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Não há medo no presente.

Não há medo no presente.

| Sally | | 16 comentários em Não há medo no presente.

Não há medo no presente. A frase parece absurda, falsa e até sem sentido, mas ao final deste texto pode ser que você acabe concordando comigo ou ao menos refletindo sobre essa possibilidade: como regra, não há medo no presente, o medo está sempre vinculado ao passado ou ao futuro, tempos que não existem, pois o passado já passou e o futuro ainda não chegou. Se você viver no presente, sua vida será muito melhor e com muito menos medo.

Vamos definir medo? Medo é o sentimento de intenso mal-estar que se ativa com a percepção de um perigo. Se tem uma pessoa com uma faca colada no seu pescoço, te fazendo refém e gritando que vai te matar, temos uma situação, diga-se passagem, muito excepcional, de medo no presente.

Mas, salvo essas situações esdrúxulas e improváveis, o medo não costuma estar no presente e sim no passado e no futuro. E, ainda assim, nós o convidamos para o presente o tempo todo, de alguma forma, acreditando que ele pode nos proteger. Não pode. Medo, via de regra, só faz mal.

Medo é um mecanismo primitivo, ancestral, que tinha sim o objetivo de nos proteger. Foi o antepassado que fugiu em vez de lutar com um carnívoro enorme o que sobreviveu e passou os genes adiante. Foi o antepassado que não foi na moita que estava se mexendo ver o que era que sobreviveu e passou os genes adiante. Em seu tempo e fazendo bom uso, medo foi e ainda pode ser uma boa proteção.

Porém hoje o medo está beirando a obsolescência. Medo, com a finalidade de proteção, se tornou um discurso ultrapassado. Hoje, temos sentimentos menos nocivos e mais efetivos para nos proteger, como o planejamento, a racionalidade, a compreensão, a avaliação, a consciência e até algum tipo de fé (que, por ser a parte mais controversa, fica para o final do texto). Nada disso precisa de uma carga de medo para ser protetivo.

Mas, talvez por hábito, temos uma falsa crença que o medo precisa estar embutido em tudo para nossa proteção. Aí sempre vem uma Pessoa Quer Dizer e solta “Ah, quer dizer que não tem que sentir medo, então tá, vai lá, sai de calcinha no beco escuro”.

Olha, o que me faz não sair de calcinha no beco escuro é informação, é ter consciência de risco, é racionalidade. Eu não preciso do medo para ter a consciência de que algo é perigoso e me resguardar. Quem precisa de medo para se proteger é bicho com cérebro rudimentar, incapaz de pensar, avaliar, ponderar e entender. Eu posso estar ciente dos riscos e optar por não me sujeitar a esses riscos.

O problema é que o medo tem bons publicitários. Ele é uma ferramenta poderosa que vem sendo usada por séculos. Só para citar um exemplo, o que a Igreja Católica fez com o medo contribuiu muito para popularizá-lo: as pessoas não seguem/seguiam seus preceitos por amor a Deus e sim por medo a ele, aos castigos, às punições, ao inferno, ao diabo. E, adivinha só, se portar assim ou assado por medo não tem muito valor e não define caráter de ninguém. O mais canalha dos canalhas anda na linha quando é o seu brioco que está na reta.

A fórmula deu certo e o medo virou superstar. O medo de não pertencimento faz as pessoas se unirem com gente odiosa. O medo de não ser suficiente faz as pessoas consumirem imbecilidades. O medo de não atender a padrões faz as pessoas cometerem loucuras. E o medo do não medo, ou seja, o medo do que a pessoa faria se não tivesse a trava do medo, acorrentou o medo às nossas pernas.

Que pouca fé que temos em nós mesmos, não? Que bosta de pessoa achamos que somos para cogitar que sem medo (de julgamento, de punição, de reprimendas, de consequências negativas) nos tornaríamos pessoas horríveis que fazem coisas horríveis, ou pessoas idiotas que fariam coisas irresponsáveis. Se é o medo o que te impede de fazer merda com você ou com os outros, você precisa urgentemente de terapia.

Mas, isso está no inconsciente coletivo, eu suponho. Foram séculos construindo, talvez sejam necessários séculos para desconstruir. Pois bem, arregacemos as mangas e comecemos: como regra, você não precisa do medo. Desapega dele.

Salvo uma situação muito pontual de risco iminente, o medo é inútil e nós o resgatamos do passado (usando situações que ocorreram para justificá-lo) ou o projetamos no futuro (criando um futuro horrível da nossa cabeça que gera medo). E geralmente nenhuma delas corresponde à realidade, mas nós acabamos vendo uma realidade pelas lentes do medo que falsamente confirma nossas crenças.

A solução? Se manter no presente. Se manter no agora. Olha para o que está acontecendo exatamente agora, sem focar no passado, sem focar no futuro. Aprender com experiências passadas? Sim, super válido. Usá-las para alimentar medo? É algo completamente diferente e muito nocivo. Se planejar para o futuro? Sim, super válido. Traçar seus planos com base no medo de algo ou algos? Completamente diferente e muito nocivo.

É fácil se descolar desse “vício” no medo? Num primeiro momento não, mas é possível. E a vida melhora bastante à medida que progredimos nessa meta.

“Mas Sally, se eu ignorar completamente meu futuro vou virar um mendigo!”. Uau, que salto longo você deu! Tá vendo como o medo é prejudicial? Te deixa irracional! Não sentir medo não quer dizer ignorar completamente seu futuro.

Você pode e deve planejar seu futuro desder um lugar de consciência, de racionalidade, de escolhas. Só não precisa ser movido pelo medo. Acredita na Tia Sally, o medo é a pior força que pode te mover, apesar de ser o combustível mais popular dos últimos séculos, pois além de detonar sua saúde, também detona o seu discernimento e te leva a escolhas não tão boas como as que você poderia fazer se fosse movido por fontes melhores.

Você não precisa do medo para se proteger do futuro, você não precisa do medo para se proteger do passado. Perigo real e iminente? Incêndio em um prédio comercial? Talvez o medo ajude, desencadeando uma descarga de adrenalina que vai te fazer correr mais rápido e fugir para salvar sua vida. Mas fora essas questões de vida ou morte iminentes o medo não é seu melhor aliado.

“Mas Sally, então quer dizer que não posso usar os aprendizados que tive no passado?”. Novamente um salto vertiginoso. Aprendizado é sempre positivo, mas, querido leitor, não existe aprendizado com medo.

Quando tem medo como principal combustível, é trauma que chama. E trauma é ruim, pois cega, acovarda, limita. Um bom exercício na sua vida é se perguntar por qual motivo você está fazendo as coisas: se tiver medo envolvido, respira fundo e gasta um tempinho olhando para essa questão. Onde tem medo tem confusão, falta de clareza mental e algo que precisa ser transcendido para sua própria cura desse estado.

Não é sobre atos ou escolhas. Um mesmo ato ou uma mesma escolha podem partir da consciência ou do medo. É sobre o seu estado interno.

Por exemplo, se eu vejo uma panela de água fervendo no fogão, eu não vou colocar a minha mão dentro, e não estou movida pelo medo, estou movida pela consciência de que se fizer isso vou me machucar e não quero me machucar. Quem deixa de colocar a mão movido pelo medo, com pavor, com sentimentos ruins, taquicardia e sudorese poder até não se queimar, mas causou um dano ao seu corpo. Não escolheu, apenas reagiu.

O medo foi pensado pela mãe natureza como um recurso extremo para momentos de vida ou morte. Se você dispara esse alarme o tempo todo, vai intoxicar seu corpo, vai liberar toxinas que vão minar sua saúde, vai acabar destruindo inclusive sua saúde mental.

A solução? Mantenha-se no presente e entenda que o medo não é o único e definitivamente não é o melhor combustível para desencadear qualquer ação ou processo em você ou nos outros, principalmente em crianças. Que dó que eu tenho de crianças educadas através do medo…

Estamos viciados em medo, como se ele fosse nossa única ou melhor forma de proteção. E passamos isso adiante. Inclusive tem muita gente que só se mexe, só toma uma atitude, só faz o que precisa ser feito quando o medo a domina. Péssimo. Depender do medo como combustível para fazer ou deixar de fazer algo é uma das piores furadas nas quais você pode se colocar. Outras forças mais gentis e amorosas podem te mover, gerando melhores resultados e menos danos.

O primeiro passo para romper com esse círculo vicioso tóxico de ser movido pelo medo é justamente esse: entender racionalmente que tem outros combustíveis muito melhores e mais eficientes para nos proteger, para nos mover e para lidar com a vida. Agir consciente, agir informado, agir com inteligência e planejamento, por exemplo.

E o primeiro passo é acreditar que é possível, pois é. Talvez no começo sua mente caia no medo, pois são décadas dessa forma de funcionar sendo empurrada em direção a ela por todas as instituições relevantes para a humanidade, mas você pode se desintoxicar.

E se desintoxicar do medo não é ficar desprotegido, inconsequente, vida louca. Há um mundo de distância entre esses dois extremos. Tome decisões conscientes, pensadas, lúcidas e sua vida vai melhorar em vez de piorar.

“Mas Sally, eu sinto medo, não posso evitar”. Eu também, querido leitor. É uma vida inteira regida por essa dinâmica, é normal que o caminho neural volte no automático para o que é familiar. Mas pode ser desfeito. Se você compreender racionalmente que o medo não é necessário para sua proteção como regra e que é um péssimo combustível, pode, aos poucos, educar sua mente e tirá-la do medo cada vez que ela cair nele.

É fácil? Provavelmente não. É rápido? Provavelmente não. Mas é possível. E o ganho é enorme. Pense na mente como um filhotinho de cachorro, que insiste em roer o pé da mesa. Você o tira de lá, mas ele insiste, afinal, nenhum filhote aprende um comando com apenas uma única repetição, em um único dia. Será preciso tirar o filhote e a mente desse lugar muitas vezes, até que eles se acostumem que não devem ir para lá. Demora, mas essa hora chega.

Faça um exercício de auto-observação: quando sentir medo, análise em que lugar do tempo está esse medo. Medo de ser demitido? Está no futuro. Medo de ser traído como sua ex te traiu? Está no passado. Medo de morrer? Está no futuro. Agora, exatamente agora, no presente, tem alguma coisa acontecendo para justificar esse medo? Provavelmente não. Provavelmente as origens, raízes ou projeções desse medo estão no passado ou no futuro. Ou em ambos.

E quando o medo pertence ao passado ou ao futuro, ele está fora de lugar no presente. Ele é disfuncional. E faz mal. Só o mantemos no presente por acreditar que ele gera um ganho secundário muito bom, geralmente uma proteção. Mas essa suposta proteção é apenas uma ilusão. Que tal, em vez de sentir medo de algo passado ou futuro, tentar tirar sua mente desse lugar de medo e levar para a consciência, para o racional, para a lucidez? Isso vai te ajudar a resolver a questão que te incomoda.

Em tese, parece bom, né? Parece racional. Então, por qual motivo não começamos a fazer isso agora mesmo?

Bom, aí entra outra questão. Na sociedade em que vivemos, o medo gera vários ganhos secundário além dessa suposta proteção: acolhimento, atenção, redução de cobrança e muitos outros com os quais somos recompensados quando estamos com medo. E muitas vezes nem os percebemos, só vinculamos o medo a o que julgamos ser um bom resultado.

Acredite, não vale o preço. Medo vicia, pois facilita a vida, abre portas e dá uma falsa sensação de segurança, mas mina sua saúde física e mental em silêncio. Comece sua desintoxicação agora mesmo. Só depende de você.

Eu sei que vão surgir nos comentários argumentos tentando justificar a necessidade do medo. Muita gente realmente acredita que a vida vai virar um caos, um risco ou um descontrole sem o medo. Não é verdade. Talvez você tenha se livrado de algum risco sério na sua vida graças ao medo, mas, se você pensar direitinho, verá que também poderia ter se livrado dele agindo com consciência, com racionalidade, com informação adequada. O medo não é o único caminho, mas é o mais nocivo. Escolha caminhos melhores.

Muita gente também acha que o medo te prepara para algum evento futuro, o que não é verdade, você sofre antes e sofre na hora também, igualzinho. Talvez até pior, por já estar fragilizado depois de se expor a tanto “medo preventivo”. Se não for situação de perigo iminente, de luta ou fuga, desista do medo.

Parem de usar o medo como coringa, como recurso válido para tudo. O medo só tem uma utilidade, que é te ajudar em caso de perigo iminente, todo o resto é desvio de função e existem ferramentas muito melhores para se evitar, contornar ou resolver o que quer que seja. É ameaça real, iminente e está acontecendo agora? Não? Então o medo não é a ferramenta válida, agradeça e recuse.

O problema é que a consciência, a racionalidade, a informação demandam muito trabalho: pensamento crítico, lógica, coerência, estudo e uma série de outros requisitos que nem todos estão dispostos a cultivar. Muito mais fácil escutar um tio vestido de preto que te diga o que um amigo imaginário decidiu que pode e o que não pode, incentivando você a não fazer o que não pode com alguma penalidade estapafúrdia. Haja ansiolítico, haja indutor de sono, haja antidepressivo.

Não tem outro jeito se não tomar as rédeas da sua própria vida e parar de delegar o que pode/não pode, o que é perigoso/não é perigoso para terceiros. Sacerdotes, gurus, coach, sua melhor amiga… ninguém tem que ditar como viver de forma correta e segura. As pessoas podem aconselhar, mas, em última instância, você deve tomar uma decisão consciente, informada e racional.

Hora de observar a linha temporal do seu medo e remover todos aqueles cujas causas e consequências não pertençam ao presente. Hora de gerar um novo combustível para os seus atos que não seja o medo.

E talvez seja hora de passar a encarar o medo e a vida de outra forma: se você agiu conforme sua consciência, com base em todas as informações que conseguiu reunir, se você se comportou de forma racional e lógica fazendo o que estava ao seu alcance e, ainda assim, um resultado indesejado aconteceu, já parou para pensar que talvez ele não fosse evitável?

Shit happens. Merdas vão acontecer em nossas vidas, mesmo nas vidas das pessoas movidas pelo medo (até mais, já que medo não protege, apenas cega e paralisa). É parte da vida que aconteçam umas merdinhas com a gente. Não dá para querer viver tentando evitar que alguma merda aconteça o tempo todo. De muitas, podemos nos esquivar, de outras não. Esquive-se das que puder, e quanto às outras, bom, faz parte do pacote da existência neste planeta.

E se faz parte do pacote, não faz o menor sentido ter medo. Tá aí por algum motivo, sobrepasse com a melhor graça e elegância que conseguir em vez de achar que é uma punição ou que você, bichinho insignificante nesta galáxia, poderia ter evitado. Ninguém se esquiva de todas as merdas na vida, todo mundo toma um tolete na cara de tempos em tempos. Faz parte do jogo, ou, como diria o sábio Romário: só perde quem bate.

E é aí que entra a fé: se você tem fé em um Deus bom, que zela por você e que cuida de todos, mais um motivo para não ter medo. Ele está no controle e tudo que acontecer terá um motivo. Ter fé em um Deus onipresente, onisciente e onipotente e ter medo são coisas completamente incompatíveis. Reflita.

E se você tem fé em você mesmo, na sua capacidade de tomar as melhores decisões pela sua consciência, pelo seu estudo, pela sua racionalidade, saberá que as merdas que te atingirem não podiam ser evitadas, pois se ferramentas melhores não as evitaram, não seria o medo, uma ferramenta tosca e ultrapassada que o faria. E se não eram evitáveis, não faz o menor sentido viver em desgaste por algo que você não pode evitar.

Comecem hoje um exercício gradual em suas mentes para abandonar o medo como principal ferramenta de proteção e de impulsionamento para tomada de decisões e ações. Ano que vem, nesta mesma data, vocês estarão gratos por ter começado hoje.

Para dizer que sem medo você se jogaria do alto de uma ponte (então você tem sérios problemas psiquiátricos), para dizer que medo é manobra de contenção de massa (exceto que no Brasil todo mundo tem medo, até quem manobra a massa) ou ainda para dizer que não estava preparado para este grau de discussão: comente.


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