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1×1=2?

1×1=2?

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Um ator americano chamado Terrence Howard ganhou relativa popularidade recentemente por ser chamado para o podcast do Joe Rogan, um dos maiores do mundo. O tema da conversa? Terrence diz que tem uma nova visão sobre matemática que pode mudar a forma como a ciência funciona. Sua afirmação principal é que 1×1 é igual a 2.

Eu poderia ser mais “jornalístico” e ficar carregando vocês num texto ambíguo sobre essa ideia, deixando no ar se eu via algum mérito nela, mas não ligamos para nenhuma métrica de cliques ou tempo de leitura… não há nenhuma base nas alegações de Terrence, ele não tem a menor ideia sobre o que está falando e provavelmente tem algum problema de saúde mental que o faz não perceber como está errado.

Se você vir alguém falando sobre esse assunto de forma golpista/conspiratória, já vai saber que é uma pessoa descompensada sendo descompensada e ganhando atenção por ser famosa, não tem nada de científico aqui. Terrence não consegue provar nada, afinal, nem sabe por onde começar na parte científica, e o papo é totalmente baseado nele ser um gênio incompreendido sendo atacado pelos “cientistas malvados”.

Porém, eu acredito que possamos tirar um tema daqui: não tem nada te impedindo de fazer o mesmo. Criar uma nova teoria matemática, física, química, sociológica, filosófica… tirar tudo da sua cabeça, conectar pontos do jeito que quiser e escrever tudo isso de forma bem persuasiva. E melhor, sempre vai ter um público para você.

O caso de Terrence me soa como algo que veremos com mais e mais frequência no futuro. Eu consigo ver claramente o processo mental de criar esse tipo de “Fake News científica” e chegar numa conclusão surpreendentemente consistente. 1×1 pode ser 2 se você quiser. E como o ator americano prova, se você tiver uma mínima noção de como se expressar e criar argumentos, pode ser 2 para um monte de gente também.

Estamos pisando em território filosófico aqui: verdade é uma coisa complicada. Era de se esperar que a primeira coisa que resolveríamos pensando sobre o mundo era uma fundação básica sobre o que é real e o que não é. Muito pelo contrário, a filosofia passou milhares de anos tentando e a resposta não veio. Pelo menos não como uma fundação de pensamento. Não existe uma sequência correta de palavras e ideias que consiga convencer todo mundo do que é real ou não.

Existem resultados experimentais e provas lógicas de algumas ideias que tivemos, mas nem a parte mais “exata” das ciências vence essa barreira: um filósofo ou uma criança de 4 anos de idade podem colocar os maiores cientistas do mundo num canto, acuados, com uma sequência de “por quês”. A prova lógica de que 1+1=2 é feita num livro de 162 páginas que só foi escrito no começo do século passado! E mesmo esse calhamaço de símbolos de lógica pode ser questionado nas primeiras páginas: porque precisa de premissas que você concorda ou não.

Nosso conhecimento acaba baseado nessas premissas. Definimos que precisamos concordar em alguns pontos e partimos daí. Se você volta em alguma dessas premissas e começa a reescrever o que consideramos real, existe uma boa chance de chegar em conclusões imensamente diferentes das que são tratadas como verdades científicas atualmente.

E você pode achar que essas conclusões são bem convincentes. Tem gente que acredita em Terrence Howard e acha que existe um complô científico contra as revelações dele (ainda tem toda a questão dessa pessoa ser negra, o que enfia um contexto de racismo na história para deixar tudo mais complicado). Como eu já disse num texto anterior: estar errado não dói. Não existe bloqueio universal contra você pensar no que quiser pensar.

Então a ciência é apenas uma questão de “segurança em números”? Basta que muita gente concorde com algo para ser verdade? Não. Longe disso. Precisamos de consenso para definir algumas premissas, mas na maioria dos casos é mais uma tecnicalidade: por mais que a prova lógica de 1+1=2 ocupe um livro de 162 páginas, é fácil provar para qualquer criança que isso faz sentido com duas maçãs. A formalização da ideia é complicada, mas a prova é experimental.

E aqui que separamos ideias aleatórias de ciência: ciência é baseada em experimentos e comparação de ideias com exemplos práticos das coisas. Todo mundo é livre para desenvolver a teoria que quiser, pode chutar, pode vir num sonho, pode ser papo de maconheiro às 4 da manhã, você sempre é livre para propor ideias. Ciência vem depois da ideia: precisamos fazer experimentos e coletar dados para ver se a ideia consegue prever resultados reais.

Einstein bolou uma teoria maluca sobre curvatura do espaço e do tempo, virou a física de ponta-cabeça. O que ele falava convenceu muita gente a começar a procurar evidências práticas. Alguns anos depois da publicação da primeira versão das suas ideias de Relatividade, outro cientista analisando os raios do Sol durante um eclipse percebeu que havia sim uma curvatura na luz. O mundo científico se adaptou depois disso. Experimentos e medições posteriores continuaram verificando como as ideias dele batiam com o que se via no mundo real.

O cientista alemão precisou de provas como todos os outros para deixar de ser alguém com ideias interessantes para alguém que tinha reescrito o funcionamento do universo. Não existe fé em ciência. Claro que alguém com mais fama e resultados positivos anteriores ganha mais atenção e consegue que mais pessoas testem suas teorias, mas não existe isso de confiar numa teoria só por causa da pessoa que a desenvolveu.

E é essa parte do conhecimento científico que parece fugir da mente do cidadão médio: não é sobre bolar uma teoria genial, é sobre outros cientistas saírem testando suas previsões e vendo se elas batem com os dados coletados. Tem a parte divertida de ter a ideia e tem a parte chata de testar a ideia. A maioria de nós tem capacidade de bolar teorias se quisermos, o que não costumamos ter é experiência e educação suficientes para não termos ideias que outras pessoas já tiveram mil vezes e que foram provadas como incorretas vez após vez.

Ciência passa a impressão de um clubinho fechado porque, francamente, são milhares de anos de ideias e apenas algumas delas deram em algo que preste. A pessoa vai estudar para saber o que já deu certo e evitar virar um daqueles macacos infinitos com máquinas de escrever: você pode ter quantas ideias quiser, mas a maioria vai ser porcaria aleatória. E pior, porcaria aleatória que outros macacos já digitaram, que já foi lida e que não estava certa.

Mas se você conecta os pontos de um mundo onde pessoas recebem mais informação do que nunca e a ilusão de importância das nossas opiniões e visões de mundo criadas pelas redes sociais, percebe que a era das teorias malucas está só começando. Cada pessoa que se educa um pouquinho a mais que a média pode começar a deixar de ter visões de mundo baseadas em religião (que é controlada por figuras de autoridade que não te deixam mudar a lógica delas) para visões de mundo baseadas em ciência, que não são rechaçadas com ameaças de danação eterna ou violência física iminente.

A ciência te deixa falar qualquer coisa. E o cidadão médio não parece entender que você pode ver lógica no que bem entender, que existem sistemas de provas e experimentos na ciência justamente para não criar caos infinito de bilhões de ideias conflitantes. O terraplanismo e o movimento antivacina são bons exemplos desse pulo entre visão religiosa para visão científica sem nenhum rigor de análise dos dados. Você sai de um lugar limitado para um de imensa liberdade, e se você nunca tiver treinado seu cérebro para usar o método científico, vai desenvolver ou acreditar em qualquer coisa.

É só conectar palavras para criar uma ideia. E como a ciência não existe sem liberdade de expressão, ela não pode proibir pessoas de divulgarem qualquer coisa que quiserem divulgar. Terrence não é uma pessoa ruim pelo ponto de vista científico, as pessoas que confiam no método científico como uma ferramenta de fazer o bem no mundo jamais defenderiam censurar o cidadão, mas precisamos de mais educação no mundo para percebermos como você precisa fazer mais do que “ter uma ideia” quando estamos nesse campo da ciência.

A regulação da ciência acontece depois da ideia. Porque ideia qualquer um pode ter, fazendo sentido ou não. Se você conseguir provar que sua ideia descreve o que é experimentado, ninguém segura mais a ideia. Nenhuma das grandes Teorias que dão a base da nossa ciência precisou de convencimento argumentativo para virar base do conhecimento humano, elas tiveram que ser provadas em experimentos. Não é sobre ser bom de papo, é sobre ser bom de teste prático.

E eu prevejo que com o suporte de inteligências artificiais, mais e mais seres humanos vão ter a capacidade de escrever e falar de forma mais convincente. Se você não colocar na cabeça que existe uma diferença absurda entre teoria com comprovação experimental e teoria por teoria, vai cair em armadilhas cada vez mais numerosas no futuro.

Ideias podem ser muito divertidas de ter e conversar, mas são só ideias. Quer mudar a forma como as suas são entendidas no mundo? Faça uma previsão que seja comprovada por muitos experimentos científicos. E esteja preparado até para ter que rever a sua se outra surgir com previsões mais precisas ou mais abrangentes.

Ciência não é ideológica, não faz parte dela convencer com bons argumentos e ganhar corações. No final das contas, ela tem uma parte divertida e outra chata como a maioria das outras profissões do mundo. A parte divertida todos nós conseguimos fazer, é a parte chata de testar, testar e testar que faz a diferença. O mundo científico sofre atualmente com a crise de reprodutibilidade: tem muita gente soltando ideias por aí e pouca gente para verificá-las. As verbas vão para o povo das ideias ao invés do povo dos experimentos, forçando esse cenário contraproducente.

E talvez isso esteja contaminando a forma como o cidadão médio percebe ciência: como um lugar de ter ideias bacanas e ganhar fama e dinheiro com isso. Os “cientistas do futuro” podem acabar achando que é para ser influencer de jaleco ao invés da turma que rala tentando fazer experimentos para ver quais ideias vão para frente ou não.

Para dizer que eu não provei que ele estava errado, para dizer que eles não querem que a gente saiba a verdade (a gente já sabe: os ricos mandam e não fazemos nada porque queremos ser ricos também), ou mesmo para dizer que é racismo discordar dele: comente.


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