Desafinados.

A Fifa anunciou nesta quarta-feira (17) a abertura de uma investigação sobre o canto racista dos jogadores argentinos contra a seleção francesa durante as comemorações no ônibus da equipe após a conquista do título na Copa América. LINK

Isso foi polêmica, enquanto isso:

O Brasil registrou um crime de estupro a cada seis minutos em 2023. Com um total de 83.988 casos de estupros e estupros de vulneráveis registrados e um aumento de 6,5% em relação a 2022 o país atingiu um triste recorde. As mulheres são a maioria das vítimas e os agressores estão, na maior parte das vezes, dentro de casa. LINK


Foi só mais uma notícia. Desfavor da Semana.

SALLY

Eu nem queria falar sobre esse tema, pois acho que mesmo para o público do Desfavor vai ser difícil. Criou-se um muro de concreto intransponível: argentinos são racistas, a música que a torcida argentina vem cantando desde 2022 é racista. Não acho que nada nem ninguém possa desfazer isso. Mas, vamos tentar.

Só vou falar sobre isso uma única vez aqui, quem entender entendeu, quem não entender vai ficar preso às suas crenças: a torcida argentina faz muita coisa considerada racista, mas não é o caso dessa música, que está gerando tanta polêmica. O trecho que apareceu no vídeo que enfureceu os franceses foi “OUÇAM, ESPALHEM A PALAVRA. ELES JOGAM NA FRANÇA MAS SÃO TODOS DE ANGOLA”.

Com isso se quer dizer que a França é um país tão merda, com pessoas tão ineptas, que precisa naturalizar cidadãos de outras nacionalidades que joguem bem futebol, pois uma seleção só de franceses não ganharia nada. Franceses = uns bostas. Os de angola = os que realmente jogam bem e carregam a França nas costas.

Nem o mais militante dos militantes vai poder negar que a França dá cidadania para pessoas que normalmente escorraçaria quando elas jogam um bom futebol. A França importa craques. E se existe um demérito aí, é da França, e não dos que são bons jogadores que acabam na seleção deles. Ou por acaso agora dizer que alguém é de Angola é demérito? No caso, racismo seria acreditar que é demérito vir de Angola.

Curiosamente, os africanos, especialmente o pessoal de angola, está adorando a música e se manifestando de forma positiva nas redes sociais, numa vibe “é! Eles não sabem jogar e roubam nossos craques!”. Só quem está ofendido é o francês mesmo (que sempre se ofende) e o brazuca, que não perde uma oportunidade de apontar o dedo para qualquer vizinho para desfilar virtude e superioridade moral.

O problema é a forma como o argentino fala. Vocês não entenderiam. Tudo é exacerbado e a palavra “negro” é usada como adjetivo. Assim como no Rio de Janeiro se diz que alguém ou algo é “paraíba” quando é cafona, feio, inadequado, na Argentina se diz que é “negro”. Mesmo que a pessoa seja branca feito um giz e com olhos azuis, se ela sair malvestida ou fizer uma cagada, será chamada de negra. É um adjetivo não vinculado à cor da pele daquele que se quer ofender.

Eu sinceramente não acredito que os cariocas tenham realmente alguma coisa contra as pessoas que nasceram na Paraíba, é um adjetivo. Talvez seja infeliz, mas é um adjetivo. Você não precisa ser natural da Paraíba para ser chamado de “paraíba” no Rio e o fato de chamarem os outros de “paraíbas” certamente não nos autoriza a dizer que cariocas odeiam pessoas nascidas na Paraíba. Mas o Brasil não está pronto para essa conversa.

Se falamos de atos, mais de uma pesquisa sobre racismo e a sensação que negros sentem no país mostra que o Brasil é muito mais racista do que a maior parte dos vizinhos, inclusive que a Argentina. No Brasil o sentimento, a percepção de efetiva discriminação é maior. Mas, Deus os livre de admitir seus problemas, vamos colocar o botton de racismo nos argentinos e posar de superiores.

E até aqui, eu podia lidar, como sempre lidei. Tanto é que esta deve ser a primeira vez que abordo este assunto aqui, em mais de 15 anos. Eu já aceitei que para o brasileiro, por mais bem tratado que seja quando vai à Argentina, o argentino é racista e ponto final. É isso, o pensamento nunca vai mudar. O problema é que não para por aqui.

A vontade de ostentar uma suposta superioridade moral está fazendo o brasileiro focar com força em canto de torcida (como se os do Brasil fossem muito politicamente corretos…) e deixar passar sem a devida indignação coisas muito mais graves, como por exemplo, a notícia que ilustra este Desfavor da Semana: o Brasil registra um crime de estupro de vulnerável a cada seis minutos.

Percebam que estamos falando dos casos em que as autoridades públicas tomam ciência, ou seja, de uma minoria dos casos. Os números reais devem ser bem maiores, afinal, a maioria acontece dentro de casa. Então, quer achar que o argentino é racista? Beleza, vamos trabalhar com essa premissa, apesar de ela estar errada: o argentino é racista. Ainda assim, vocês estão em um país onde, nivelando por baixo, a cada seis minutos uma criança é estuprada, a maior parte delas dentro de casa.

Pela régua de vocês, se o argentino é racista, meus queridos, vocês são estupradores de criança, pois é um comportamento comum e reiterado. Acho, só acho, que não convém generalizar quando se tem essa realidade. Acho, só acho, que vocês têm coisa mais importante para se preocupar e manifestar indignação do que canto de torcia. Acho, só acho, que vocês não estão com muita moral para falar nada de ninguém.

Sério, gente. Uma quantidade abissal, assustadora, desmedida de crianças sendo estupradas dentro de casa. É o efeito BBB: ninguém assiste, mas o troço bate recorde de audiência. Ninguém estupra, mas os números estão nas alturas. Bota a mão na consciência e pensa se realmente tem que focar em canto de torcida e se realmente há moral para ficar apontando o dedo para o vizinho.

Se nós argentinos medíssemos o brasileiro pela régua generalizada cruel e exagerada que vocês usam conosco, os apelidos seriam muito piores, acreditem. Era para vocês estarem com fama de estupradores de criança. Mas, o brasileiro continua metendo o pau no argentino e o argentino continua pagando faculdade para o brasileiro e tratando-o super bem quando ele visita o país. E o vilão continua sendo o argentino.

Tomem vergonha nessa cara e resolvam seus B.Os antes de apontar o dedo para o vizinho. Vocês não estão podendo falar de ninguém.

Para dizer que é melhor estuprar criança do que ser racista (sim, eu já li isso), para dizer que a pior parte era a do traveco do Mbappé (eu concordo) ou ainda para dizer que país como a França, que até pouco tempo tinha zoológico humano com negros, não tem moral para ficar tão ofendido por um simples canto de torcida: comente.

SOMIR

Para continuar essa conversa, uma informação importante sobre os números de estupros de vulneráveis registrados: a maioria das vítimas são meninas negras. Então só para bater mesmo na questão, se os jogadores argentinos tiram sarro de jogadores negros franceses milionários, os brasileiros estupram crianças negras pobres.

Como eu não tenho merda na cabeça, eu não digo que todo homem brasileiro é estuprador de criança negra. “Brasileiro é complicado, viu? Não pode ver uma menina negra que sai estuprando…”, porque se é para generalizar, funciona nos dois sentidos. Mas é claro, estamos dizendo aqui que não estamos mordendo a isca da polêmica besta de rede social.

Ao invés desse papo furado de rótulos e generalizações, precisamos lidar com informações bem desagradáveis: a primeira é que no mundo moderno ainda é muito difícil separar preconceito genuíno contra cor de pele de questões sociais. Por causa da forma como o continente africano foi explorado por séculos, formou-se enormes comunidades de descendentes de africanos escravizados ou refugiados do caos político/militar em sua terra natal.

E essas comunidades compartilham a característica da pobreza desproporcional. Se você começa uma corrida mil passos atrás das pessoas ao seu redor, é de se esperar muita dificuldade de alcançar. Ainda estamos nesse ponto da história, ainda não dá para entender o negro que foi arrancado da África e jogado no “mundo ocidental” sem contar toda a parte de ter chegado sem dinheiro ou direitos humanos.

E pessoas nessa situação de pobreza tem características parecidas, independentemente da cor da pele. É burrice achar que o negro é inferior, porque não tem nada inerente ao negro que não se repita em outras cores de pele em condições sociais parecidas; mas também é burrice achar que a cor da pele criaria alguma imunidade aos comportamentos e problemas típicos de quem nasce e cresce em comunidades muito pobres e marginalizadas.

Eu normalmente sou voto vencido entre os centristas quando digo que precisamos de reparações financeiras por causa da escravidão, mas eu mantenho o ponto: não é que vai resolver na hora, mas é uma forma de criar mais riqueza que pode ser passada para as próximas gerações e eventualmente equilibrar essa corrida. Vai demorar muito de qualquer jeito, mas um passinho hoje pode equivaler a vários quilômetros no futuro distante.

Seja como for, voltando ao ponto: uma das coisas que mais complica o desenvolvimento de um ser humano é abuso na infância. Isso é visto em qualquer sociedade, qualquer cor de pele: criança que é forçada a lidar com agressividade e sexualidade adultas antes de ter cabeça para isso fica para trás. Não quer dizer que nunca consigam alcançar uma vida adulta mais saudável, mas quer dizer que de repente a vida dela vai para a dificuldade mais alta. Começou a corrida e nos primeiros passos aparece uma barreira na sua frente.

Eu sei que no fundo algumas pessoas pensam que “essas meninas de 12 já estão muito sexualizadas hoje em dia”, e eu sei que tem muito caso cinzento nessas estatísticas, mas o que não muda é o fato da menina ser menina: ela achar que está pronta não a faz menos menina. Quem tem a mínima memória do fim da infância e do começo da adolescência sabe como éramos frágeis e confusos. Ir para o baile funk e cantar música explícita não significa que a criança saiba do que diabos está falando. E se você acha que ela sabe, é mais burro do que ela, que pelo menos tem a desculpa da inexperiência de vida.

Esse tipo de exposição muito antes da hora ao mundo adulto, inclusive com violências terríveis como estupros, é uma máquina de formar gente brutalizada, que repete o ciclo com os filhos que inevitavelmente vai ter. Quem planeja gravidez é rico. Estupro de meninas não é só a maldade que se faz com elas, é um caminho certeiro para derrubar o IDH de qualquer país. Tudo piora quando maltratamos as crianças. Os povos mais atrasados e brutais do mundo sempre tem essa característica.

Parece solução mágica, mas é suportada por números: proteger crianças de abusos de adultos é um dos fatores mais decisivos para aumentar a qualidade de vida de um país no futuro. Olhe para os países do mundo que “deram certo”, todos dedicam uma quantidade de energia e recursos enorme para as crianças. Mesmo os que cobram pesado delas como os japoneses ainda sim se viram para entregar excelência total para elas.

Países que deixam crianças soltas na rua na mão de adultos predadores e não oferecem nada além de sexualização precoce acabam com taxas de violência enormes e números recordes de utilização de remédios controlados. Isso volta à questão racial porque é demonstrável como os negros brasileiros estão desproporcionalmente na posição mais vulnerável pela pobreza. Isso é o racismo estrutural, muito mais do que palavras com raízes preconceituosas. Não é sobre “buraco negro” ser um termo racista, é sobre uma sociedade quebrada que estupra meninas negras em escala industrial.

Eu sonho com o dia que o racismo brasileiro for musiquinha de jogador de futebol. Porque aí pelo menos a parte de estuprar sem parar meninas negras e enfiar elas num ciclo de abuso constante não vai ser mais o elefante na sala. E esse tipo de racismo não some com Ministério da Igualdade Racial, some com humanismo básico. Enquanto o pobre brasileiro estiver nesse grau de brutalização, isso vai acertar desproporcionalmente o negro que é mais pobre em média do que o esperado pela composição racial brasileira.

Eu sou maluco de achar que tem que parar tudo até resolver a parte de estuprarem crianças a cada 5 minutos e só depois pensar no resto?

Para dizer que somos racistas (desisto de você), para dizer que o problema da musiquinha as pessoas acham que podem resolver, ou mesmo para dizer que a culpa é das vítimas: comente.

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Comments (10)

  • Interessante ressaltar que esta música foi popularizada num momento em que Mbappé teve várias polêmicas (abafadas) envolvendo a opinião dele sobre jogadores sul-americanos: fez escândalo com a contratação do Messi no PSG (exigindo à diretoria que não se contratasse mais latinos, caso contrário ele iria embora), e depois deu declarações afirmando que jogadores oriundos da América Latina eram inferiores aos europeus. Como paga pedágio pra beautiful people, no geral não deu em nada. Eu vejo esse canto como um lembrete do torcedor argentino ao Mbappé: “sabe quem também não é europeu? Você mesmo!”

  • Cabe lembrar que no contexto do Rio de Janeiro, o uso do termo Paraíba, proveniente da língua da população indígena que aqui residia, seria para designar o rio Paraíba do Sul e por extensão passou a ser utilizado para as pessoas provenientes daquela região como gíria, não tendo nada a ver com o estado da Paraíba em si.

    Além disso, o rio Paraíba do Sul é a principal fonte de abastecimento da região metropolitana do Rio de Janeiro e os problemas de poluição de tal água a montante afetam a qualidade de água quando ela chega pro abastecimento em tal região.

    Tanto é assim que boa parte dos municípios no leste de SP e no interior do RJ e alguns municípios no extremo sul de MG fazem parte da região do “Vale do Paraíba”.

  • Um comentario necessario. Num pais do tamanho do Brasil, qualquer coisa em escala nacional reunida numa escala de tempo só será escandalosa. É mais correto ver por milhão de habitantes. Seria legal saber os numeros da Africa e Asia tambem.

    • Continua em um número por tempo absurdamente alto. E comparando tamanho não faria diferença.

      Afinal, 10 / 2 e 10 milhões / 2 milhões da no mesmo…

      • Mas é CLARO que faz diferença. Vamos buscar conhecimento!

        https://worldpopulationreview.com/country-rankings/rape-statistics-by-country

        Nos EUA, ocorre um estupro a cada 1-2 minutos. Como eu tentei dizer (acho que não fui muito claro), qualquer estatística “achatada no tempo” em um país grande vira um número ridículo. É uma questão de escala e ordem de grandeza.

        O Brasil não está nem no top 10 normalizando as estatísticas.

        Só de farra, dez países com taxas maiores que as do Brasil (22 estupros por 100 mil habitantes em 2020).

        EUA – 37; Reino Unido – 46; França – 39; Peru – 29; Suécia – 85; Guatemala – 34; Equador – 35; Bélgica – 32; Panama – 54; Dinamarca – 37.

        Na Argentina, a taxa é de 12, cerca de 54% da do Brasil.

        É óbvio que a notícia é uma tragédia, é óbvio que é uma realidade tosca, é óbvio que é ridículo dar mais ênfase pruma música de torcida de futebol.

        E é óbvio que os números são complexos e têm camadas de interpretação. Por exemplo, diferenças de subnotificação e diferenças no tipo de estupro/vítima entre países.

        Desculpem, mas eu sou um chato profissional pago para ser chato há muitas décadas.

        • É difícil comparar, mesmo quando falamos de números proporcionais, pela questão da denúncia e do acolhimento. Certamente uma mulher na Suécia terá muito mais condições de reportar um crime do que no Brasil. Mas, como você mesmo falou, nada disso afeta o cerne da questão que é dar enorme importância a algo que não deveria ter (canto de torcida) e dar menos importância a algo que é grotesco (não importa em que posição o Brasil está, essa quantidade de estupros é grotesca). Não há qualquer problema em questionar ou trazer informações novas nos comentários, eles existem justamente para isso.

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