
Natureza covarde.
| Somir | Desfavor Bônus | 8 comentários em Natureza covarde.
Já ouviu falar de serial killer de lutador de MMA? Ou de políticos? Até onde sabemos, a absoluta maioria dos casos de assassinos em série só se concentra em mulheres, crianças ou mesmo parceiros sexuais, gente que é naturalmente muito vulnerável, ou se coloca em posições muito vulneráveis. Nesta semana temática, vamos pensar um pouco num dos piores problemas da covardia: sua terrível eficiência.
A Lei da Selva também pode ser chamada de lei do menor esforço. Quase todas as coisas que relacionamos com a ideia da lei do mais forte também é uma questão de maximizar resultados com o mínimo de esforço. É óbvio que o predador vai mirar no filhote da sua presa, é quem tem menos chance de escapar. O objetivo é sobrevivência, não gerar uma luta justa.
A natureza tem essa tendência desde as menores escalas da matéria, se você quer prever o que vai acontecer até mesmo em interações entre partículas fundamentais, basta descobrir qual é o caminho que menos precisa de energia para ser traçado. A água sempre rola morro abaixo.
O que a civilização humana conseguiu através do pensamento abstrato foi subverter essa lógica: ações que gastam mais energia e enfrentam a tendência do menor esforço começam a ser vistas como mais valiosas. Criamos um mercado de trabalho baseado na ideia de quanto mais custosa uma ação em tempo e dispêndio de energia, mais valor ela tem.
Mas essa é uma visão elevada da realidade, algo que tivemos que implementar aos poucos através de milênios de vida em sociedade. Vivemos num paraíso de comodidade em relação às outras espécies do mundo por esforço continuado de geração após geração. O simples fato de você abrir a torneira e sair água potável já é um absurdo de facilidade num mundo regido pela Lei da Selva. Foram bilhões de horas de trabalho para chegar nisso.
Existe diferença entre realidade elevada, isso é, a realidade de uma humanidade definida pelo esforço de socialização, e a realidade base, que é para onde caímos se as redes de proteção social falham. Eu quero viver na realidade elevada e quero que outras pessoas tenham direito a ela, mas eu nunca esqueço onde está o ponto de menor esforço: na realidade base. A realidade base é covarde, não pelo ser humano ser ruim, porque ser bom e ruim são ideias abstratas da realidade elevada, mas porque covardia é sinônimo de eficiência no gasto de tempo e energia.
É evidente que o predador vai buscar a vítima com menor potencial de defesa. É evidente que os abusos vão fluir das pessoas com mais poder para as pessoas com menos poder. Mas, talvez até felizmente, depois de tantos séculos de realidade elevada, muita gente esquece dessas regras fundamentais da natureza e acha que tudo é questão de pensamento abstrato. Que são escolhas tão custosas quanto as que fazemos pensando em gerar valor.
Não são. O predador humano está otimizando seus resultados. O serial killer vai buscar vítimas fáceis, porque é o que acontece naturalmente se você não pensar muito sobre o assunto. Se a característica definidora desses assassinos fosse buscar vítimas poderosas com muita capacidade de defesa, a nossa visão sobre eles seria totalmente diferente. Imagine só um serial killer de ditadores? Seria um herói mundial. E nem seria só por enfrentar opressores, seria pela imensa dificuldade das suas ações. Eu aposto até que defensores do autoritarismo e simpatizantes dos regimes não conseguiriam evitar sentir alguma simpatia.
A lógica da coisa é mais simples do que muita gente entende: a realidade base sempre vai estar lá, e é um esforço constante viver na realidade elevada. Você tem que acordar e escolher fazer o difícil todos os dias para continuarmos nela. Muito do que vemos dessa dissonância cognitiva dos justiceiros sociais modernos é resultado de esquecer da realidade base e achar que a elevada é como as coisas são naturalmente.
E essa ilusão faz mal. Eu lembro quando a Sally explodiu minha cabeça, muitos anos atrás, dizendo que fidelidade era um esforço. Realmente, eu achava que era algo padrão num relacionamento, que deveria fazer parte da coisa naturalmente. Claro que não é natural. Natural é ter instinto de reprodução, o resto é construção humana e esforço ativo. Só consegue ser fiel de verdade quem coloca energia em ser fiel de verdade. Acomodação é o caminho de menor esforço, e acomodação não é fidelidade. Quem mistura as coisas termina chifrado ou chifrando, sem saber o que aconteceu de errado.
A mesma coisa é válida em relação a ser covarde com outros seres humanos. Não é obrigação na natureza, é um esforço constante e consciente. É uma subversão da constante natural de fazer o que é mais fácil. E se você não percebe que está fazendo o mais difícil ao ser justo e nobre com outras pessoas, talvez não perceba quando não estiver fazendo essa escolha. Talvez ache que seja inescapável agir de forma covarde, porque criou-se a ilusão de que não ser sempre foi fácil. E aí, quando as coisas dão errado, a pessoa fica sem saber o que aconteceu.
Em português muito claro: mulher que anda seminua na rua parece mais vulnerável, não no sentido dela estar justificando qualquer coisa, mas no sentido de parecer mais fácil de abordar e fazer o que quiser com ela. Eu sei disso porque eu sei como o instinto bate num homem. Não quer dizer que você tenha intenção de abusar dessa mulher, mas você simplesmente sabe que ela é um alvo mais simples. Não tem nada a ver com intenção, é pura análise de padrões.
Eu acho horrível que mulheres sejam obrigadas a se cobrir dos pés a cabeça em países islâmicos, por exemplo, e prefiro a realidade elevada de uma mulher poder sair pelada na rua sem nunca ter sua vontade desrespeitada, mas a realidade base, a da covardia, nos diz claramente que quanto mais visualmente protegida uma mulher, maior a probabilidade dela ter gente para defendê-la, ou mesmo para se vingar de quem faça mal para ela.
Os sistemas de opressão são antigos, e muitos deles são resultado direto da vontade de escapar da Lei da Selva. Consciente ou inconscientemente, várias sociedades chegaram à conclusão que colocar pano em cima de uma mulher reduz a probabilidade dela ser atacada por predadores humanos. Nem acho que funcione tão bem assim, mas o resultado é melhor do que zero por tentativa e erro de nossos ancestrais, gente que não tinha um milésimo da quantidade de realidade elevada que temos atualmente. Gente que tinha que olhar por cima do ombro o tempo todo para evitar predadores humanos.
A conversa mais difícil que eu tenho com outras pessoas mais progressistas é a sobre como mesmo os comportamentos mais escrotos da humanidade acontecem por um motivo. O mundo não começou com a geração atual. Muita gente quebrou a cara antes da gente e muitos dos comportamentos, por mais bizarros que nos pareçam, vieram de algum lugar incomodamente lógico na realidade base da Lei da Selva.
Difícil convencer que igualdade e justiça social são resultados de esforço, não uma regra natural. Você pode concordar totalmente que uma mulher não está pedindo para ser estuprada não importa o que vista (ou deixe de vestir) e ainda sim dizer para sua filha não sair com os peitos de fora na rua. É impossível confiar na realidade elevada, porque ela é feita do esforço de todos, e ninguém é obrigado a fazer esse esforço.
O ponto de menor gasto de energia, vulgo o que a natureza prefere, está muito relacionado com covardia. Combater covardia, na gente e nos outros, é missão ativa e inescapável numa sociedade que quer se manter na realidade elevada. Salvo alterações genéticas futuras ou mesmo a transformação do biológico em robótico, a realidade base não muda. Qualquer buraco na realidade elevada nos faz cair no menor denominador comum, a barbárie e a covardia.
É um papo meio maluco de trazer a ideia de entropia para o comportamento humano: no final das contas, tudo tende à menor complexidade possível. Qualquer sistema de organização humano baseado em direitos fundamentais e justiça é uma construção que demandou muita energia. É a proverbial tartaruga em cima da árvore, mesmo sem saber como ela chegou lá, sabemos que não foi sozinha. É razoável tratar todos os nossos sistemas de proteção de direitos humanos como algo deliberadamente colocado ali. Não é natural, não é fácil, não tem garantia nenhuma de se manter como está.
Mesmo que você se considere uma pessoa de bons princípios e defensora da justiça social, nada impede que na primeira oportunidade você caia para a vala comum da covardia, atacando de cima para baixo como é comum para todos os covardes; mas com total incapacidade de perceber o que está fazendo. Você precisa ter noção do seu potencial inato de covardia para poder lidar com ela. Covardia é um estado natural, a realidade base da qual nos elevamos para não ser. Você foi colocado acima da realidade base pelo esforço dos seus antepassados, muitos deles pessoas que fizeram e pensaram coisas horríveis para as sensibilidades modernas.
Ninguém nasceu nesse ponto elevado (criança é um bicho covarde até aprender a não ser), todo mundo tem que se esforçar para chegar lá. E mais, tem que se esforçar para ficar por lá. Toda raça, gênero, credo e combinação aleatória de características tem o mesmo potencial de covardia: o potencial da natureza, o da lei do menor esforço.
Nenhuma ideia que não vire esforço real vai te proteger de descer para a realidade base.
Para dizer que é muita filosofia para feriado emendado, para dizer que estou justificando covardia (literalmente fiz o oposto), ou mesmo para dizer que amanhã o tema tem que ser mais leve (não vai): somir@desfavor.com
Essa dinâmica é absolutamente clara nas interações que observo nos meus alunos adolescentes. É sempre óbvio quem será o alvo da “piada” assim como é óbvio que na primeira intervenção todos se apressam em alegar inocência. Ser bom, fiel, gentil, honesto, etc. se dá através de ações e isso como vc disse demanda esforço.
“Ser bom, fiel, gentil, honesto, etc. se dá através de ações e isso como vc disse demanda esforço”. Sem dúvida, Sissy. E é justamente isso que o que faz de nós seres civilizados e torna o convívio em sociedade possível.
Concordo totalmente.
Eu posso estar falando bobagem, mas nesse texto Somir me lembrou Thomas Hobbes, que com o seu famoso “O Homem é o lobo do Homem”, dizia que o Ser Humano é o pior inimigo de si mesmo e um animal que ameaça a sua própria espécie. Só que o Ser Humano, indefeso diante das forças da Natureza e com limitada capacidade individual de realização e adaptação, também não sobrevive sozinho e precisa de uma sociedade minimamente organizada. Esse conjunto de regras e normas de convívio é o chamado “contrato social”, que seria o que impede o caos e o nosso autoextermínio. Porque o “instinto predatório” inato, que, de acordo com tal tese, levaria o Ser Humano a naturalmente ser explorador, aproveitador e opressor contra seus semelhantes, encontra-se, ao menos nas gerações mais recentes, adormecido, soterrado por muitas e muitas camadas de civilização, em uma “construção social” de milênios. Tal “construção”, no entanto, pode vir a ruir em cada um de nós se “as condições normais de temperatura e pressão” se alterarem em um momento de grave crise, como por exemplo, durante uma guerra.
Quando se estuda os Liberais, a tirinha “Calvin and Hobbes” tem outro significado.
Pensem nisso quando verem o Google empurrando a todo custo o YouTube Premium quando você vai assistir os vídeos lá presentes.
Pensem nisso também quando verem as big teles te empurrando um plano com custo/benefício ainda pior que o que você usa atualmente caso você seja usuário pré-pago.
Que texto fantástico !
Já pensei sobre isso, mas nunca consegui concatenar essas ideias
Eu usava a palavra bom senso no mesmo lugar que você usou a palavra esforço no texto. Mas esforço fica bem mais lógico e explica muitas atrocidades desse mundo.
Realmente uma “acima de excelente” “Semana Limonada” !!!!!
Que venha amanhã.