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Colunas

O dia seguinte.

A humanidade sempre passa por ciclos de calmaria e surtos revolucionários. Nossas estruturas sociais com certeza não são feitas para durar. Em tempos de polarização ao redor do mundo, talvez seja interessante explorar a ideia de que existe vida depois da revolução.

Não importa a natureza ideológica da sua revolução, ela ainda tem que lidar com o fato de que depois de tudo, o mundo continua girando. As pessoas ainda vão precisar se alimentar, ter problemas de saúde, querer segurança, abrigo… e fazer todo tipo de coisa horrível que já faziam antes.

Na tragédia do Rio Grande do Sul vimos como tinha gente assaltando voluntários de barco, como abusos continuaram acontecendo nos abrigos, como políticos tiraram vantagem do povo que perdeu tudo, apareceu até um cidadão vendendo água doada. Por mais grave que seja a situação, o ser humano não deixa de ser humano. O que, é claro, compreende toda a parte bonita e louvável de quem parou tudo o que estava fazendo para ir ajudar, às vezes arriscando a vida para tal.

O ponto aqui é sobre o dia seguinte. Ideais revolucionários tem esse problema recorrente de imaginar um mundo melhor pela troca da ideologia dominante, mas sem entender muito bem como as coisas vão funcionar na prática. O cotidiano pós-revolucionário tem o péssimo hábito de acabar muito parecido com o pré. Mudam as moscas, ou para ser mais claro, mudam os líderes.

Se você quer “derrubar tudo o que está aí”, eu não te culpo. O Brasil é imensamente corrupto, cheio de prioridades distorcidas. Eu também quero uma mudança, mas primeiro eu tento imaginar o dia seguinte. O que a mudança que você tem em mente significa para a vida das pessoas, na prática? Como sua nova realidade pode substituir o que já fazemos?

Porque aqui tem uma pílula vermelha, preta ou roxa com bolinhas verdes: as coisas não são como são à toa. O ser humano se acomoda em situações que fazem algum sentido para ele, mesmo que numa análise mais complexa você ache um absurdo. Pessoas vivem em relacionamentos abusivos, são exploradas sabendo que são exploradas, ficam com medo de mudar, acham alguma desculpa para se convencer que estão fazendo o melhor que podem.

Mas ao mesmo tempo, podemos pensar que nessa disfuncionalidade toda, o ser humano médio tem acesso a coisas que nossos antepassados jamais sonhariam. Mesmo em partes pobres do mundo, o acesso a alimentação, saneamento básico, saúde e educação só aumenta. Novamente, nada contra você querer que isso aconteça mais rápido, eu também quero, mas num mundo muito do imperfeito, a qualidade de vida média das pessoas aumenta. Pode-se argumentar que o estresse está aumentando, mas é claro que nos acomodamos numa situação que pelo menos parece melhorar.

E esse é o verdadeiro desafio de qualquer revolução: depois que a descarga de dopamina por virar tudo do avesso acontecer, quem garante que não vamos assentar novamente num sistema que já conhecemos? Mesmo as revoluções comunistas acabaram com uma classe dominante tendo muito mais recursos que o cidadão médio. Porque no dia seguinte que o proletariado corta a cabeça da burguesia, alguém tem que organizar o povo, porque o povo vai querer organização. E com isso fatalmente as estruturas de poder começam a renascer com novos rostos, e muitas vezes com os velhos que ainda estão vivos, experiência conta nessas horas.

Vimos recentemente como um Estado falido como o Haiti achou alguma forma de organização através das gangues. Depois de algum tempo, alguém vai pensar que precisa de um hospital, alguém para gerenciar o dinheiro, para gerenciar pessoas em grupos menores… todo caos termina em alguma forma de organização. E é aí que percebemos como não existem muitas fórmulas novas de montar uma sociedade.

Pelo menos não tão testadas como as que já estamos acostumados. É uma espécie de entropia social: as pessoas tendem a um estado de menor gasto de energia para viver, não tem mais volta o aprendizado sobre organização social e divisão de tarefas para especialistas. Você pode chacoalhar o sistema, mas ele vai assentar de formas bem parecidas.

E é aqui que eu vejo um problema sério sobre a polarização típica dos nossos tempos: planos e mais planos de como chacoalhar o sistema, mas pouca ou nenhuma preocupação com o dia seguinte. O povo da esquerda continua achando que o ser humano é o bom selvagem que só faz coisa errada por causa do sistema, o povo da direita acha que só falta um líder forte para controlar o pior da humanidade… e os dois não lidam com o fato de que somos tudo ao mesmo tempo.

E que no dia seguinte da revolução, precisamos saber quem é responsável pelo que, precisamos saber onde colocar nossa energia, precisamos definir políticas sociais que lidem com pessoas com as mais diferentes necessidades… vai ter abusador caçando criança depois da revolução de esquerda, vai ter criança doente que precisa de remédio caríssimo depois da revolução de direita. Ninguém consegue eliminar todos os problemas incômodos para a ideologia da vez, não importa quão enorme seja sua revolução.

Eu não me considero centrista por odiar tudo o que esquerda e direita dizem, concordo com vários pontos que mencionam, mas como eles entregam pouca ou nenhuma ideia sobre o que fazer no dia seguinte, parecem ideologias vazias. No dia seguinte, ou você pensa com uma cabeça centrista, ou sai correndo com todos os defeitos do radicalismo até o povo começar a sofrer de novo. Ou os líderes em questão montam uma ditadura muito eficiente, ou acabam engolidos pela próxima revolução.

Sem o dia seguinte, vamos para autoritarismo ou caos revolucionário, de novo. Não adianta mudar só quem está no poder, tem que mudar o poder. E para mudar o que configura poder para nós, vai ter que ter uma ideia melhor do que as que já estamos aplicando. Não só uma ideia melhor, como uma com a qual as pessoas consigam conviver. Nem mesmo os déspotas mais assassinos conseguiram matar todos os dissidentes.

E tem todo um mundo ao nosso redor. Sua revolução vai acabar selecionando grupos distintos de aliados e adversários. Você tem um plano para lidar com as novas relações internacionais? Ou vai ser que nem o PCO que diz que vai dar calote na dívida assim que assumir o poder? O povo mais radical de direita quer cortar relações com a ditadura comunista da China. O que fazer sem o maior parceiro comercial? E os interesses das pessoas que vivem no seu país.

Se fosse fácil cortar umas cabeças e resolver os problemas sociais, já teria funcionado. Cortamos muitas cabeças nessa jornada até a Era Moderna. Complicado usar guilhotinas se seu adversário é uma hidra. Cortou uma, aparecem duas no lugar. As pessoas esquecem que depois da Revolução Francesa, a monarquia voltou com outro título nas mãos de Napoleão Bonaparte. Teve que ser derrubada de novo. E de novo.

Foram alguns ideais, que na base da teimosia sem fim, que criaram o tipo de estrutura democrática moderna. E eu até argumentaria que foi mais resultado das novidades do capitalismo industrial que realmente deu corpo para essa ideia que temos hoje. Dava mais dinheiro soltar um pouco mais a coleira do povo. Quando o sistema se acomodou em algo que parecia lucrativo para as partes, a sociedade viu os avanços que viu.

E agora, mantendo que com muita razão, as pessoas estão irritadas com um sistema que patina para entregar evolução compatível no século XXI, começa a demonstrar ideais revolucionários de novo. Eu argumento que o último grande salto que demos tinha algo além de vontade revolucionária: tinha uma base tecnológica e econômica que fazia sentido para quem vivia naquele tempo. Talvez até sem querer, tinha um dia seguinte na revolução.

Sem revolução temos um avanço lento baseado no aprendizado de milênios sobre o que mais ou menos funciona. Se não tivermos outra forma de organizar a sociedade para nos acomodarmos novamente, as revoluções pensadas por radicais de esquerda e direita estão fadadas a involuir para o que já tínhamos antes, com outras alegorias e talvez alguns nomes diferentes entre os privilegiados.

Revoluções que se sustentam não são ideológicas, são orgânicas. Porque elas já começam com um objetivo do que fazer no dia seguinte, de como continuar a vida em sociedade com algo que não seja “repetir o que já deu errado mil vezes no passado com outros líderes”. Vai revolucionar o quê se o plano é bater em quem não concorda com você? Acha que não tentaram isso milhões de vezes antes? Que o mundo começou ontem e que ninguém pensou que “se eu mandasse em todo mundo daria certo”?

Porque já pensaram e já tentaram. Não deu. Primeiro porque uma pessoa ou uma ideologia não resolvem todos os problemas, e segundo porque nunca vai existir concordância plena. Até povos oprimidos se “vingam” produzindo pouco. De alguma forma, boa parte da humanidade concordou com a ideia de ir para as cidades e desenvolver esse tipo de capitalismo que define o mundo moderno. Não quer dizer que foi a melhor ideia possível, mas de alguma forma as pessoas toparam.

Não era grandes coisas, mas era um dia seguinte. Qual é o dia seguinte que faria com que as pessoas se assentassem numa nova realidade? Quem tiver essa resposta provavelmente vai ter a próxima revolução de sucesso. Porque se for para mudar o mundo com pronome neutro ou com mais gente armada, francamente, não tem a menor chance de gerar mudança generalizada no longo prazo.

Já falei e vou repetir: ou tem tecnologia para mudar o mundo, ou é só trocar um imbecil poderoso por outro. No dia seguinte, continuam sendo imbecis.

Para dizer que eu estou ficando velho, para dizer que a revolução será tiktokada, ou mesmo para dizer que a sua revolução tem um plano diferente: comente.

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direita, esquerda, revolução, sociedade, tecnologia

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