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Terceirização cerebral.

Terceirização cerebral.

| Somir | | 4 comentários em Terceirização cerebral.

O cérebro humano atual é ao mesmo tempo uma maravilha da engenharia natural e uma ousadia que beira à irresponsabilidade evolutiva. Por definição, consome um quinto de todas as calorias consumidas por nós, macacos pelados, e suas funções mais poderosas nem faziam parte do pacote básico de sobrevivência das espécies. É o tipo da coisa que tende a não durar muito neste universo.

Os bilhões de neurônios dentro de nossas cabeças, bem utilizados ou não, são uma afronta à entropia: complexidade extrema mantida à força por um código genético focado em multiplicação. No quadro geral do universo, não é sustentável. Mas é claro, estou falando de tempo incontável, segundo as teorias mais aceitas na física, eventualmente a energia aproveitável vai acabar e o universo vai terminar frio e homogêneo.

Enquanto isso, cá estamos nós indo contra a ordem universal. Usando poeira estelar reconfigurada em cérebros exageradamente potentes para moldar o mundo à nossa imagem. Mesmo que em linhas gerais até bactérias sejam um desses exageros naturais, o ser humano passa e muito do ponto da viabilidade e começa a construir monumentos e tecnologias gigantescas para resolver problemas que a natureza nem tinha inventado.

As pirâmides são túmulos. A natureza inventou e utilizou a morte como uma excelente ferramenta para aumentar diversidade genética e permitir evolução rápida, mas nós sentimos algo muito abstrato ao lidar com essa ferramenta e começamos a montar rituais cada vez mais complexos para tratar esses sentimentos. Pegamos pedras de todos os lados e amontoamos num monumento gigantesco que não fazia nada além de sinalizar o fim de uma vida. E esse monumento está lá, milhares de anos depois, desafiando a entropia e nos fazendo pensar num evento que nem tinha função prática para as vidas seguintes.

Muito do que fazemos não é importante para a instituição que é a vida. A única regra é se reproduzir, e mesmo ela não é forçada. É mais uma sugestão codificada em nosso DNA. Espécies boas nessa coisa de reprodução seguem em frente. E os mais de 8 bilhões de humanos vivos atualmente sugerem que pelo menos nisso ainda temos prioridades alinhadas com a natureza.

O resto é bem mais discutível. A curiosidade e a engenhosidade dos nossos cérebros exagerados gerou uma propriedade emergente de tecnologias que aumentam a expectativa de vida da espécie, tanto em quantidade como em longevidade. Só nós e as espécies que adotamos como gado ou companhia passam e muito dos padrões básicos de números e idade máxima que a natureza oferece no “pacote básico”.

Eu falo de propriedade emergente porque mesmo que a tecnologia permita mais vidas mais longas ao mesmo tempo, elas são resultado de objetivos bem mais imediatistas: não pensamos em agricultura porque isso faria com que pudéssemos alimentar bilhões de humanos em alguns milênios, pensamos nessa tecnologia porque durante uma vida média dos nossos antepassados, ter alimento aparecendo repetidamente num só lugar era mais fácil. Os registros históricos do começo da agricultura sugerem que plantar era um avanço da coleta de alimentos: povos ainda nômadas semeavam locais para voltar neles meses depois. Ao invés de arriscar ir para um lugar onde não tinha comida, essa proto-agricultura permitia ciclos menores e mais seguros de movimentação pelo ambiente.

E é aqui que eu argumento que começou um processo que culminou nos telefones inteligentes da nossa geração. A terceirização do exagero que é nosso cérebro. A natureza corrigindo um dispêndio incrível de energia e capacidade num órgão só. Quando você planta, você troca um conhecimento generalista sobre todos os alimentos possíveis de uma região pelo foco em algumas plantas que funcionam no ciclo de semear e esperar.

Não precisa mais usar o cérebro para reconhecer milhares de vegetais diferentes, o simples fato de uma planta estar no local designado para agricultura já terceiriza esse gasto de energia e memória para a terra diante dos seus olhos. Índios que vivem no meio da floresta conhecem muito mais plantas comestíveis e medicinais do que nós que vivemos na cidade. A habilidade de diferenciar caloria de veneno não é mais necessária: o supermercado tem o que você pode comer. Você pode reconhecer umas cinco frutas e legumes e ainda viver tranquilamente.

Se seu filho na cidade souber que não é para colocar na boca nenhuma planta que não estiver disposta numa prateleira à venda, já tem uma habilidade de sobrevivência comparável a uma criança que aprendia como se pareciam centenas e centenas delas em tempos imemoriais. E com um gasto de memória minúsculo em comparação.

A criança da cidade vai usar essa memória com bobagem como youtuber de Minecraft? Sim, mas o espaço foi liberado do mesmo jeito. Terceirizamos o uso do cérebro para a sociedade como primeira grande evolução do jeito humano de ser. Especialistas gastam suas memórias e poder de processamento de informação para mastigar informações para todos os outros humanos, uma espécie de “comunismo cerebral” que divide a carga de informação entre o grupo e nos dá mais liberdade de gastar nossas calorias cerebrais com outras coisas.

No melhor dos cenários, com outras especializações, mas sejamos realistas, a tendência é gastar com bobagem. Mesmo assim, acumula: nunca soubemos tanto sobre o mundo, nunca tivemos tanto espaço cerebral disponível ao mesmo tempo. Porque uma série de revoluções sociais, tecnológicas e científicas construíram por cima da base da agricultura para criar o mundo moderno.

Nós que estamos vivos no começo do século XXI vimos ou pelo menos ouvimos o eco da última grande terceirização cerebral: o computador. Em séculos passados os matemáticos faziam contas na mão, na minha geração você precisava lembrar de muita coisa ou ir até uma biblioteca para buscar conhecimento. Várias funções cerebrais que se tornaram obsoletas com uma máquina que acumula e processa informações na velocidade da luz.

E com a internet então… muda o paradigma do que é aprender. Sua memória é muito menos pressionada pelo ambiente. Uma conexão ativa com a grande rede e você tem conhecimento enciclopédico sobre basicamente tudo. Não quer dizer que todo mundo use bem essa habilidade, mas pessoas consideradas inteligentes e pessoas consideradas ignorantes tem ao seu dispor a mesma capacidade de manter uma memória muito mais vazia do que se esperaria de gerações anteriores.

Algumas décadas de internet se passam e a inteligência artificial generativa bate à nossa porta. E agora eu consigo enxergar melhor o próximo passo da terceirização cerebral: processar informações. Foram milênios terceirizando memória para aperfeiçoar a capacidade de tratar informações, e por mais que fiquemos irritados com o estado atual da humanidade, basta olhar para a qualidade de vida média do cidadão em 2024 para perceber que foi bem útil: mais pessoas vivas vivendo de forma confortável por muitas décadas do que nunca.

Nosso cérebro apoiado em conhecimento compartilhado e máquinas muito eficientes nos trouxe até aqui, ordens de magnitude mais complexos e seguros que os outros seres vivos do planeta. Mas era questão de tempo até começarmos a procurar mais formas de terceirizar a mente: funcionou tão bem até agora, é meio que nossa identidade no mundo. O ser humano acha jeitos de extrair o máximo do cérebro, mas como ele é limitado, colocamos o excesso para fora dele.

O que não muda o fato que mesmo com todas essas vantagens, muita gente ainda vive com uma mente muito abaixo do seu potencial. Gente que você gosta ou não gosta, com dificuldades de entender o mundo ao seu redor e de se expressar de forma coerente. Mesmo que eu não tenha o nível de qualidade de um grande escritor ou articulista, o que eu faço neste texto está muito acima do cidadão médio. Eu tive acesso a muita informação e cultura geral, treinei por mais de uma década escrevendo e coloquei dentro do meu cérebro essa capacidade.

Faz sentido que as pessoas queiram ter essa habilidade também. Eu queria ter a habilidade de fazer música, por exemplo. Nem era sobre ficar famoso e ser ouvido, é sobre a arte mesmo. Nunca coloquei energia nisso, porque a vida é sobre escolhas e as minhas me especializaram em outras capacidades criativas. Mas se tivesse uma forma de eu criar músicas sem ter que começar do zero aprendendo o básico, é claro que eu acharia divertido. É claro que eu terceirizaria a base dessa habilidade para aproveitar a parte que me parece mais divertida.

Faz sentido que a inteligência artificial seja muito baseada em criação. E criação é uma função cerebral que depende de bases de conhecimento e treino constante. Todo mundo pode criar do zero, mas se eu fizer uma música agora, a tendência é que seja uma porcaria. Com aprendizado e experiência, poderia melhorar bastante, mas eu não quero dedicar o tempo para isso. Tem como terceirizar isso?

Já aparecem várias inteligências artificiais que ajudam nesse tipo de construção criativa musical. Da mesma forma que já estão famosas com a criação de textos e o desenvolvimento de argumentos. Um ChatGPT pode não escrever como eu escrevo, mas ele processa informações e produz um conteúdo final que é muito parecido com a produção natural do meu cérebro. Eu sou bom com imagens e texto, então reconheço boa parte da artificialidade dos produtos entregues pela inteligência artificial, mas quando a IA faz música, eu sou uma presa muito mais fácil.

Porque eu não tenho base de comparação dentro de cérebro. Eu sei como música se parece e tenho minhas preferências, isso é suficiente para que não só a máquina consiga me enganar, mas também entrega o nível de qualidade mínimo que eu gostaria de ter. Não é música boa o suficiente para músicos, mas é boa o suficiente como função terceirizada do cérebro.

Não só eu não preciso usar minha memória para saber como fazer uma música, mas não preciso também processar informação para criar algo muito parecido com música “real”. Quando eu olho para textos e imagens da IA, eu percebo a falha no processamento humano da informação, mas se sai do que eu sei processar sozinho… a coisa é bem mais cinza.

É natural que o ser humano terceirize funções cerebrais. E nossa evolução nos trouxe para um caminho de alta especialização, onde a maioria das pessoas não se aprofunda em nenhuma área ao ponto de saber criar algo nela. É claro que vamos terceirizar criação e processamento de informações para a máquina, é só mais um passo na nossa jornada como espécie.

E curiosamente, é a natureza repensando quanto poder cerebral realmente precisamos ter. Essa monstruosidade consumidora de calorias foi muito utilizada para manter a humanidade viável, mas talvez não seja o caminho mais eficiente indo para o futuro.

Pode ser paranoia minha, mas o caminho parece ser transformar mais e mais da nossa mente em “oficina do diabo”, delegando funções para ferramentas externas e deixando espaço livre para a vontade de construir pirâmides. Inteligência menos funcional, por assim dizer. Talvez o nicho que o ser humano ocupe no futuro seja uma máquina de intenções, o que a tecnologia ainda não consegue ocupar.

Sem a intenção da comunicação, não existe função na natureza para o ChatGPT. Ele ainda é o cérebro humano, assim como basicamente toda nossa sociedade tecnológica, mas fora do crânio. Porque no fim das contas, existe muito mais conhecimento fora do nosso cérebro do que dentro dele. Sair é lógico. O que vai ser do ser humano e seu cérebro faminto eu não sei dizer ainda, mas a história sugere que estamos chegando num ponto onde ele provavelmente vai mudar de função de vez.

Talvez nossos descendentes sejam as máquinas. Não porque elas vão querer tomar o poder, mas porque a continuação lógica da terceirização é essa. Alguma coisa deve se perder nessa tradução do cérebro para a tecnologia, mas será que é algo que realmente valorizamos? Algo me diz que não. Vide o que o ser humano médio faz com seu cérebro na era das redes sociais. Na natureza, função importa. O que não usamos vai ficando atrofiado e eventualmente até some.

Para dizer que seu cérebro está doendo, para dizer que vai comentar usando IA, ou mesmo para dizer que cérebro é supervalorizado: comente.


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