Quando é você?
| Somir | Somir Surtado | 2 comentários em Quando é você?
Muito nos perguntamos quem somos, mas raramente pensamos sobre quando somos. O tempo passa para todo mundo, muita coisa acontece ao nosso redor todos os dias, meses, anos… será que faz sentido pensarmos sobre quem somos numa realidade que nunca fica parada?
Às vezes eu me pego pensando em escolhas que fiz no passado, que trouxeram bons ou maus resultados. Especialmente nas que deram errado, para ser honesto. Fico me perguntando o porquê das decisões ruins, o que eu estava pensando, qual era o contexto, se eu poderia ter feito diferente.
O que não costuma ser uma forma saudável de levar a vida. O passado é o passado, imutável até que alguma lei da física seja violada. Pode pensar o quanto quiser, pode achar mil soluções diferentes para os problemas antigos… e nada vai mudar. Aconteceu. Existe mérito em saber observar o que você já fez e tirar lições disso, mas nada pode mudar o que já foi feito. Viver no passado é, por definição, não viver no presente.
Algo que me ajuda a evitar essas sessões de remoer o passado é entender que o conceito de quem você é só existe agora. Quem você era não existe mais. É mais fácil acreditar que faria agora a mesma coisa que fez um mês atrás, mas as coisas começam a ficar muito mais nebulosas quanto mais longe você volta.
Quando na sua memória ainda era você agindo? A mente que você tem agora pode ser transplantada para até quando com resultados parecidos? Se você que está lendo agora “caísse” na sua vida de um ano atrás, faria algo diferente? E se mudarmos para cinco anos? Dez?
É mais difícil imaginar o contexto, porque eu não estou falando de o que você faria conhecendo o futuro, no que investiria ou apostaria para ganhar dinheiro, com quem ficaria conhecendo melhor a pessoa do que conhecia na época… eu estou falando sobre o estado mental e a visão de mundo que você tem agora na vida de um corpo mais jovem.
Têm coisas que valorizamos de forma diferente com o passar dos anos. Têm aprendizados que mudam nossa forma de ver as coisas. Em dez anos, eu acredito ser uma pessoa fundamentalmente diferente da que era no passado. Quando eu tomei decisões boas ou ruins num passado distante, eu não acredito mais que era… eu.
Era um ser humano que eventualmente chegaria ao meu estado mental atual, mas é muito difícil acreditar que depois de tanto tempo eu pensaria da mesma forma que pensei uma década atrás. Na verdade, eu acredito que nem consigo lembrar do passado ao ponto de entender o que estava pensando no passado.
Porque a resposta sobre quem você é muda a cada momento. A gente até tem algumas coisas que acredita e repete por comodidade, mas às vezes dentro do mesmo dia podemos ser um “quem” diferente. Talvez nada muito dramático, mas às vezes um café já muda sua percepção de mundo. O tempo todo estamos mexendo com quem somos.
Por não sermos ilhas, é claro que precisamos de alguma consistência, mas isso é mais para as outras pessoas do que para nós mesmos. No fundo no fundo, ser inconsistente, hipócrita ou volúvel não dói fisicamente. Você pode defender uma causa com um discurso raivoso um minuto e falar algo completamente contra isso no outro sem penalidades internas. Sua mente pode ficar confusa com a imagem que você passa para os outros ou com as reações de terceiros, mas o problema interno da inconsistência? Nenhum.
Porque como você sempre é você, não tem problema nenhum no cérebro. É você chacoalhando uma bandeira ou outra, é você sendo bom ou mau, é você em qualquer situação. Você agora. Esse é o verdadeiro quando do ser, o momento atual. Numa visão mais purista dessa ideia, eu poderia dizer que o Somir que começou a escrever o texto é diferente do que está neste parágrafo. E isso continua a cada letra.
Mas aí entraríamos numa tecnicalidade que eu considero inútil, na vida faz mais sentido pensar em linhas borradas: salvo algum acontecimento externo importante ou avanço considerável em autoconhecimento, a tendência é que você seja mais ou menos estável como pessoa por meses, talvez até anos quando está um pouco mais velho.
Mas a partir disso, eu já começo a desconfiar seriamente que não estamos falando da mesma pessoa. Eu tenho alguma memória do que aconteceu no passado, mas não tenho mais o estado mental daquela época para entender o que aconteceu na hora. Mesmo quando você tenta se lembrar do que já aconteceu, está perdidamente contaminado pela visão de mundo que tem agora. Não existe memória pura da decisão tomada vinte anos atrás, só existe análise de quem você é agora sobre o que ficou registrado na mente.
É mecânico também: as ligações neurais mudaram, a maioria das células do seu corpo foram trocadas, viver é virar o Navio de Teseu, ter (quase) tudo trocado e manter só o nome em comum. O que você fez no passado gera impactos no presente, mas quem você é mudou. De uma certa forma, estamos sempre pagando pelos erros ou apreciando os sucessos de outros. E nem foi uma escolha, as coisas só são assim num universo baseado em mudança com uma seta temporal que só aponta para a frente.
Até por isso, eu acho que acredito mais do que na média em pessoas que dizem que mudaram. Talvez mais do que o que seria seguro, mas para mim faz muito sentido que alguém olhe para o passado e não se reconheça. Eu meio que entendo algumas coisas que eu fiz no passado depois de sessões oficiais e não oficiais de terapia com outras pessoas, mas dizer que eu consigo me colocar inteiramente na cabeça do meu eu do passado? Não.
Demorou um bom tempo para eu começar a pensar na diferença entre sofrimento inútil pelo passado e experiência útil para o presente. Se você não prestar atenção, começa a achar que são a mesma coisa, porque elas trabalham com mecanismos parecidos de julgar suas memórias. Quando você fez as coisas que estão na sua memória conta, e muito. Porque o quando define o quem. Você ainda tem todas as responsabilidades sociais e políticas pelo que fez, mas é uma continuidade artificial criada pela nossa necessidade de viver em grupos.
Por motivos técnicos e legais, você é você durante toda sua vida. Mas para a nossa “alma”, não há importância nessa continuidade. Porque ela nem funciona na prática: você só consegue tomar decisões no presente, só tem o estado atual de consciência no volante. O que você faz agora não é o que você teria feito em outro tempo, passado ou futuro. Pode ser parecido, mas nunca igual.
Racionalmente, culpa não faz sentido. O que pouco importa para o sentimento, mas conseguir se distanciar desses “eus” em outros períodos de tempo e perceber eles como fotos que só captam a luz daquele momento é um bom caminho para sentir algo mais saudável ao invés de culpa. Qual sentimento? Não sei. Cada caso é um caso. Mas se você estivesse pensando em outra pessoa fazendo a mesma coisa, o que sentiria?
Porque pela ideia expressa neste texto, pode-se argumentar que era outra pessoa fazendo a mesma coisa. E quanto mais tempo se passa, maior a distância entre você e… você. O clima social parece ir na direção oposta dessa ideia, com o conceito de cancelamento entrando de vez na nossa mente e nosso vocabulário, até por isso pode ser mais difícil fazer essa análise mais desconectada do seu passado.
E entender uma verdade difícil: pessoas mudam. Não quer dizer que mudam para melhor, não quer dizer que mudam naquilo que você não gosta nelas, mas mudam sim. É uma inevitabilidade. Tem gente até que muda para algo que você gosta mais e depois de um tempo “desmuda” para incomodar de novo. É entropia no final das contas.
Eu sou bem cético sobre a questão de essência da pessoa ser boa ou ruim (muito além do bom selvagem), relações que vão bem acontecem entre duas ou mais pessoas que se influenciam, que regulam umas as mudanças nas outras. A mudança vai acontecer, a pessoa vai mudar quem é de acordo com “quando é”, e quem você mantém por perto por gosto normalmente muda dentro do que você tolera, mesmo que não te agrade.
A pessoa que você era no passado não existe mais, as pessoas com as quais você conviveu no passado não existem mais. Todos eram quem eram quando eram. Longe de mim vir aqui te encher o saco sobre perdoar, esquecer, seguir em frente e tudo mais, mas não é uma má ideia reavaliar pessoas depois de um tempo. Talvez tenha algo lá que começou a valer a pena, talvez alguém que você acha que valha… não valha mais.
A mudança é constante, muitas vezes temos ilusão de continuidade pelas diferenças entre cada ponto da nossa memória serem pequenas o suficiente para serem ignoradas pelo cérebro (que lembrando: apaga informação sem dó se não for obrigado a registrar).
Mais ou menos como muitas imagens estáticas passando rapidamente geram ilusão de movimento. Continuam sendo quadros estáticos do vídeo. Cada um diferente do outro. E alguns deles são tão diferentes do que você está vendo agora que nem parecem ser do mesmo filme. Então por que a gente fica procurando furo no roteiro deles? Se você sente que o seu “quando era” é diferente do seu “quem é”, é normal, é esperado.
Melhor do que viver enganado. E sabe-se lá o que o Somir do futuro vai achar deste texto, mas também, ele que se vire, esse estranho…
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- filosofia | memória | passado | personalidade
“Ninguém pode entrar duas vezes no mesmo rio, pois quando nele se entra novamente, não se encontra as mesmas águas, e o próprio ser já se modificou…”
Heráclito
“para dizer que ficou com sono antes de ter crise existencial”
haha
Nem um nem outro, queria era que pudessem acabar “motivos técnicos e legais” sobre qualquer versão à outra de cada um(a), “só pelas tretas” porque por minhas esperanças…existem?