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Aborto em caso de estupro.

Aborto em caso de estupro.

| Sally | | 34 comentários em Aborto em caso de estupro.

Esta é apenas uma entre várias notícias no estilo. A situação é: uma mulher adulta comete crime de estupro contra um menino, acaba engravidando e quer ter o filho. E aí? Como resolve?

Talvez você tenha uma resposta na ponta da língua, mas, antes de responder, vamos refletir detalhadamente sobre as implicações disso. Eu sugeri o tema como Desfavor da Semana e o Somir declinou por causa da complexidade. Esse é o tamanho do problema. Quem acha que tem a resposta provavelmente não entendeu o tamanho da encrenca.

Que é estupro ninguém contesta, já que é estupro o que a lei diz que é estupro, pouco importa o que cada um de nós pensa a respeito. Quando uma mulher engravida fruto de um estupro, boa parte das pessoas (e a lei) estão de acordo que ela aborte, querendo o estuprador ou não, uma vez que ninguém é obrigado a carregar consigo para o resto da vida uma lembrança do evento, nem a ter um filho que não foi opcional.

Nestes casos de estupros cometidos por mulheres contra crianças, os meninos, na verdade, crianças, não tiveram escolha. Muitos mal sabiam o que estavam fazendo e as consequências que poderiam surgir do ato, como é o caso de um filho. Na notícia que ilustra este texto a tia abusou de um menino desde os 10 anos e acabou engravidando quando ele tinha 12 anos, mas existem outros casos de crianças com ainda menos idade.

Para minha surpresa, crianças muito pequenas podem reproduzir. A puberdade não chega para todos na mesma idade e, cada vez mais, vemos casos de puberdade precoce. Especula-se que a exposição de crianças a conteúdo considerado adulto somado a outros fatores como alimentação, poluição e estresse possa contribuir para desencadear puberdade precoce. Há relatos médicos de menina de cinco anos de idade grávida (e que teve o filho), como este.

Então, dizer que se o menino engravidou a mulher é por já ter condições de fazer sexo não é lógico. Alguém acha que uma menina de cinco anos tem condições de consentir algum ato de natureza sexual? Em muitos desses casos as crianças não compreenderam completamente o que faziam nem as consequências disso. Ejacular não é de forma alguma medidor para capacidade de consentir sexo.

Estupro pode ocorrer mediante violência, por reduzir a capacidade da vítima de consentir (por exemplo, drogando-a) ou quando, por si só, a vítima não pode consentir (idade, deficiência mental, e outros). Os três casos são estupro, os três casos são igualmente crime, os três casos recebem o mesmo tratamento da lei: a mulher abusada pode abortar.

Mas, e quando o abusado é do sexo masculino? Nesse caso ele deveria ser obrigado a passar o resto da vida ciente de que existe um filho seu no mundo, fruto de uma violência? Por qual motivo a uma mulher é dada a possibilidade de escolher não passar por isso e a um menino não?

E, aqui vem uma informação curiosa: mesmo sendo fruto de estupro, pela lei de quase todos os países, essa criança teria direito a pensão alimentícia, obrigado o pai e/ou a família do pai a arcar com esse custo. Isso se justifica pelo fato de a pensão ser destinada a alimentar a criança, é sobre a criança, não sobre a mãe. Não seria razoável deixar uma criança desamparada por um erro da mãe.

Então, colocar um filho no mundo fruto de estupro de uma mulher contra um menino não tem apenas a implicação emocional, tem também responsabilidades legais e financeiras. Pouco importa qual foi a forma de concepção da criança, a pensão do pai é devida, pois mesmo que ela seja fruto de um estupro, ela tem necessidades que precisam ser supridas.

E não importa o quanto você ache isso injusto, errado e deseje que não seja assim. É assim, portanto, você tem que considerar esta variável na equação: se for a favor de que a mulher possa ter o filho contra a vontade do estuprado e de sua família, esteja ciente de que eles terão que prestar suporte, no mínimo financeiro, a essa criança pelas próximas duas décadas.

Imagino que muitos de vocês nem sequer estejam cogitando a hipótese de que uma mulher seja obrigada a fazer um aborto. É realmente chocante e abominável, mas a outra opção também é igualmente chocante e abominável. Escolhas trágicas. Algum grau de injustiça vai acontecer. Alguma decisão insatisfatória terá que ser tomada. Como fica?

Forçar uma mulher a abortar é um ato de violência contra seu corpo. Entretanto, estuprar uma criança também é um ato de violência contra o corpo. Sendo necessária uma escolha trágica, quem se deve sacrificar: uma pessoa que estuprou ou a vítima de estupro? Não seria um pouco covarde que a pessoa que estuprou consiga o desfecho desejado, enquanto a criança estuprada seja onerada pelo resto da vida com a parte psicológica de um filho e a parte financeira?

“Mas Sally, o menino pode virar as costas, sumir e nunca mais procurar essa mulher ou o filho”. Funciona, se você for bem canalha. Uma pessoa decente não ficaria em paz sabendo que seu filho está nas mãos de um/uma estuprador/estupradora. Uma pessoa decente não vive em paz se perguntando se seu filho está bem, está passando necessidades ou até mesmo está sendo abusado.

Quem garante que uma pessoa que dedicou anos da sua vida a estuprar menores de idade não fará o mesmo com seu filho? O Poder Público teria que ser louco para deixar uma criança nas mãos de uma pessoa assim. Fora que, na maior parte dos casos, estas mulheres se encontram presas (a da notícia foi presa), então, seria colocar um filho no mundo que não teria uma mãe presente por muitos e muitos anos.

Adivinha nas mãos de quem cairia a responsabilidade de educar a sustentar esse bebê? Provavelmente da família da criança que foi estuprada e gerou este filho sem querer. Ou então, rodaria por orfanatos ou lugares piores, condenando essa criança a uma vida de rejeição, abusos e privações. Alguma destas parece uma boa escolha? Alguém vai sofrer violência, tem que escolher se é a pessoa que estuprou, a pessoa que foi estuprada ou a criança que poderia nascer desse estupro.

No caso que ilustra este texto, uma marmanja de quase 40 anos abusou sistematicamente de um menino que era seu aluno quando ele tinha apenas dez anos de idade (em 2021) e em 2023 acabou grávida. Ela ameaçou o menino de diversas formas para que ele não conte aos pais o que aconteceu. Foi presa e insiste em querer ter o bebê.

Ao que tudo indica, os abusos aconteciam durante o horário escolar, o que dificultou que os pais da criança percebam o que estava acontecendo. Durante todo o tempo ela ameaçou o menino (inclusive de matar os pais dela) para que ela não conte. E a história toda só veio à tona por um grande azar que ela deu, pois a criança estava realmente apavorada e não contou a ninguém.

Quais são as chances desse filho vir ao mundo e ter uma vida plena, saudável e de igual para igual com o resto das pessoas? Uma gestação em um presídio, ser separado da mãe ao nascer, morando com uma criança que foi vítima de abuso ou em um orfanato. Até onde você está disposto a ir por suas convicções que foram construídas em outra época, na qual de fato obrigar uma mulher a abortar era algo impensável?

Para não tomar uma decisão chocante, abominável, impensável, a escolha fácil é dizer que uma pessoa que estupra outra pode bater o pé e querer ter o filho. Mas aí se abre outra porta ruim: se estuprador pode bater o pé e querer o filho, se isso for de fato decidido judicialmente, se abre uma brecha para que estupradores homens obriguem mulheres estupradas a continuar com sua gestação mesmo sem querer, usando os exatos mesmos argumentos: não importa meu erro eu quero esse filho, toda vida é sagrada, a criança não tem culpa, se você não quer cuidar eu cuido. E aí?

Se você está certo de que isso nunca vai acontecer, sugiro que dê uma lida nas últimas decisões judiciais. Nos últimos anos, estamos vendo uma aberração atrás da outra. Um conselho, não apenas para este caso, mas para a vida: nunca confie no bom-senso do Judiciário, especialmente se for no Brasil. Não abram essa porta, vocês não vão gostar do que tem do outro lado.

Não tem jeito: é um daqueles casos no qual a solução será uma violência contra alguém. Uma violência física, uma violência psicológica ou ambos. Resta decidir quem vai sofrer a violência: a pessoa que praticou um estupro ou a vítima. “Mas Sally, a criança é inocente, ela não pode pagar por isso?” Na minha opinião, trazer um filho a este mundo nessas condições também é um ato de violência para essa criança e uma forma cruel dela pagar por isso: melhor para ela mesma que não venha. E na opinião da lei, ela pode pagar por isso sim: gestação fruto de estupro permite aborto.

A violência, no caso seria contra a mãe, e é essa a grande trava que buga a cabeça de todo mundo quando apresentamos casos como estes: a mulher, a mãe, a maternidade e todo o sagrado que envolve. Pois adivinha só? Mulher também abusa, também comete crime, nem sempre mulher é vítima, muitas vezes ela a agressora.

Durante muito tempo, o mundo não deu oportunidade para que mulheres cometam crimes e abusos, pois elas eram tratadas de forma desigual e não tinham poder suficiente para isso. Não é como se mulheres e mães sempre tenham sido santas e sagradas e agora a sociedade se desvirtuou. Dando tempo e oportunidade, meus amigos, o ser humano é capaz de qualquer bosta.

Então, temos uma sociedade ensinada a pensar de uma forma por séculos (mulher é indefesa, mulher precisa de proteção) se deparando com uma realidade completamente diferente (mulher estuprando criança), sem conseguir adequar seu pensamento à nova realidade.

Por qual motivo não paira nenhuma dúvida de que quando a gestação da mulher é fruto de estupro está tudo bem dar a ela a opção de abortar e quando ocorre o oposto, é uma abominação?

Quando é o oposto implica em realizar um procedimento no corpo de uma pessoa (criminosa) contra sua vontade. Isso é uma baita trava e eu acho saudável que seja, mas a sociedade não se importa em invadir e barbarizar corpo de criminoso sexual homem. Intrigante, não? Um bom exemplo disso é como quase todo mundo comemora quando estuprador é estuprado na cadeia ou acaba morto pelo pai da vítima. Há uma sensação de que ele “teve o que mereceu”.

Por qual motivo quando o estupro é cometido por uma mulher não existe a mesma ira contra a pessoa estupradora? Talvez pelo fato de que, em algum grau, a sociedade ainda não ache possível uma mulher estuprar um menino. Em algum grau se acredita que o menino consentiu, que o menino gostou, que o menino teve algum proveito da situação. E isso não é verdade.

Contato sexual precoce traumatiza de forma praticamente indelével pelo resto da vida. Crianças que ainda não estão prontas para lidar com sexo, se expostas a isso de forma precoce, reiterada e permeada por ameaças e medo sofrem sim um dano enorme, irreversível, um trauma descomunal, não importa o quanto mentes imbecis acreditem que o menino “se deu bem”.

Então, essa preocupação com a integridade física de pessoas estupradora me parece ser mais um sintoma machista do que uma opinião. Se fosse um estuprador homem abusando de uma menina de dez anos e se fosse preciso realizar algum procedimento médico no corpo do estuprador para interromper a gestação da menina, eu tenho certeza absoluta de que quase ninguém iria se opor.

E este texto não é apenas sobre essa questão pontual em si, que sim, merece ser olhada e analisada, pois mulher com cada vez mais poder significa mais mulheres abusadoras. Este texto é para te lembrar que muitas vezes tomamos decisões automáticas e assimétricas, protegendo excessivamente um grupo que, em algum momento, já precisou dessa proteção, mas que hoje está apenas se aproveitando dela.

A figura do aborto forçado é hedionda, mas mais hediondo do que isso é obrigar uma criança abusada sexualmente a arcar com o peso e os custos de um filho. Qual das duas é “menos pior” para você?

É preciso muita desconstrução e coragem para tomar essa decisão. Só não vale falsa simetria, tratar vítima de estupro de forma diferente por causa do sexo: ou toda gestação fruto de estupro pode ser mantida se um dos progenitores fizer questão do filho, ou basta que um não queira para se realizar aborto.

Curiosa para ler a opinião de vocês… Aqui é provavelmente um dos poucos lugares nos quais você pode realmente dizer o que pensa sobre este assunto.

Para dizer que não custava nada fazer um “Ei, Você” em vez deste texto desconcertante, para dizer que bater, estuprar e matar tudo bem, mas não pode fazer aborto em bandido ou ainda para dizer que prefere acreditar que o menino gostou (tem muita gente dizendo isso de mulher estuprada também): sally@desfavor.com


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