, mas se isso funcionar 1% melhor que não ser maluco, começa a aparecer nos resultados eleitorais, e mais gente começa a tentar a tática. Quanta gente não está adorando o fato de que Marçal está incomodando tanto os outros políticos? Quão divertido é ver os outros se contorcendo de putez? Péssimo político, mas excelente figura de entretenimento.

As crianças se juntam numa rodinha para ver duas brigando. É entretenimento dos mais clássicos. Se você entrega alguma ideologia política junto com o show da rinha de candidatos, você se torna alguém um pouco mais eficiente em angariar atenção e ser lembrado no futuro. E num ambiente tão competitivo como comunicação política, otimização passa por cima de qualquer valor dado tempo suficiente.

Até pouco tempo atrás, candidatos queriam números em redes sociais, milhões de seguidores para aumentar sua visibilidade. Só que se você for olhar os candidatos à prefeitura de São Paulo, a maioria já tem números bem decentes. Marçal é de longe o mais popular (embora com certeza ele tenha comprado milhões de seguidores falsos), mas nenhum dos com alguma porcentagem nas pesquisas é desconhecido na internet.

A grande diferença é como se proliferam os conteúdos deles. Marçal admitiu pagar para quem posta mais conteúdo dele (agora diz que não porque perceberam no último minuto que era ilegal), e não importa se seja positivo ou negativo. É o caos que importa no final das contas. Ele mesmo fala sobre como não param de xingar ele, mas as vendas dos cursos continuam ótimas. Funciona.

Talvez até o conceito de rejeição precise ser repensado: rejeição é tratada como algo sem volta, mas será que no clima atual isso ainda é verdade? Pode ser que rejeição esteja se transformando em algo muito mais relativo, uma escala de ódio que pode ser manipulada aumentando o ódio ao adversário para fazer o seu menos impactante. Quão filha da puta precisa ser uma pessoa para fazer você preferir o Pablo Marçal?

É isso que ele está tentando descobrir. Eu começo a enxergar a ideia de rejeição como algo muito mais manipulável na era da internet. Você recebe tanto impacto de informação que é possível graduar o ódio pelo candidato. É mais fácil odiar um candidato do que confiar nele, ainda mais num Brasil onde somos traídos em nossa confiança política dia sim, dia também.

Se o caminho mais curto para manipular sentimentos é a putez, é isso que vai ser feito. No tempo que o candidato normal demora para ganhar a simpatia de uma pessoa, o candidato Marçal consegue espalhar ódio por uns cinco candidatos diferentes. Ele só precisa que você odeie mais o outro do que ele. Não foi inventado agora, estamos vendo essa estratégia sendo refinada aos poucos desde a disputa entre Dilma e Aécio, que era baseada em divisão raivosa da população. O PT ganhou a maioria das disputas de ódio até aqui, só perdendo uma para o Bolsonaro em 2018, mas se você estivesse prestando atenção, perceberia o padrão.

Eu não percebi. Achei que era só uma população dividida pelas agruras do Século XXI, mas havia método nessa loucura. Ódio é rápido de conquistar. Você pode atrair ódio para você se no processo conseguir atrair para os outros candidatos também. Quem vai desequilibrar a eleição são os fanáticos. Bolsonaro provavelmente não tem metade do país ao seu lado, mas contra Lula tinha. Foi apertadíssimo. A campanha dele tinha muito ódio, a do PT também, porque é o padrão deles. Lula ficou 2% menos odiado que Bolsonaro.

Não precisa de amor, precisa ganhar. E para ganhar, estratégias como a de Marçal de criar o clima mais escroto e abrasivo possível pode muito bem ser o novo “meta”. Candidatos cada vez mais especializados em tornar o processo horrível para qualquer pessoa com um mínimo de bom senso e amor-próprio. Não só dá chances para os candidatos escrotos, mas vai filtrando gente que poderia ganhar deles por afeto do povão.

O que é perfeito numa corrida de ódio. Quanto mais merdas as opções, maior a chance de uma pessoa merda conseguir essa pequena vantagem de ser menos odiada. Você não precisa gostar do candidato, você só precisa votar nele.

Esse tipo de democracia do ódio vai deixando o processo todo cansativo, o que também retroalimenta o voto irresponsável: faz mal ver essa gente se xingando, pode ser engraçado nas primeiras vezes, mas se isso continuar se espalhando, vai começar a fazer mal ver acontecer. Ou talvez até pior: vai ficar chato também. E aí, vão ter que inventar outra forma de chacoalhar algo colorido na frente do povão para angariar atenção.

E infelizmente, eu não acho que boas propostas e demonstração de conhecimento sejam ferramentas para ganhar uma disputa por atenção num país como o Brasil. O nível de barraco deve continuar subindo, e com a velha guarda política morrendo ou se aposentando, mais e mais pessoas totalmente descontroladas vão assumir os cargos de poder.

Eu sei que vou achar terrível, mas não sei se o brasileiro médio vai. Pode ser que seja o exato grau de entretenimento que gerações viciadas em vídeos curtos precisem para dar atenção para a política. Muito se fala sobre o mundo estar em estado de capitalismo terminal, mas eu adicionaria também que estamos em estado de democracia terminal. Estamos otimizando a competência para fora dela, em troca de gente mais como o Pablo Marçal.

E podemos criticar ele por isso se está funcionando? Ele não está colocando uma arma na cabeça do povão para subir nas pesquisas, as pessoas estão escolhendo isso. Ele ganhou dinheiro com ódio, agora quer ganhar poder com ódio. Digam o que quiser sobre a ética e a moral dessa ideia, mas ela tem resultados práticos.

Para dizer que adora ver candidato sofrendo, para dizer que ele vai acabar ganhando (seria terrível e hilário), ou mesmo para dizer que essa é a mídia moderna: comente.

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Comments (16)

  • Hosmar Weber Júnior

    to cagando pro povo de são paulo, moro e voto no interior gaúcho e aqui já temos problemas demais, minha preocupação é o que pablo pode virar em 2026, o que tu acha sobre isso? impopulares fiquem a vontade para opinarem tbm

      • Inclusive (mais perigoso, o que já estava avisado há anos) porque o “me(r)dalhado” acha que vive melhor que quase todo mundo (até ter quatro filhos vai ficar mais para a história que mitomania do mesmo tanto de “iniciativa” quanto em “resposta” e talvez ainda não haver especialista apoiando algum suposto projeto)…

  • Imagina aguentar aquele maluco disparando contra você sem parar por meses? A maioria das pessoas tende a ficar cansada rapidamente.

    É por isso que ASSÉDIO MORAL funciona.

  • Temos na realidade o CQC, o MBL e o Bolsonaro antecipando o Marçal nisso e no campo da ficção, temos o Momento Waldo da serie Black Mirror.

  • O Isentão esqueceu de levar em conta quem pode ter interesse em eleger um vagabundo irresponsável como o Marçal, tal qual os latifundiários escravocratas aderiram ao Bolsonaro, de modo a fornecer-lhe o suporte para o circo. Do jeito que está escrito, parece que o tal candidato é um gênio oportunista.

    • O sistema democrático está sendo distorcido por um mecanismo de ódio. Culpa da democracia? Não. Seria o mesmo que culpar os dentes de serem fracos se uma pessoa se dispôs a mastigar concreto ou mármore. “Mas é só o que chega no supermercado”, então, o conceito de alimentação – e não dos dentes – tem de ser revisto, não?

      Se você não é engrenagem do sistema de ódio que elege Marçáis ou Boulos da vida, você ganha um nominho bonitinho, na tentativa de atacar sua credibilidade. A própria pessoa que acusa os outros de “isentão” não percebe como ela é parte do problema.

      Quem não quer que Boulos ou Marçáis da vida de elejam, não pode cair no truque do ódio, sendo polarização política e ideológica uma das principais formas de transmissão dessa doença. O problema começa muito antes do momento em que você se vê sem escolha entre um monte de merda e um saco de vômito.

      Eu ainda consigo ver uma possibilidade muito positiva: quanto mais na merda a política se encontrar, quanto mais repulsiva e entediante ela se tornar, ela vai quebrar. A situação como ela funciona hoje e ainda vai funcionar por algum tempo, vai quebrar e precisará surgir outra coisa.

    • Arthurzinhe do DCE de Artes Cênicas

      Nossa mana, essa lacrada foi tão empoderada que meu cu deu até uma piscada. Tenho certeza que no céu, a Santa Marielle de Exu está aplaudindo!

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