Ragebait e os muambeiros culturais.
| Somir | Flertando com o desastre | 4 comentários em Ragebait e os muambeiros culturais.
Faz tempo que mencionamos aqui como muito da cultura moderna brasileira é versão de camelô da cultura americana. Boa parte da guerra cultural que o brasileiro trava no cotidiano é basicamente igual ao que estava em voga nos EUA há alguns anos. Da lacração ao conservadorismo, cópias descaradas. Sabemos que isso acontece, mas por que acontece?
Muita gente ganha a vida trazendo produtos importados para o Brasil, país notório por seus impostos protecionistas. E como o controle de nossas fronteiras é bem relaxado, existe um enorme mercado de trazer todo tipo de bem de consumo “escondido” para revender por preços mais em conta para o povão. São os muambeiros, que saíram um pouco de moda por causa da explosão dos sites chineses, mas que agora devem recuperar um pouco da força por causa da voracidade fiscal do governo Lula.
O Brasil, por maior que seja, é um país focado em vender matérias primas, com uma indústria bem fraca em comparação. Se você quer eletrônicos ou penduricalhos produzidos em massa, provavelmente precisa importar. É um trabalho chato ir para o Paraguai buscar coisas e trazer para cá arriscando ter o material confiscado, mas é lucrativo. Onde tem dinheiro, tem gente trabalhando.
Mas tinha uma coisa que a gente sabia produzir em larga escala: cultura. Mesmo que mais limitados a parte de música e televisão, o cenário cultural brasileiro era robusto o suficiente para dar conta dos interesses do brasileiro médio. Por mais comunistas piolhentos que fossem nossos expoentes culturais, eles tinham bastante produção para manter o ecossistema nacional suficientemente saudável.
Até aqui informações. A partir daqui impressões: eu percebo que a nossa indústria cultural fracassou em atender a demanda do mundo pós-internet. Sim, ainda temos uma pujante indústria de músicas sobre promiscuidade e bebedeira, mas não é só disso que vive uma indústria cultural. A maioria do povo só quer saber de cultura baseada em copulação incessante, mas mesmo que seja uma minoria, sempre vai ter gente querendo mais.
E num país com centenas de milhões de pessoas, 90% com algum acesso à internet, era esperada uma demanda por mais cultura, e uma mais variada que dizer palavrões ao som de uma batida repetitiva. O Brasil falhou em entregar esse algo a mais. O povo foi buscar o produto importado.
Eu sou um exemplo disso: aprendi inglês cedo e me joguei de cabeça na cultura da internet, com altas doses de contato com a versão americana dela. Já cheguei num ponto que entendo até nuances locais da mentalidade dos americanos, e consigo entender contextos históricos das notícias que saem de lá. Fui colonizado mesmo sem ter admiração especial pelos americanos: como eles exportam muita cultura, você absorve sem perceber.
Isso me permitiu ter um contexto sobre o que vem de lá. Conservadores, liberais, disputas políticas, imperialismo, tecnologia… diversas coisas que impactam a visão do mundo do americano e dão contornos mais claros ao que eles projetam globalmente com sua cultura. Quando eu trago para cá informações vindas de lá, eu tento colocar esse contexto e adaptar para a realidade brasileira. E só consigo fazer isso porque tenho essa bagagem de ter passado tanto tempo exposto à cultura deles.
Mas se eu me considero um importador legalizado do que vem de lá, enxergo uma massa de muambeiros culturais fazendo algo parecido, mas sem nenhuma das preocupações que tenho com adaptações à realidade tupiniquim. Muitos dos influencers que infestam as redes sociais com histeria de esquerda ou direita se encaixam nessa categoria de muambeiros culturais. Pegam algo que vem da cultura deles, traduzem porcamente e arremessam no Brasil.
Problema deles e das pessoas que consomem esse conteúdo, né? Não acho que seja tão simples. Algo para considerar aqui: a cultura americana está num estágio muito mais avançado/degenerado que a nossa. Quase tudo é economicamente viável por lá, então até mesmo gente que foca em nichos minúsculos da cultura consegue sobreviver; e ao mesmo tempo a concorrência pela atenção do americano médio é tão absurda que eles estão num estágio muito avançado de apelação.
A apelação 99% sexual brasileira não é mais suficiente por lá. A cultura de massa americana está infestada por algo chamado de “ragebait”, que pode ser traduzido como “isca de raiva”. Para ter alguma chance de gerar cliques e discussões, os conteúdos precisam ser imensamente provocativos. Não basta mais gerar curiosidade, tem que deixar a pessoa furiosa com a informação recebida para ter uma chance de ganhar a atenção dela.
E quando o muambeiro cultural traz o ragebait de lá sem dar nenhum contexto, o brasileiro médio é exposto a um conteúdo muito apelativo por um ângulo que não tem muita capacidade de se defender. Dizer que a esquerda quer forçar seu filho a ser gay não é um começo de conversa razoável no clima cultural brasileiro, afinal, mas resolvemos ainda (como cultura generalizada) se é certo espancar pessoas por serem homossexuais. O grau de atraso aqui é grande, e sermos expostos a versões muito exageradas vindas dos americanos, ficamos com o pior dos dois mundos.
O conteúdo americano pós-internet é feito para uma população que tem alguma proteção contra brutalização, ao contrário do brasileiro médio. Aqui qualquer Fake News pode virar linchamento na rua. Boa parte dos brasileiros médios está a pouca distância de apedrejar mulheres acusadas de bruxaria. Quando você traz para cá o conteúdo que bomba nos EUA, você está trazendo um canhão para uma briga de faca.
E isso vale até para a parte da justiça social: o drama vindo do norte em relação aos transexuais tem muito a ver com a cultura deles, mas não muito com a nossa, por exemplo. O tipo de transexual mais comum no Brasil é diferente dos que começam a aparecer sem parar por lá. Os americanos estão discutindo homens de peruca, sendo que no Brasil a média ainda é de transexuais que se esforçaram horrores para se apresentar como uma mulher. Não é à toa que exportamos para o mundo todo. Quando você traz a histeria de ambos os lados ao redor do tema, fica meio estranho para a nossa realidade.
A gente ainda tem muito problema de transexuais morrendo em condições horríveis de exploração sexual e pobreza absoluta, eles tem problemas de adaptação de homens de classe média e alta de repente aparecendo com uma peruca no trabalho e pedindo para ser chamado de Stacy. E muitas vezes sequer sem fazer a barba. Pode ter mil opiniões sobre o tema, mas percebem que o ambiente americano é diferente do brasileiro?
Como muitas questões básicas já estão bem resolvidas nos EUA (e que fique claro que não é um país perfeito, muito longe disso, mas com certeza com muito mais dinheiro e estrutura básica que o Brasil) eles precisam de muito mais drama ideológico na vida. E tem vários elementos de competição, individualismo, capitalismo terminal… é uma cultura que consegue ser exportada, mas não é realmente compatível com outros países, especialmente países como o Brasil.
O muambeiro cultural traz para cá todas essas questões sem filtro, e vai gerando no brasileiro médio que tem seu primeiro contato com os temas uma sensação de ter ainda mais problemas para resolver. Não fizemos nem o básico. O Brasil tem questões bestiais para resolver. As pessoas não têm rede de esgoto. Não tem muita lógica colocar questões culturais de “primeiro mundo” na cabeça da nossa população.
Não tem lógica, mas tem potencial financeiro. Quem fica simplesmente copiando modas e manias culturais americanas, especialmente as políticas como divisão entre liberais e conservadores, está importando crack para vendar a uma população que mal conseguiu parar de beber. O grau de insanidade que vem dos americanos não é para amadores. E por mais que você já esteja descrente do mundo com as imbecilidades que os nossos influencers dizem, pode ficar muito pior.
Muitos dos sites americanos focados em ragebait estão começando a falir, a linha editorial das TVs americanas está um pouco mais contida, parece que o ambiente por lá está se corrigindo nesse sentido: não porque as pessoas estão mais moderadas, mas porque ficar fazendo provocação e tocando o terror o tempo todo começou a perder o potencial financeiro que teve na última década. Os anunciantes começaram a olhar os números de verdade e tirar dinheiro de publicidade por volume na internet.
Eu só não sei se essa onda vai chegar aqui: o potencial do ragebait ainda não foi explorado no mercado brasileiro, e como o povo brasileiro não tem muita cultura política para balancear essas muambas ideológicas americanas, eu temo que ainda não tenhamos visto o auge da onda de falar besteira na internet tupiniquim para deixar as pessoas furiosas.
Se você nunca parou para pensar nisso, pare e pense: é uma tática lucrativa produzir conteúdo que te deixe furioso(a) e ou descrente na humanidade. Seja criando espantalhos, seja falando besteira sabendo que está falando besteira. Isso provavelmente é muamba cultural americana, porque eles passaram quase duas décadas fazendo isso sem parar. Tem mil temas polêmicos diferentes que eles já usaram por lá que ainda não chegaram aqui. 99% da briga entre direita e esquerda que vemos é “tradução automática” de temas da cultura americana feitos por gente que quer biscoito ou dinheiro. Provavelmente ambos.
Não é conteúdo original, não é nem conteúdo bem estudado. É gente trazendo conversa de Alex Jones (que foi condenado por dizer que crianças mortas num tiroteio eram atores da CIA e disse que era maluco como defesa no caso) e de todo tipo de provocador profissional americano, lacrador ou conservador. Eles são a China da produção cultural, com foco especial em quinquilharias ideológicas sem valor.
Tem muita gente boa produzindo conteúdo de todos os tipos nos EUA, mas assim como no Brasil, coisas mais apelativas e superficiais tendem a fazer mais sucesso. Se você não quer ter o trabalho de fazer imersão na cultura americana para saber o que é bem estudado e o que é ragebait, a minha dica é tratar toda afirmação dramática sobre o futuro da nossa sociedade com muito ceticismo. Se te deixou com raiva, é possível que tenha sido feito de propósito para te deixar com raiva na versão original americana.
O muambeiro cultural vende falsificações grosseiras de discursos políticos, sem a complexidade necessária para pensar numa solução, mas irritante o suficiente para você não conseguir olhar para outra coisa.
E é claro, tudo sem garantia.
Para dizer que eu sou um fascista amante dos americanos, para dizer que eu sou um comunista que odeia os americanos, ou mesmo para dizer que pelo menos é barato: somir@desfavor.com
Texto muito bom, temas super interessantes. As pessoas deveriam ter a oportunidade de aprender mais sobre o assunto, pois perdem muito tempo caindo nessas iscas, e alguns até reproduzem na “vida real”.
Esse texto foi tão instrutivo quanto o último especial do South Park. Não apenas pelas linhas como pelas entrelinhas.
Infelizmente o ragebait é uma realidade já há bastante tempo por aqui, sendo que aquele viral do “Cotas: Essa conversa não é sobre você” é um clássico exemplo de ragebait.
Olavo de Carvalho era quase que o equivalente tupiniquim do Alan Jones e foi um dos mais profílicos desses muambeiros culturais, sendo responsável direto por importar grande parte do conspiracionismo e dos conceitos da turma do Tea Party pro país, ainda que combinados a seus próprios conspiracionismos que tomaram de assalto principalmente a revista Veja. Do outro lado, a esquerda hipster metida a inclusiva trás conceitos importados de lá dos EUA também sem o menor filtro ou pior, tentando adaptar a nossa realidade de uma forma pra lá de tosca.
Enquanto para o “não binário” pós moderno yankee usa o They/Them em substituição ao He/Him ou ao She/Her como pronome pra se vender uma falsa “pluralidade” e “impessoalidade”, aqui temos o Elu/Delu, o Ile/Dile e outras variações de gente querendo reinventar a roda se achando a última bolacha do pacote.
E sim, nós já temos a nossa Stacy que parece uma versão do Nando Moura só que com vestido feminino, que conhecemos pelo nome de Brigitte Lúcia.
Além disso, é notável em plataformas pornográficas o abuso de uma linguagem apelativa na tentativa de forçar engajamento que não era uma realidade há coisa de uns cinco anos atrás. Tentam forçar polêmica com “taboos” ainda que tudo não passe de uma série de taboos de Taubaté, ou seja, uma série de clickbaits plantados com vistas a tentar turbinar (ainda que de forma suja) as visualizações.
Ótimo texto, Somir. Já espalhei o link daqui para diversas pessoas que eu acho que precisam ler e depois, quem, sabe, também começarem a refletir e tomarem mais cuidado com as “informações” que recebem. Não é de hoje que o Brasil tem o infeliz costume de imitar, mal e porcamente, e com atraso, o que há de pior na cultura americana. Mas, de uns tempos para cá, isso está piorando. Eu já disse antes, mas não custa repetir: o que não falta neste mundo é gente fazendo péssimo uso da internet. Temos mentiras se tornando verdades e verdades sendo postas em dúvida como se fossem mentiras. Vivemos um tempo em que, gostemos ou não, temos que desconfiar sempre de tudo o que lemos,/ouvimos/vemos porque nada, ao que parece, chega a nós sem estar imbuído de ideologia e/ou “segundas inteções”. E quanto ao que você disse no fim: “(…) Ou mesmo para dizer que pelo menos é barato”. À primeira vista, pode até ser. Mas esse é um barato que, no final das contas, acaba saindo caro. Muito caro mesmo…
“Não é de hoje que o Brasil tem o infeliz costume de imitar, mal e porcamente, e com atraso, o que há de pior na cultura americana”. É “Complexo de Inferioridade” que. chama…